31/5/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger reclamou certa vez que a Europa não tinha número de telefone. O que o deixava sem saber com quem falar, como autêntica voz europeia. Hoje se pode dizer o mesmo dos BRICS, o grupamento que chegou a personificar as melhores e mais brilhantes potências emergentes na ordem global. BRICS são o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul.
A sumária demissão de Dominique Strauss-Kahn do emprego de diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), acusado de agressão sexual, deixou tristemente expostos os BRICS como navio fantasma que, vez ou outra, faz muito barulho.
Mal se passaram seis semanas desde que a China hospedou a reunião dos BRICS em clima de glória, comandada por ninguém menos que o presidente Hu Jintao. E já hoje os líderes dos BRICS corarão, envergonhados, se lembrarem que o Diário do Povo de Pequim saudou-os naquela reunião como “âncora da economia e da política globais”.
Strauss-Kahn não virou presidente da França, como se disse que seria seu sonho. Tampouco sua contribuição para a construção da ordem global irá além da do atual presidente Nicolas Sarkozy. Dado o modo como foi defenestrado do emprego no FMI, uma turba ensandecida surgiu, ardendo para ocupar a vaga, processo que, por sua vez, trouxe a nu as linhas muito frágeis do sistema internacional. Mas nem Strauss-Kahn algum dia deu sinais de ouvir os gritos das dores do nascimento do supracitado mundo multipolar.
Apesar das homilias universais de que é preciso democratizar a ordem mundial, quando chegou a hora da verdade os países ocidentais rapidamente cerraram fileiras e entraram num frenesi jamais visto, para não deixar escapar o FMI como seu território exclusivo.
Em questão de 72 horas, mais ou menos, a ministra francesa das Finanças Christine Lagarde anunciou-se candidata ao emprego. As nações européias rapidamente se organizaram em torno dela; o Grupo dos 8 (G-8) proclamou seu apoio; e ela partiu em tour global. No domingo, Lagarde postou um tuíte triunfalista no Twitter: “Voando para Brasília: amanhã almoço com colega Guido Mantega, encontro com presidente do BC Alexandre Tombini”.
Urso (russo) de picadeiro
Sim, Lagarde almoçou numa capital BRICS, depois de ter assegurado o apoio de outro BRICS, a Rússia, que esteve presente no jantar do G-8 na 5ª-feira na França.
A ironia é que a Rússia, talvez a mais ardente defensora dos BRICS, no instante em que se viu sentada à mesa do banquete dos G-8 entrou em surto de crise de identidade e, num segundo, resolveu que prefere ser parte do mundo ocidental, a comer mosca no mundo em desenvolvimento.
Foi exatamente o que todos viram, na posição adotada pela Rússia na reunião do G-8 na 6ª-feira, quando apoiou a candidatura de Lagarde. Na 4ª-feira, a Rússia assinara a declaração dos BRICS, contra a candidatura de Lagarde (e em busca de “um processo transparente, meritocrático e competitivo”, para a seleção do novo chefe do FMI).
A Rússia sabia, é claro, que o apoio do G-8 praticamente significa que Lagarde já tem novo emprego, porque as nações reunidas no G-8 detêm 42% dos votos. Mas naquele momento a Rússia não tinha candidato próprio suficientemente qualificado para o emprego no FMI. Mais importante: o G-8 é um dos poucos símbolos que ainda fazem a Rússia sentir-se “grande potência” com influência global.
Por trás de tudo isso, a Rússia pós-soviéticos anseia por ser aceita como “igual” na comunidade euro-atlântica. Ainda não se sabe se a Rússia ter-se-á amarrado em algum acordo faustiano que envolva algum interesse vital. Mas se se amarrou, não será surpresa.
Fato é que a Rússia, praticamente do dia para a noite, deu as costas aos BRICS, por mais que, todo o tempo, tenha vivido a repetir rompantes do Kremlin, segundo os quais os BRICS seriam o evento mais importante que aconteceu no sistema internacional pós-Guerra Fria.
O ocidente e o resto
Tradicionalmente, os EUA presidem o Banco Mundial, e a Europa, o FMI. A corrida para ganhar o emprego no FMI indica claramente que o ocidente não consegue sequer imaginar qualquer outro modo de comandar o sistema financeiro mundial. O plano ocidental de já ter prontas as indicações para o FMI dia 10 de junho, e de decidir toda a agenda e o processo eleitoral unilateralmente, praticamente numa única reunião de fim de semana, e sem nem dar tempo de todos os diretores executivos reunirem-se em Washington, indicam que, sim, não concebem outro modo de fazer as coisas. Espera-se que o FMI anuncie os candidatos ao principal cargo dia 17 de junho, E que dia 30 de junho já se conheça o próximo diretor-executivo.
