terça-feira, 19 de junho de 2012

Golpes, golpistas e “mudança de regime”: Por que não nos agradecem?


21/6/2012, Pankaj Mishra, London Review of Books, vol. 34, n. 12, pp. 19-20
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Sobre: BELLAIGUE, Christopher de. Patriot of Persia: Muhammad Mossadegh and a Very British Coup [Patriota da Pérsia: Muhammad Mossadegh e um Golpe BB (Bem Britânico], Londres: Bodley Head, 310 pp, £20.00, ISBN 978 1 84792 108 6

Não somos liberais do tipo que a CIA consegue assassinar, como Allende e Mossadegh
(Aiatolá Ali Khamenei, aos EUA, durante a revolução iraniana, em 1979)

Pankaj Mishra
Em 1890, um ativista muçulmano itinerante de nome Jamal al-din al-Afghani estava no Irã, quando o então governante iraniano, Naser al-Din Shah Qajar, entregou uma concessão de tabaco a um comerciante britânico chamado G.F. Talbot; de fato, garantiu-lhe total monopólio para comprar, vender e exportar tabaco. Al-Afghani pôs-se a protestar, tentando chamar a atenção de todos, e criticou veementemente a medida, aprovado por um coro de intelectuais seculares e de comerciantes conservadores. Para Al-Afghani, depois daquela concessão, os plantadores locais de fumo estariam para sempre entregues aos infiéis, sem qualquer defesa; disse que ali começava o fim de todos os pequenos comerciantes de tabaco. Imediatamente organizou grupos de pressão – o que foi inovação política até então jamais vista em Teerã –, que enviavam cartas anônimas às autoridades e funcionários e distribuíam panfletos e cartazes pelas ruas, conclamando os iranianos à revolta. Na primavera seguinte, houve grandes protestos de rua nas principais cidades.

Com a ajuda do telégrafo, também recentemente aparecido no Irã, as manifestações de massa que receberiam o nome de Tobacco Protest [Protestos do Tabaco] foram tão cuidadosamente planejadas e coordenadas como só voltariam a ser 100 anos depois, na Revolução Islâmica de Khomeini, quando gravadores e cassettes de fitas gravadas tiveram papel semelhante ao do telégrafo, e as mulheres participaram em massa.

Al-Afghani também escreveu ao Grande Aiatolá Mirza Hassan Shirazi em Najaf, oferecendo ao clérigo xiita enormemente popular e influente, mas alheio à vida política, uma primeiríssima lição xiita sobre o que seriam os “ajustes estruturais’que as empresas financeiras ocidentais, dali em diante, imporiam aos países pobres:

“Não sei o que faça para que entendais o que é o Banco!” – escreveu Afghani. “Banco é entregar as rédeas do governo ao inimigo do Islã, escravizar o povo àquele inimigo, render-se a ele; e entregar todo o poder e todo o domínio nas mãos do inimigo estrangeiro.”

Al-Afghani talvez exagerasse. Mas sabia bem, pelo que vira acontecer na Índia e no Egito, o quão rapidamente acontecia de comerciantes e banqueiros ocidentais aparentemente inócuos converterem-se em diplomatas e soldados. O Xá já depusera aos pés da Europa e dos imperialistas europeus ainda informais a relativa imunidade de que gozava o Irã. 

Em 1872, com os capitais do país já saqueados e com um massivo déficit no orçamento, o Xá entregara outro monopólio, dessa vez para construir estradas férreas, rodovias, fábricas, barragens e minas, a outro cidadão britânico, o Barão Reuter (fundador da agência de notícias de mesmo nome). O próprio Lord Curzon ficou boquiaberto quando, vinte anos depois, foi informado sobre os termos da concessão; descreveu-a como “a mais completa rendição de todos os recursos de um reino, entregues a mãos estrangeiras, com a qual alguém algum dia sonhou – e muito menos alguém algum dia obteve – em toda a história.” Houve protestos da Rússia, vizinha do Irã e principal concorrente da Grã-Bretanha na região, e a concessão foi cancelada; e Reuter, aliás, já tinha outros ferros aquecendo no fogo.

