domingo, 10 de junho de 2012

Líbia: “De Trípoli a Mitiga”


7-13/6/2012, Gamal Nkrumah, Al-Ahram Weekly, n. 1101, Cairo
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Gamal Nkrumah
As poderosas milícias locais estão, simultaneamente e muito estranhamente, ao mesmo tempo, minando as bases do nascente processo democrático na Líbia e fortalecendo o conceito de justiça social.

Nos últimos meses, cresce a onda de reclamações e protestos, sobretudo entre os mais jovens, contra a situação corrente na Líbia, de caos generalizado e condições cada dia mais degradadas de segurança. Impossível não se solidarizar com aqueles jovens, pelo menos até certo ponto.

A verdade é que quanto mais se batem os tambores de guerra, mas se faz avançar a agenda do caos. No ocidente, poucos têm ouvido falar sobre as milícias que varrem o interior da Líbia e espalham terror pelas calçadas das cidades líbias.

O sentimento da importância de não se render aos comandantes do Conselho Nacional de Transição líbio é cada vez mais forte entre as milícias armadas, que suspeitam que seus interesses estejam sendo devastados pelo novo governo líbio, o qual, por sua vez, dá sinais cada dia mais claros de não estar comprometido com as agendas locais das várias milícias.

As milícias reuniram-se pelas mesmas linhas de divisão clânica e tribal, por cidades e vilas, que, de início, definiam-se como as que apoiavam o líder deposto, Muammar Gaddafi, e as tribos e os clãs que se viam como os revolucionários que depuseram o ditador; e as correspondentes milícias armadas.

Os controversos eventos dessa semana na Líbia pintam quadro perturbador do atual estado da política da Líbia pós-Gaddafi. Seria injusto e errado não ver o sentimento profundamente enraizado de indignação que foi gerado pelo modo selvagem como Gaddafi foi assassinado.

A Líbia sempre foi profundamente marcada pelo tribalismo – plantado e cevado durante décadas pelos italianos, depois pelos britânicos e franceses e respectivos governos coloniais ao longo do século 20 e, em certo sentido, reinventado pelo próprio Gaddafi, por mais que dissesse defender uma identidade nacional árabe, não tribal, para todos os líbios.

Os amazighs autóctones, ou berberes, foram ultrajados, divididos e perderam poder político. Os tuaregues, amazighs de pele escura e nômades dos desertos líbios, tenderam a aproximar-se de Gaddafi, que, em associação com os anciãos tuaregues e as novas gerações, recrutou milhares de tuaregues para o exército líbio. Os tebus, outra tribo autóctone também de pele escura, não amazighs, grupo de etnia não árabe que vive no sul do país, também foram bem acolhidos por Gaddafi.

Milícias paramilitares (Al-Awfea) ocupam aeroporto de Trípoli
A surpresa veio com o evento ainda não completamente noticiado, da tomada do Aeroporto Internacional de Trípoli na 2ª-feira, 4/6 [1], pela Brigada Al-Awfea [“Legalista”], presumivelmente leal a Gaddafi, que se supõe que tenha vindo da cidade de Tarhouna, uma das últimas fortalezas gaddafistas a cair quando o país foi atacado pela artilharia aérea de EUA-OTAN. Os habitantes de Tarhouna são líbios evidentemente, de pele escura.

Se é verdade que a queda de Gaddafi trouxe outra vez para o palco da política líbia o fator tribal e racial, também é verdade que o governo de transição não passa de cortina que nada encobre e, simultaneamente, nada faz para reconciliar conflitos antigos.

A Brigada Al-Awfea declarou que a principal razão para a ação de invadir e tomar o Aeroporto Internacional de Trípoli foi protestar contra o misterioso desaparecimento de seu líder, coronel Abu Ajela Al-Habashi e chamar a atenção do mundo para o sofrimento do povo de Tarhouna e outros líbios de pele negra, no período pós-Gaddafi.

Foguetes lança-granadas, alguns tanques e fogo de artilharia pesada foram usados para ocupar a entrada e as cercanias do aeroporto. Aviões internacionais foram impedidos de decolar. Os passageiros, inclusive os que já estavam embarcados prontos para decolar, receberam ordens, de homens armados, para desembarcar e retornar aos hotéis. Aos olhos da Brigada Al-Awfea, a tomada do aeroporto foi uma espécie de sátira política, carregada de simbolismo e, sobretudo, de legitimidade.

A acusação que mais se faz contra a Brigada Al-Awfea é que prega e difunde estereótipos racistas que, cada dia mais, circulam na Líbia pós-Gaddafi. Mesmo assim, a ação no aeroporto gerou pânico entre as autoridades líbias, que bracejam num oceano de confusões. Todas as chegadas internacionais foram desviadas para Mitiga, o aeroporto militar de Trípoli.