Tudo isso está acontecendo apesar do compromisso assumido em 2007, quando Strauss-Kahn foi escolhido pelo grupo Euro. Nos termos daquele compromisso, “o próximo diretor-executivo certamente não será europeu” e “no grupo Euro e entre os ministros das Finanças da União Europeia, todos sabem que é provável que Strauss-Kahn venha a ser o último europeu a dirigir o FMI, no futuro previsível.”
Por sua vez, os europeus argumentam, sem corar, que ter um europeu na chefia do FMI na atual conjuntura é absolutamente necessário, no momento em que os 17 países da Eurozona lutam para fazer frente aos problemas financeiros de Portugal, Grécia, Espanha e Irlanda.
Dentro dos BRICS, todos os olhos estão postos em China e Índia. (O Japão mantém-se estranhamente indiferente à disputa, apesar de controlar a segunda maior fatia.) China e Índia podem entender-se, apesar de terem interesses partilhados? Essa deveria ser a grande questão. Mas não é. O que se vê é que China e Índia fizeram mais barulho que o usual, mas nem uma nem outra estão fazendo coisa alguma para desafiar a candidatura Lagarde.
Nem China nem Índia têm candidatos viáveis a oferecer ao FMI. Assim sendo, os dois países adotaram posição “de princípio”, para constar. Além desse ponto, não se vê nenhum tipo de ação coordenada entre ambas, nem qualquer sinal de que alguma das duas esteja inclinada a trabalhar a favor de um candidato de consenso.
Interessante, mas nem Pequim nem Delhi marcaram, até agora, data para visita de Lagarde, para propor oficialmente sua candidatura. Pequim manteve silêncio sobre a declaração unilateral de Lagarde de que contaria com o apoio da China à sua candidatura. De fato, é tática esperta. China e Índia parecem estar-se preparando, depois de alguns dias de posar como superiores, para apoiar, sim, a candidatura Lagarde. Nos dois casos, haverá perda de prestígio e posição. Mas, afinal, China e Índia são escolados “realistas”.
O Dragão chinês recolhe-se sem ruído...
... e o Elefante indiano bate as patas
[parágrafos não traduzidos, porque só fazem sentido para quem acompanhe a política interna de China e Índia]
Um coringa no baralho
Depois da “defecção” da Rússia, que sequer se deu o trabalho de consultar seus BRICS parceiros; com Rússia, China, Índia e Brasil, que sequer se deram o trabalho de anotar que a África do Sul, também BRICS, apresentou, sim, um candidato; e, agora, depois de o Brasil já ter servido almoço à Lagarde, os BRICS cada dia mais parecem coringa no baralho com que o sistema internacional joga.
Como as coisas chegaram a tão lamentável quadro? Com certeza não se trata de falta de candidatos qualificados. Basta considerar a lista impressionante de candidatos potenciais, das economias emergentes, todos perfeitamente qualificados para dirigir o FMI, tanto quanto Lagarde:
- Tharman Shanmugaratnam, ministro das Finanças de Cingapura e vice-primeiro ministro
- Agustin Carstens, atual presidente do Banco Central do México
- Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central do Brasil
- Sri Mulyani Indrawati, ex-ministro das Finanças da Indonésia
- Trevor Manuel, ministro das Finanças da África do Sul.
Assim sendo, qual é o problema? Tudo tem a ver com o que é o grupo BRICS – associação seletiva de alguns dos mais ambiciosos países do planeta, com interesses absolutamente diferentes uns dos outros, unidos por um único interesse comum, de garantir direito de assento à mesa principal da ordem política e econômica mundial.
Teremos chegado ao fim da linha, para os BRICS? Não há dúvidas de que a luta pelo FMI deixou escoriações nos BRICS e abalou a credibilidade que tivessem. Nada garante que o grupo consiga recuperar a verve a tempo da reunião prevista para 2012, na Índia. Mas é provável que os membros ainda vejam vantagens táticas em manter-se num processo BRICS, mesmo que BRICS passe a ser só entidade de papel.
De fato, o grupo BRICS continuará a servir como aprisco para a Rússia, enquanto continuar excluída do teto europeu comum. A China terá de usar o BRICS para ostentar simpatia e comunhão com os países em desenvolvimento, enquanto finge que é um deles. Os BRICS jamais foram mais que casa de passagem, onde a Índia abriga-se, vez ou outra, na longa estrada pela qual prossegue, tentando chegar ao clube dos ricos. E os BRICS permitem ao Brasil o conforto de afastar-se, vez ou outra, da sombra dos EUA no hemisfério ocidental.
Lagarde diria, com sorriso de griffe: “Le Roi est mort, vive le Roi!” – “Morreu o rei, viva o rei”.