Ocorrida apenas oito anos depois de os britânicos ocuparem o Egito, a concessão do tabaco chamou a atenção de al-Afghani, como prática obscena. Expulso do Irã pelo Xá, al-Afghani manteve ativo fogo de barreira de cartas para todos os principais clérigos xiitas nas cidades santas da Mesopotâmia, implorando que saíssem do estado de apatia política e se mobilizassem para lutar contra o Xá. Poucos meses depois, Shirazi escreveu sua primeira carta ao Xá, sobre tema político, denunciando os bancos estrangeiros e o poder crescente que acumulavam sobre a população muçulmana; e as concessões comerciais que os europeus recebiam. O Xá, desesperado para manter o apoio que lhe dava a Ulema, enviou emissários para tentar seduzir Shirazi. O clérigo, além de não ceder, respondeu com uma fatwa – que declarava pecado de anti-islamismo o ato de fumar, até que fosse cancelado o monopólio dado aos britânico para o comércio do tabaco. O gesto foi surpreendente bem-sucedido – até o palácio do Xá foi convertido em território sem-cigarros. E o Xá afinal capitulou, aceitou as condições de uma aliança entre clérigos, intelectuais e capitais autóctones e, em janeiro de 1892, cancelou a concessão do tabaco.

Muhammad Mossadegh era, nesse momento, o filho mais velho, de nove anos, mas de inteligência precoce, de um alto funcionário da administração do Xá. Homa Katouzian, autor de uma primeira biografia em língua inglesa, atribui sua oposição consistente a “qualquer concessão a qualquer potência estrangeira” à permanência de uma memória infantil da fúria popular que varreu o Irã contra aqueles primeiros ataques europeus à soberania nacional iraniana. Mossadegh, filho de família nobre, e que, ainda criança, recebeu o título nobiliárquico de mussadiq al-saltaneh, “garantidor da monarquia”, viria a ser, por improvável que parecesse, o líder da transição no Irã, da monarquia dinástica, para a política de massas. Depois daqueles eventos da infância, Mossadegh viveria o resto da infância e toda a adolescência até chegar à idade adulta, num cenário de efervescência política que, antes daquele momento, ninguém jamais vira na Ásia.

Intelectuais e ativistas asiáticos começaram a desafiar o poder arbitrário dos imperialistas ocidentais e seus aliados nativos no final do século 19. Na primeira geração, havia agitadores e organizadores sociais polemistas, como al-Afghani, que agregaram à sua volta jovens anti-imperialistas cheios de energia, mas desorganizados, em Cabul, Istambul, Cairo e Teerã. A geração seguinte já produzia homens como Mossadegh, que foram expostos às práticas e hábitos ocidentais, ou formados e treinados em instituições de estilo ocidental, e eram talvez mais bem aparelhados para oferecer aos seus incansáveis compatriotas ideologia e políticas coerentes de nacionalismo anticolonial.

Christopher de Bellaigue
Na biografia escrita com astúcia política por Christopher de Bellaigue, Mossadegh não é o “velho tonto esperto” ou a “Xerazade birrenta” de tantas incontáveis matérias jornalísticas ou memórias, mas filho “daquela geração de asiáticos educados no ocidente que voltaram para casa, bigodes primorosamente aparados, para vender liberdade a seus compatriotas”:

“Servidores aplicados de uma mesma amante, La Patrie, esses turcos, árabes, persas e indianos liderariam os movimentos anticoloniais e transformariam o mapa do mundo”.

Mossadegh era espírito mais democraticamente orientado que Atatürk, por exemplo: de Bellaigue diz dele que foi “o primeiro líder liberal do moderno Oriente Médio ou da América”. Mas foi menos bem-sucedido que seus heróis, Gandhi e Nehru; estava próximo dos 70 anos e era hipocondríaco, quando afinal se tornou Primeiro-Ministro do Irã, em 1951.

