domingo, 29 de maio de 2011

Pepe Escobar: "A hora e a vez do oleoduto China-Paquistão?"

Pepe Escobar

27/5/2011, Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


A China não arreda pé da ideia de que o ocidente “deve respeitar” a soberania do Paquistão.

O recado foi dado durante recente visita de quatro dias do primeiro-ministro do Paquistão, Yousuf Gilani a Pequim, em que se comemoraram nada menos que 60 anos de relações estratégicas – que envolvem, dentre outras questões, colaboração nuclear e apoio na ultrassensível questão da Caxemira. 

O The Times da Índia reformatou a mensagem em termos de clara advertência de que “qualquer ataque ao Paquistão terá de ser construído como ataque à China”. 

A diplomacia chinesa opera por vias sofisticadas demais para esse tipo de reação nua e crua; mas, ainda que tenha vindo embrulhada em veludo vermelho, a mensagem – se se consideram os ininterruptos assaltos dos aviões-robôs tripulados à distância (drones) dos EUA contra as áreas tribais do Paquistão, para nem falar do ataque “peguem Osama” contra Abbottabad – foi como bomba atômica.

Por mais verdade que haja nas acusações de que Islamabad ajuda alguns grupos Talibã – como a rede Haqqani no Waziristão Norte – o establishment político-militar e de segurança do Paquistão está farto de ser tratado por Washington como reles satrapia ou, pior, como bando de punks.

A opinião popular no Paquistão, dos centros urbanos às áreas tribais, absolutamente odeia e rejeita a guerra dos drones de Washington. E mesmo antes do ataque pelos SEALs da Marinha dos EUA para matar Osama, o caso sórdido de Raymond Davis foi visto como suprema humilhação.

Davis, agente da CIA, matou dois paquistaneses à luz do dia em Lahore; uma equipe “de extração de agentes norte-americanos" matou mais um paquistanês, que tentava impedir que Davis fosse preso; e, depois, a CIA pagou indenização às famílias dos mortos (permitida pela lei paquistanesa, acordo chamado de “dinheiro de sangue”) para conseguir, finalmente, tirar Davis do país. Soberania? Que soberania? 

Portos estratégicos 

Há um frenesi de boatos nos EUA, sobretudo entre a direita, de que seria hora de aplicar boa lição ao Paquistão, porque “abriga terroristas”. O mais radical salto conceitual para esses fanáticos direitistas, mal informados, belicistas de gabinete, seria porem-se a pregar que os EUA apliquem boa lição também à China. 
Gwadar é o primeiro porto do Paquistão construído com investimento chinês em aguas profundas. Vai desempenhar papel fundamental no transporte de petróleo do Oriente Médio para satisfazer a fome de energia chinesa nas próximas décadas.

Gwadar é porto de águas profundas, ultra estratégico, no Mar da Arábia, no Baloquistão paquistanês, não distante da fronteira com o Irã e a apenas 520 km do ultra-hiper estratégico Estreito de Ormuz. Pequim financiou cerca de 80% da construção do porto, através do China Harbor Engineering Company Group. Atualmente, o porto é administrado por Cingapura. A concessão está chegando ao fim – e, então, o porto passará a ser administrado pela China.

Islamabad quer agora que os chineses construam uma base naval em Gwadar. Será terremoto geopolítico monstro, em ponto crucial do “Oleodutostão” e também no Novo Grande Jogo na Eurásia.

Ainda adormecido, Gwadar foi construído ao longo dos anos para ser o entroncamento-chave do oleoduto Irã-Paquistão (IP), que já foi oleoduto IPI (Irã-Paquistão-Índia), antes de Delhi assustar-se e pular fora. Para Washington, a possibilidade de Irã e Paquistão serem ligados por cordão umbilical de aço (e petróleo) sempre foi anátema. 

O que Washington quer – e sempre quis furiosamente desde o governo Clinton – é o oleoduto TAP (Trans-Afghan Pipeline), que depois se tornou TAPI (Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia). Até as rochas milenares do Hindu Kush sabem que seja TAP ou TAPI, só será construído depois do fim da guerra do Afeganistão, por governo no qual inevitavelmente os Talibã terão de participar.

Na batalha em curso, épica, entre IP (ou IPI) versus TAP (ou TAPI), o que ninguém nunca diz é que o vencedor pode ser... a China.

Nova Delhi sabe que oleoduto que atravesse o Afeganistão é, digamos, sonho-delírio movido a ópio. Mas ainda não se comprometeu com o IPI ­– em parte por causa da inclemente pressão que sofre de Washington; em parte porque não confia no Paquistão.

A China, por sua vez, já se ofereceu para construir uma extensão do oleoduto IP. Isso significa que a partir de Gwadar, será construído outro oleoduto, pelos chineses, é claro, que atravessará o Baloquistão e daí, acompanhando a estrada Karakoram, seguirá diretamente para o norte, até Xinjiang, no extremo oriente da China.

Quem já tenha viajado pelos espetaculares 1.400 quilômetros da estrada Karakoram, de Kashgar em Xinjiang, oriente da China, pelo desfiladeiro Khunjerab até – quem diria?! – Abbottabad no Paquistão, sabe que ali só se vê uma coisa: exemplo gráfico da colaboração entre China e Paquistão. Adiante, pela mesma estrada, a engenharia de Pequim conectará a estrada de Karakoram com uma ferrovia que atravessará o Baloquistão até o porto de Gwadar.

Os paquistaneses envolvidos no desenvolvimento de Gwadar falam da obra como uma nova Dubai. Ora, pode bem vir a ser uma Hong Kong ocidental.