Brigada Al-Awfea impede a partidas e chegadas no aeroporto de Trípoli
Não é a primeira vez que elementos descontentes da classe mais baixa da população de Trípoli empreendem ações contra os símbolos usados para propaganda da infraestrutura líbia. Mas a ação da Brigada Al-Awfea contra o Aeroporto Internacional de Trípoli é, até agora, de longe, a mais ousada e temerária.

Mas nem tudo, nesse evento, pode ser debitado a disputas intertribais, de chefes líbios que disputariam entre eles o controle sobre a Líbia pós-Gaddafi. Claro: os serviços públicos não são o que antes eram. No aeroporto, cancelaram-se alguns voos, mas, na 3ª-feira pela manhã as autoridades rapidamente retomaram o controle do aeroporto.

De interessante, o incidente permitiu que as forças de oposição renovassem os ataques contra o Conselho Nacional de Transição, que foi acusado de incompetente. As tribos líbias, historicamente, sempre desempenharam papel considerável no processo de criticar o poder central em Trípoli – papel semelhante ao que desempenham várias organizações da sociedade civil em outros países árabes.

De fato, mesmo que os conselhos dos anciãos, nas tribos, não sejam hoje o que foram e estejam substancialmente alterados, as disputas entre clãs rivais sempre foi traço constante da sociedade líbia. Gaddafi várias vezes serviu-se disso, jogando uma tribo ou clã contra outra, embora tenha mantido também alguma estrutura nacional de lei e ordem, que perdurou durante os 42 anos durante os quais governou o país.

Governos fracos sempre são criticados, em todo o mundo e em todos os tempos. E quanto mais fracos e vacilantes sejam ou pareçam ser aos olhos das massas, mais os governos inoperantes e ineficientes vão-se tornando alvo de protestos populares.

Os procedimentos de segurança linha-dura dos tempos de Gaddafi já não existem. Mas, depois do assassinato de Gaddafi, viu-se crescer em Trípoli uma falsa sensação de segurança nos aeroportos, palpável para quem visitasse a cidade. Mesmo assim, também era palpável na cidade a sensação de que a segurança em todo o país e a estabilidade estão em processo de rápida deterioração. Há armas demais, pelas ruas. Mesmo com tudo isso, a tomada do aeroporto por uma milícia tribal tem de ser interpretada em contexto político mais amplo.

Conjurar os velhos fantasmas de Gaddafi não pode distrair os líbios e levá-los a não ver os fracassos do Conselho Nacional de Transição. A falta de segurança na Líbia já é fonte de controvérsia no país. A Líbia prepara-se para as eleições nacionais de uma assembleia constituinte, em julho de 2012. As eleições foram adiadas, previstas como estavam para 19 de junho. O atraso propriamente dito indica o estado de confusão e desorganização do Conselho Nacional de Transição.

Depois das eleições, a assembleia terá de indicar um primeiro-ministro, um gabinete e uma autoridade constituinte, que redigirá uma nova Constituição para a Líbia. Depois, a Constituição – que se teme que venha a ser fortemente influenciada por grupos islamistas – será submetida a referendo popular e, se aprovada, haverá eleições gerais num prazo de seis meses, contados a partir do referendo. As próximas eleições gerais estão sendo saudadas como as primeiras eleições livres e justas na história da Líbia.

Mas o Conselho Nacional de Transição parece estar metendo os pés pelas mãos. A missão da ONU de apoio à Líbia deve, presumivelmente, estar supervisionando o alistamento de eleitores. O processo de alistamento, nem sempre adequada e homogeneamente conduzido nos vastos países do norte da África cria, mais uma vez, o risco de que haja arbitrariedades, sobretudo dado o grande número de partidos políticos fundados depois da queda de Gaddafi.

O Partido Justiça e Desenvolvimento, braço político da Fraternidade Muçulmana é, de longe, o partido maior e mais bem organizado. Outros partidos parecem ter expressão apenas regional, como o Partido Verdade e Democracia de Benghazi ou o Congresso Líbio Amazigh, que tem formação de base étnica.

A incerteza paira, como nuvem carregada, sobre a Líbia a ser democratizada pelos padrões ocidentais de democracia. Os líbios estarão preparados – e, sobretudo, será do interesse dos líbios – para abraçar um complexo pluralismo multipartidário, imediatamente depois de um processo de transição que pode, sem exagero, ser descrito como caótico? Ou tudo isso ainda levará a mais sangue e lágrimas?



Nota dos tradutores
[1]  Há notícia no Huffington Post, em: “Libya's Tripoli Airport Attacked By Disgruntled Militia (em inglês). O Estado de S.Paulo, como sempre, apenas copiou-colou matéria da Reuters, em: Milícia armada da Líbia cerca aeroporto de Trípoli—autoridade. O Globo, também como sempre, fez o mesmo, também como sempre: repetiu matéria da BBC “e agências” (?!) e diz que alguém disse sei-lá-o-quê à rede (pasmem!) Al-Jazeera.

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