Foi destino de Mossadegh ser liberal democrata num momento em que, como Nehru observou, vendo o modo como os navios de guerra britânicos comandavam o curso da política egípcia, “democracia em país oriental parece significar só uma coisa: mais um instrumento para exercer sobre nós o poder imperialista”.

Embora mais focados e com melhores recursos que al-Afghani, líderes moderados secularistas como Mossadegh tornaram-se vítimas fáceis dos imperialistas ardilosos. Jamais tiveram mais que uns poucos aliados “simbólicos” no ocidente; e foram desprezados no oriente, pelos fundamentalistas e linha-dura, que, adiante, assumiriam a tarefa pós-colonial de reconstruir a dignidade e força nacionais em vários locais do mundo.

O Aiatolá Khomeini, por exemplo, sempre falou com desdém de Mossadegh e de seu fracasso, por não ter cuidado de proteger o Irã contra o avanço do ocidente.

Todos, liberais e radicais iranianos sabem, de cor, muitos casos em que o país foi humilhado pelo ocidente no século 19, quando era dominado por britânicos e russos. Os eventos do início do século 20 minaram ainda mais a autonomia política do Irã, num momento em que as instituições políticas iranianas estavam sendo liberalizadas (havia parlamento recém estabelecido, como resultado da Revolução Constitucionalista de 1905-7).

Na Ia. Guerra Mundial, Grã-Bretanha e Rússia primeiro ocuparam, depois dividiram o país, para manter afastados os exércitos germano-otomanos. Nem o fim da guerra trouxe qualquer alívio. O Exército Vermelho ameaçava pelo norte, e os britânicos, já retalhando os territórios do Império Otomano, viram ali a oportunidade para anexar o Irã. Lord Curzon, então secretário do Exterior e convencido, nas palavras de Harold Nicolson, de que “Deus selecionou pessoalmente a classe superior britânica como instrumento da Vontade Divina”, impôs um acordo anglo-iraniano que, na prática, destruiu quase toda a soberania do Irã.

Conta-se que Mossadegh chorou, ao saber do acordo. Em desespero, decidiu emigrar para a Europa, com projeto para não voltar. Verdade é que Curzon, que nunca se destacou como arguto analista do humor dos nativos, subavaliara a reação local contra o acordo. O acordo foi denunciado; membros pró-britânicos do Majlis [Parlamento] foram fisicamente atacados. Ante tal oposição, Curzon endureceu ainda mais:

Essa gente tem de aprender, custe o que custar, que não sobrevivem sem nossa ajuda. Não me incomoda esfregar no chão esses narizes arrogantes”.

Apesar da dureza de Curzon, a firmeza dos iranianos fez naufragar o tal acordo por “Vontade Divina”. Mas outro acordo mais terrestre e igualmente desigual já ligava Irã e Grã-Bretanha.

Prescientemente, comprando ações da empresa de petróleo APOC (Anglo-Persian Oil Company) em 1913, Winston Churchill já garantira que 84% dos lucros da empresa fossem remetidos à Grã-Bretanha. Em 1933, Reza Khan, soldado autodidata que se aproveitou do caos pós-guerra para chegar ao poder, fundou nova dinastia reinante (para profundo desgosto de Mossadegh) e renegociou um novo acordo com a APOC, acordo que, como logo se viu, foi notavelmente idêntico ao anterior. 

Durante a IIa. Guerra Mundial, tropas britânicas e russas derrubaram o antigo Xá, caracterizadamente pró-germânico, e coroaram Muhammad Reza, filho dele.

Durante esses anos, a política britânica foi manifestação diária, sempre repetida, do que de Bellaigue chama, sem exagerar, de “desprezo profundo pela Pérsia e pelos persas” – desprezo que explica e oferece a fagulha que incendiaria, não só o real nacionalismo iraniano, como, também, a inamovível certeza, entre os iranianos, de que a Grã-Bretanha é “força maléfica”.

Quando, em 1978, o Xá acusou Khomeini de ser agente britânico, caluniou-o da forma mais viciosa, tentando uma operação de difamação para a qual não houvesse remédio possível. Mas a acusação saiu-lhe pela culatra e gerou o primeiro grande protesto de massa contra o Xá.