Não surpreende que os estrategistas de Pequim já saboreiem o que pode ser um equivalente geopolítico da mais fina sopa de barbatana de tubarão: a marinha chinesa posicionada no coração do Mar da Arábia, à distância de uma pedrada do Golfo Persa; grande parte do petróleo que a China importa do Oriente Médio, enviada para Gwadar, próximo da origem; e dali, pelo oleoduto ou por ferrovia, até Kashgar. E a economia chinesa podendo beneficiar-se de gás extra fornecido pelo Irã e, em futuro próximo, também pelo Qatar.  

Keep on truckin'[1]

Não se trata só de a China estar em posição de poder vencer um capítulo crucial da história do Oleodutostão, além de fincar uma base no Mar da Arábia, que se somará ao “colar de pérolas” chinês. Em termos de ficar vulnerável no “Af-Pak”, Washington pode estar às vésperas de derrota por 3 a zero.   

Por motivos óbvios, o Pentágono não pode usar portos chineses ou iranianos para garantir suprimentos a nada menos que 100 mil soldados norte-americanos, 50 mil soldados da OTAN e mais de 100 mil empregados de empresas norte-americanas que vivem no Afeganistão – aí incluídas legiões de combatentes mercenários – que se distribuem em mais de 400 bases militares que se espalham pelo país. Cerca de 80% da monstruosa quantidade de suprimentos necessários atravessa o Paquistão. O que significa, essencialmente, Karachi.

Assim sendo, ninguém pode imaginar alguma “ação militar cinética” (© Casa Branca) no “Af-Pak” sem que haja ininterrupta fila de caminhões que saem de Karachi e entram no Paquistão via Torkham ou Chaman, todo santo dia.

Tudo de que Cabul – e a gigantesca base aérea de Bagram, ali perto – carecem, passa por Torkham, na parte final do afamado desfiladeiro Khyber. Tudo de que Kandahar carece passa por Chaman, no Baloquistão paquistanês, não distante de Quetta, onde teoricamente vive Mullah Omar quando não esteja sendo declarado morto pelo Pentágono. 

O Pentágono, claro, poderia usar estradas alternativas como a infindável Rede Norte de Distribuição [orig. Northern Distribution Network (NDN)], de Riga na Letônia até Termez no Uzbequistão, que se conecta por ponte sobre o rio Oxus ao Afeganistão. Mas a NDN, além de longa é impraticável: não suporta cargas pesadas e, além disso, os uzbeques proíbem o trânsito de armas letais.  

Quanto à base de Manas no Quirguistão, só é usada para hospedagem de tropas em trânsito e para armazenamento de combustível para os jatos.

Em resumo, Islamabad sabe que o Pentágono simplesmente não pode manter a guerra do “Af-Pak” sem as estradas Karachi-Torkham (300 caminhões e tanques por dia) e Karachi-Chaman (200 caminhões e tanques por dia) que têm de funcionar como relógio.

Portanto, se você apertar os colhões do establishment em Islamabad até ponto de não retorno, você deixará as redes dos Talibãs em posição de atacar comboios dos EUA/OTAN até o dia do juízo final. A situação só será comparável a Pequim reconhecer a inestimável “contribuição e os sacrifícios do Paquistão na guerra contra o terrorismo”. 

O recado 

Pequim ajudou decisivamente o programa de armas nucleares de Islamabad. No próximo mês de agosto, a China porá em órbita um satélite para o Paquistão. Cerca de 75% das armas do Paquistão são fabricadas na China. Em breve, 260 jatos chineses de combate serão incorporados à Força Aérea do Paquistão.

Antes mesmo de Pequim mandar o recado de que a soberania do Paquistão não pode ser agredida, os militares paquistaneses já haviam mandado seu próprio recado.

Teve a ver com o hiper fotografado helicóptero Black Hawk, fabricado com tecnologia stealth (que o torna invisível aos radares), mas que se espatifou sobre o muro que cercava a casa de Osama Bin Laden em Abbottabad. Os paquistaneses ameaçaram entregar os cacos aos chineses – o que com certeza geraria interessantes pesquisas de engenharia reversa.

Não entregaram. Mas ainda não conseguiram fazer-se ouvir devidamente, numa Washington que só sabe operar nos estreitos limites de uma concepção estratégica segundo a qual os militares paquistaneses arrendados aos EUA seriam todo o Paquistão. Se o Congresso dos EUA decidir intrometer-se – as ameaças abundam –, Pequim adorará reequilibrar a disputa.

Washington ainda terá magnífica oportunidade para ouvir o recado do Paquistão mês que vem, quando a Organização de Cooperação de Xangai [ing. Shanghai Cooperation Organization (SCO)] reúne-se em Astana, Cazaquistão. Há forte possibilidade de que o Paquistão, que atualmente é observador, seja aceito como membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai.

Na prática significa o Paquistão instalado como membro de uma ainda embrionária resposta asiática à OTAN. Ataque contra país-membro da OTAN é ataque contra todos, como reza a Carta da OTAN. O mesmo se aplicaria à SCO. Senhoras e senhores extraiam daí suas próprias conclusões – e tratem de aprender a dançar o novo passo Sino-Pak, recém-lançado.




Nota de tradução
[1] Literalmente: “Sempre em fila, avante!” A expressão pode bem ser referência a famosíssima charge desenhada por Robert Crumb, em 1968. O desenho pode ser visto em Keep on Truckin: engravatados, em fila, andando com absoluta confiança sempre avante, em terreno quase lunar, de tão vazio, observados, pode-se dizer, do ponto de vista de uma formiga a qual, contudo, está fora do alcance da sola dos sapatos.

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