segunda-feira, 25 de junho de 2012

“Há hoje na Síria 20 milhões de não rebeldes e não desertores”


27/4/2012, Burak Bekdil, Hurriyet Daily News, Ancara, Turquia
Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu

Burak Bekdil
Os neo-otomanos em Ancara conseguiram muito habilmente voltar ao seu passado otomano – embora não aos tempos gloriosos: estão de volta aos dias de declínio do império.

Os turcos desempenharam vigorosamente o papel de líderes do mundo muçulmano. Agora porém, com o mundo muçulmano já profundamente empenhado em uma guerra cada vez mais provável sobre a linha precária que separa xiitas e sunitas, e com a Turquia descobrindo-se enredada numa aliança de sunitas... Ancara terá de contentar-se com, no máximo, a posição de estado-líder de uma seita de muçulmanos. É fatia bem reduzida do bolo, mas ninguém consegue fingir por muito tempo que seria tudo ao mesmo tempo.

Os sunitas árabes estão ligados numa aliança de conveniência com os sunitas turcos, perfeitamente conscientes de que é aliança apenas temporária. Tão logo a divisão sunitas/xiitas esteja claramente demarcada, a Turquia descobrirá que não há irmãos sunitas à sua volta. Descobrirá também que, dessa vez, os irmãos sunitas veem os turcos como rivais e como ameaça à irmandade árabe sunita – a menos, evidentemente, que o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan consiga provar que os turcos, no fundo, são árabes!

Em artigo recente, a revista The Economist dizia:

Com um pé no ocidente e outro no Oriente Médio, a Turquia conseguiu servir como mediadora entre facções rivais no Líbano; entre xiitas e sunitas, no Iraque; e entre Israel e Síria (até que, em 2009, Israel atacou Gaza).

The Economist citava Nikolaos Van Dam, ex-embaixador da Holanda em Ankara, para quem “A capacidade de falar com todos os lados fez da Turquia ator muito efetivo. Mas agora a Turquia escolheu lado” (Turkey’s foreign policy:Growing less mild, The Economist, 14/4/2012).
Recep Tayyip Erdoğan

De fato, há uma década não se via tanta tensão nas fronteiras sul e leste da Turquia. Hoje, a Síria está convertida, outra vez, em “questão militar”, como no final dos anos 1990s. Não é segredo para ninguém que o jogo de xadrez entre turcos e persas já está convertido em guerra fria que só faz esquentar, cada dia mais. Recentemente, o governo do Iraque declarou a Turquia “estado hostil”. E, como se sabe, o Sr. Erdogan já não é o astro-ídolo de rock que foi, aos olhos dos torcedores hooligans libaneses pró-Hezbollah. Alguém aí está lembrado dos “zero problemas com os vizinhos”?

Para tornar as coisas ainda mais desagradáveis, há a vastíssima hipocrisia que contamina tudo que tenha a ver com a crise síria.

Alguns dos fãs faça-chuva-faça-sol de Erdogan (disfarçados de intelectuais ativistas pacifistas) advogam explicitamente a favor de “ataques aéreos pontuais” contra a Síria. Quem atacará? Ah, sim, claro: os norte-americanos atacarão. Mas, cavalheiros! Vocês mesmos, ontem mesmo, não “exigiam” furiosamente que os EUA fossem mantidos “bem longe do Oriente Médio”?!

Além do mais, se “ataques aéreos pontuais” empreendidos por países que tenham poder de fogo para conter “regimes opressores que atacam o próprio povo” são considerados remédio legítimo... por que não se ouve qualquer campanha a favor de os russos mandarem muitos “ataques aéreos pontuais” contra o governo do Bahrain?

Fato é que o presidente sírio Bashar al-Assad pareceria terrivelmente simpático aos olhos dos seus muitos inimigos de hoje se, amanhã, desligasse seu país do eixo xiita. Já imagino as manchetes nos jornais ocidentais e turcos: “Novas informações de inteligência revelam que al-Assad foi vítima de propaganda terrorista. Jornalistas independentes confirmam que al-Assad é inocente...”

Bashar al-Assad
Semana passada, Erdogan anunciou, em tom festivo, que as sanções contra a Síria começavam a dar os resultados esperados, o que se comprovaria pelo fato de que o governo Assad estava sendo obrigado a distribuir cestas de alimentos à população síria. Mas... afinal: Erdogan é amigo ou inimigo do povo sírio?! O que haveria a festejar no suplício do povo sírio? É o mesmo Erdogan que tanto se opôs às sanções contra o Irã “porque sanções só castigam gente inocente?” Afinal: os “Amigos da Síria” querem castigar Assad ou querem castigar o povo sírio?

Se todos os sírios fossem rebeldes e desertores, a população síria alcançaria, no máximo, 1,5 milhões. Mas o FactBook da CIA informa que a população da Síria é hoje de 22.530.746  habitantes.

Há hoje na Síria, portanto, senhor primeiro-ministro, 20 milhões de não rebeldes e não desertores. 

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