A empresa APOC, rebatizada como Anglo-Iranian Oil Company, AIOC, em 1935, alcançou lucros de $3 bilhões de dólares entre 1913 e 1951, dos quais só $624 milhões permaneceram no Irã. Em 1947, o governo britânico arrecadou £15 milhões em impostos só sobre os lucros da empresa; ao governo iraniano coube só metade disso, a título de royalties. A empresa também alijou da administração os cidadãos iranianos; e impediu Teerã de fazer qualquer tipo de auditoria em suas contas.

O crescente sentimento anti-britânico finalmente obrigou Muhammad Reza a nomear Mossadegh como Primeiro-Ministro no início de 1951. Entre os nacionalistas iranianos já havia então partidos secularistas, partidos religiosos e partidos comunistas, além de partidos da esquerda não comunista. Mossadegh – o qual, como narra de Bellaigue, “foi o primeiro e único estadista iraniano a reunir em todo de si todas as linhagens nacionalistas” – tratou imediatamente de nacionalizar a indústria do petróleo.

Dezenas de milhares de iranianos saudaram, nas ruas, os funcionários enviados de Teerã para ocupar as unidades da empresa britânica em Abadan; os carros cobertos de poeira eram beijados. Um desses carros pertencia a Mehdi Bazargan, que, mais tarde, seria o Primeiro-Ministro da República Islâmica do Irã. 

O embaixador dos EUA relatou que Mossadegh era apoiado por 95% da população; o Xá confessou a Averell Harriman, diplomata que o visitava, que não se atrevera a dizer uma palavra contra a nacionalização. Mossadegh sentia-se carregado nas asas da história. “Centenas de milhões de asiáticos, depois de séculos de exploração colonial, chegaram agora à independência e à liberdade” – Mossadegh discursou na ONU, em outubro de 1951; os europeus reconheceram os direitos à soberania e à dignidade nacional de indianos, indonésios e paquistaneses. Por que continuavam a ignorar o Irã?

Foi apoiado por ampla coalizão de novos países asiáticos. Até os delegados de Taiwan, que ganharam direito a um assento na ONU à custa da República Popular da China de Mao, lembraram os britânicos de que “passou o tempo em que o controle sobre a indústria do petróleo do Irã poderia ser partilhado com empresas estrangeiras”.

Outros regimes pós-coloniais também rapidamente nacionalizariam as respectivas indústrias de petróleo, o que lhes deu controle sobre os preços internacionais e deixou as economias do ocidente expostas a choques severos. Mas a Grã-Bretanha, enfurecida com a impertinência de Mossadegh e desesperadamente carente da renda que lhe advinha do, então, maior investimento britânico no exterior, nada via e nada ouvia.

A Grã-Bretanha já não tinha meios para manter o império, mas, como de Bellaigue anota, em vários locais, “sobretudo no Irã, prosseguia o desfile dos louros de bochechas rosadas, em ternos e coletes bem cortados, como se nada houvesse mudado”. Muitos deles trabalhavam como diretores da Anglo-Iranian Oil Company – e, como um deles confessou, eram “perdidos, resmungões, mesquinhos, sem qualquer ideia comum que os unisse, confusos, acovardados, de mente estreita, caolhos”. 

Ainda convencida de que os britânicos “haviam prestado grande serviço aos iranianos por ter encontrado e extraído petróleo”, a Grã-Bretanha rejeitou uma proposta, apoiada pelos EUA, de que os lucros fossem divididos igualmente entre iranianos e britânicos; e lançou campanha devastadoramente efetiva de bloqueio contra a economia do Irã. “Se hoje nos curvarmos a Teerã, amanhã nos curvaremos a Bagdá” – como publicou o Express, na velha lógica de Curzon.

O retorno de Churchill a Downing Street em 1951 levou os neoimperialistas a endurecer ainda mais: o Daily Mail exortou o governo a “agir imediatamente, antes que a podridão se alastre”. Rapidamente foi construído um consenso anti-Mossadegh, que envolveu também os liberais. 

Em 1891, al-Afghani já contestara a imagem criada por Reuter, segundo o qual os iranianos lutariam por soberania como fanáticos religiosos; e perguntara-se se a coisa teria algo a ver com o interesse comercial britânico. Em 1951, o Observer de David Astor apenas requentava e repetia “notícias” e palavreado de Reuter, para proteger interesses britânicos. Em 1951, o jornal apresentava Mossadegh como “fanático”, “um trágico Frankenstein”... obcecado por um nacionalismo xenófobo”. 

Nas palavras de de Bellaigue: “Havia inquietação em todo o mundo branco, ante o show de má vontade oriental, de Mossadegh”. O ministério de Relações Exteriores britânico iniciou campanha de propaganda para convencer os norte-americanos da justeza da causa britânica; a imprensa dos EUA, obedientemente, alinhou-se. 

O New York Times e o Wall Street Journal compararam Mossadegh a Hitler, mesmo quando seu populismo às vezes autoritário enfrentava oposição do Parlamento, cada vez mais dividido, além de uma crescente oposição interna, de comerciantes, proprietários de terras, monarquistas, militares e clérigos de direita e extrema-direita (alguns dos quais abririam a cerca para dar passagem aos primeiros aventureiros da CIA e do MI6).

Em The US Press and Iran: Foreign Policy and the Journalism of Deference [Imprensa nos EUA e Irã: política exterior e jornalismo de deferência] (1988), William Dorman e Mansour Farhang provam que nenhum grande veículo de imprensa nos EUA jamais deu voz às queixas dos iranianos contra a AIOC. Em vez disso, o Washington Post reclamava que o povo iraniano era incapaz de manifestar “qualquer emoção de gratidão”. Anos depois, escrevendo com remorsos sobre o próprio trabalho em Teerã, o correspondente do New York Times Kennett Love, apresentaria Mossadegh como “um homem razoável” tentando atuar sob “pressões não razoáveis”. Mas o próprio Love estava sendo, então, sutilmente coagido a obedecer aos que Love descreveu depois como “meus absolutamente obtusos editores pró-establishment” em New York, e a colaborar com a embaixada dos EUA.

Já tendo inventado e proclamado o “século americano”, o Time de Henry Luce dedicou particular atenção ao Irã-mercadoria: pregou que “os russos devem intervir lá, passar a mão em todo o petróleo e declarar a Terceira Guerra Mundial”. Os britânicos, já decididos a derrubar Mossadegh, logo se puseram a explorar a crescente obsessão dos norte-americanos com o expansionismo soviético: o Irã seria bom teste de como denegrir o nacionalismo asiático: associando-o ao comunismo soviético. Encontraram audiência receptiva nos irmãos Dulles (um, secretário de Estado; o outro, diretor da CIA no novo governo de Eisenhower), em 1953.

Trabalhando com fontes persas, de Bellaigue oferece informação de primeira qualidade sobre a “Operation Ajax” – o golpe montado pela CIA/MI6 que mudou o regime de Mossadegh e implantou lá o Xá Reza Pahlavi, em agosto de 1953, como imperador (quase) inamovível do Irã. 

A história de como EUA e Grã-Bretanha destruíram todas as esperanças dos iranianos de construírem para eles mesmos um estado liberal moderno já foi várias vezes contada. Mas as lições de 1953 ainda estão longe de terem sido bem aprendidas. 

Já em 1964, Richard Cottam, assessor político da embaixada dos EUA nos anos 1950s e, depois, professor e especialista em Irã, alertava para a evidência de que as “distorções” introduzidas por jornalistas, intelectuais e professores no que se sabe sobre a era Mossadegh beiram “o grotesco; e até que essa era possa ser analisada sob luz menos falsa, praticamente não há esperança de que os EUA construam política externa menos simplória, mais sofisticada e de melhor qualidade, para o Irã.” (E poderia ter acrescentado: para todo o Oriente Médio.) O New York Times deu destaque às renovadas esperanças imperiais, imediatamente depois do golpe que mudou o regime e derrubou Mossadegh:

“Países subdesenvolvidos e ricos em recursos aprenderam a lição, pagando o alto preço que têm de pagar todos quantos, como o Irã, se deixem tomar por nacionalismo fanático”. 

Apesar de informado muitas vezes por Kennett Love, o Times nunca fez qualquer menção ao papel protagonista que teve a CIA na “mudança do regime” de Mossadegh: aquela foi a primeira grande operação da agência, então desconhecida do grande público, de toda a Guerra Fria. Nas boas vindas que deu ao Xá, quando visitou os EUA em 1954, o Times exultava:

“Hoje, Mossadegh está onde tem de estar – na cadeia. O petróleo voltou a fluir para os livres mercados do mundo”. “E o Irã”, continuava o Times, “marcha rumo a novos e auspiciosos horizontes”. 

A imprensa-empresa nos EUA, que descrevia Mossadegh como “o Führer iraniano” aplaudia agora os projetos do Xá, de modernização faraônica. Foi resultado, pelo menos em parte, de o Xá garantir hospedagem de potentado aos figurões da imprensa-empresa nos EUA cujos nomes apareceram na lista divulgada pelos revolucionários iranianos em 1979 (Walter Cronkite, Barbara Walters, Peter Jennings e Mrs. Arthur Sulzberger).

Fortalecido por esse apoio, o antes tímido Xá começou a manifestar sintomas da síndrome que al-Afghani identificara em um dos predecessores:

“Por bizarro que pareça, não há dúvidas de que, após cada visita à Europa, o Xá aprofunda as ações de tirania contra o próprio povo”.

A imprensa-empresa nos EUA tinha pouco tempo a perder ouvindo iranianos médios. Mas os iranianos médios, já em 1953, como escreve de Bellaigue, viam os EUA como “novos cúmplices do Xá, na injustiça e na opressão”.

Empresas dos EUA ganharam fatia de 40% da produção de petróleo no Irã, depois de o regime de Mossadegh ser derrubado por golpe [“mudança de regime”]. No início da década dos 1960s, intelectuais iranianos, muitos deles forçados ao exílio, já haviam começado a pesquisar para descobrir como aconteceu de – nas palavras de Jalal al-e Ahmad, em Gharbzadegi [1] – os movimentos dos EUA terem permanecido absolutamente encobertos e ignorados, enquanto outros entravam e saiam do Irã; a ponto de “os iranianos só nos termos dado conta do que acontecera, depois de todas as torres de petróleo de empresas ocidentais já terem empalado nossa terra”.

A hostilidade dos iranianos contra os EUA só aumentou, ao tempo em que a CIA mantinha negociações regulares com torturadores e carrascos da polícia secreta do Xá. Até que a hostilidade saltou à tona, em 1979, chocando políticos e formadores de opinião nos EUA, que tentaram encontrar explicações para a revolução iraniana, como também tentaram encontrar explicações para o 11/9, em “interpretações” do Islã. 

Nenhum daqueles políticos e formadores de opinião percebeu que, como acontecera nos Protestos do Tabaco de 1891 e no levante nacionalista que levou Mossadegh ao poder, já se constituíra uma ampla coalizão nacional iraniana disposta a combater contra o Xá e seus aliados estrangeiros. 

Verdade é que, nos primeiros dias da revolução iraniana de 1979, os mossadeghistas (como Bazargan) apareciam em posição tão sólida e destacada quando seus aliados islamistas e socialistas. Mas dois fatores fizeram pender a favor dos revolucionários islamistas radicais a balança da indignação popular e do correspondente poder revolucionário: Jimmy Carter ofereceu asilo ao Xá em 1979; e só os estudantes islamistas encontraram meios para impor resposta/retaliação à altura da ofensa (e atacaram a embaixada dos EUA em Teerã).

A guerra brutal que Saddam Hussein impôs ao Irã durante oito anos, cinicamente auxiliado pelos EUA, forçou a República Islâmica a entrincheirar-se e ajudou a polir a imagem popular do Grande Satã. Sempre sob pressão, reformadores liberais que se reuniam em torno de Mohammad Khatami foram novamente enfraquecidos quando George W. Bush, repentinamente, decidiu incluir o Irã no seu “eixo do mal”. Depois disso, as invasões e ocupações pelos norte-americanos nas vizinhanças do Irã só fizeram confirmar a percepção dominante entre os iranianos de que o ocidente é incompetente e incapaz, tanto culpado do que Khomeini definiu comoistikbar i jahani (“arrogância global”).

Em nenhum momento estivemos mais próximos de guerra entre o Irã e os EUA, que nos últimos meses, com políticos e jornalistas norte-americanos atentamente dedicados a promover as sandices em tom de bravado de Binyamin Netanyahu. Praticamente não se vê sinal na “grande” mídia, nem nos EUA nem na Grã-Bretanha, de que alguém esteja prestando atenção ao trabalho de de Bellaigue e de outros notáveis intelectuais iranianos. 

Resenha do livro de de Bellaigue publicada recentemente no The Guardian insistia que “o Xá levou ao Irã prosperidade, segurança e prestígio que jamais tivera, desde o século 17”. Mahmoud Ahmadinejad – político menor, oportunista, cujo apoio vem diminuindo e que é consistentemente desaprovado pelo Supremo Líder, aparece pintado nos jornais como o próximo Hitler.

Simultaneamente os liberais ignoram os efeitos das sanções econômicas sobre os cidadãos comuns – exatamente como já fizeram nos anos 1950s – e os governantes optam por não ver que, agindo como agem, dão sobrevida a um regime já semidesacreditado. Isso, porque as sanções e o ataque obcecado pelo ocidente contra o governo iraniano reduzem (de fato, cancelam completamente) qualquer possibilidade de qualquer mudança política ou econômica no Irã – motivo pelo qual também o “movimento verde”, que se opõe ao governo da revolução popular islâmica, também se opõe às sanções econômicas impostas pelo ocidente. 

Os aiatolás parecem estar sendo hoje sustentados no poder, de fato, pelas sanções econômicas impostas pelos EUA; como os revolucionários cubanos parecem estar sendo sustentado no poder, de fato, pelo embargo econômico imposto pelos EUA. 

Mas o tempo passa e os iranianos, a cada dia, veem mais claramente exposta a hipocrisia dos EUA, que nada faz além de servir ao estado ilegal de Israel, o único estado em todo o Oriente Médio armado com bombas atômicas. Os iranianos sabem, é claro, que os EUA, em 2005, firmaram acordo nuclear com a Índia. Se há opinião que atravessa e impõe-se sobre todas as divisões políticas no Irã é a defesa do direito do Irã a manter seus programas de pesquisa nuclear. 

O ocidente aspirante a progressista e avançado é incompetente para analisar corretamente, dentre outras coisas, a força ainda não abalada do nacionalismo iraniano, provado em longos combates. Mais bizarro e perigoso é que ignoram o quanto e como a atitude do grupo e da classe dominante no Irã foi-se endurecendo e radicalizando, depois de um século de humilhações que o ocidente lhe impõe ou tenta impor. 

Em 1979, durante a crise dos reféns norte-americanos detidos no Irã, o Aiatolá Ali Khamenei, então jovem revolucionário e hoje Supremo Líder da República Popular Islâmica do Irã, disse, em resposta a ameaças dos EUA, há 33 anos:

“Não somos liberais do tipo que a CIA consegue assassinar, como Allende e Mossadegh”.

Sabia do que falava.



Nota dos tradutores
[1] Termo pejorativo, em persa. Apareceu no título [traduzido ao inglês como] Occidentosis: A Plague from the West [Ocidentose: a praga que veio do ocidente], escrito por Jalal Al-e Ahmad e publicado clandestinamente em 1962. Em inglês tem sido traduzido por Weststruckness, Westoxification, West-struck-ness”, “Westitis” (aprox. “ocidentalhagem” / “ocidentalice” / “ocidentite”, no sentido de “canalhagem” / “canalhice ocidental”, “ocidentose” / “infecção” / “doença ocidental”.

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