16/12/2012, Patrick
Cockburn, The
Independent, UK (de Damasco)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Patrick Cockburn |
É
um dos vídeos mais horrendos da guerra na Síria. Mostra a degola de dois
homens, por rebeldes sírios; um dos degoladores é uma criança. Golpeia com uma
machadinha o pescoço de um homem de meia idade, obrigado a deitar-se na calçada
com a cabeça sobre um bloco de concreto. No final do filme, um miliciano,
aparentemente do Exército Sírio Livre, ergue pelos cabelos as cabeças decepadas,
em triunfo.
O
filme está sendo visto pelos sírios, em YouTube, reforçando os medos locais de
que a Síria esteja reproduzindo o naufrágio do Iraque, no mesmo tipo de guerra
que ali se viu nos anos que se seguiram à invasão norte-americana de 2003.
Reforça a ideia, entre as minorias sírias muçulmanas não sunitas, e entre
sunitas associados ao governo, como soldados e funcionários públicos, de que não
haverá futuro seguro para eles na Síria, caso os rebeldes vençam. Numa das
versões daquele vídeo – há várias versões em circulação – os homens degolados
são identificados como funcionários públicos, da comunidade de 2,5 milhões de
alawitas, a seita xiita na qual se incluem o presidente Bashar al-Assad e o
núcleo de seu regime. A degola, tão orgulhosamente filmada pelos degoladores,
pode bem convencer os alawitas de que não lhes resta alternativa e têm de lutar
até a morte.
Frente terrorista al-Nusra (braço da al-Qaeda) apoiada pelos EUA |
O
vídeo desmascara uma espantosa contradição que há no coração da política dos EUA
e aliados. Semana passada, 130 países reconheceram a Coalizão Nacional de Forças
Revolucionárias e da Oposição Síria como representante legítima do povo sírio.
Mas, ao mesmo tempo, os EUA denunciaram a Frente al-Nusra, principal força
efetiva de guerra dos rebeldes, como afiliada à al-Qaeda e organização
terrorista. Paradoxalmente, os EUA e o governo sírio fazem praticamente as
mesmas acusações de terrorismo contra a al-Nusra. O ridículo é ainda maior,
agora que tantos estados reconheceram a Coalizão Nacional como representante
legítima, porque nada garante que os rebeldes, dentro da Síria, aceitem a tal
Coalizão como sua representante. Multidões ensandecidas, em áreas ocupadas pelos
rebeldes no norte da Síria, na 6ª-feira passada, cantavam “Todos somos al-Nusra”
– em manifestação contra a decisão dos EUA.
Nadim Houry |
Vídeos
distribuídos por YouTube têm papel
central na guerra de propaganda que incendeia a Síria e é preciso investigar a
autenticidade e a origem de cada vídeo. No caso do vídeo da degola, os detalhes
são muito convincentes. Nadim Houry, vice-diretor da ONG Human Rights Watch no Oriente Médio e
Norte da África, examinou detalhadamente o vídeo, para identificar as
circunstâncias do fato, os degoladores e o local onde o vídeo foi filmado. Não
tem dúvidas de que é autêntico; e disse que tudo sugere que a degola tenha
acontecido em Deir el-Zhor (no leste da Síria). Mas moradores de uma área
próxima, ao norte, de Homs insistem em que aconteceu ali. As vítimas não foram
identificadas. O vídeo foi exibido pela primeira vez dia 26/11, em noticiário da
rede Sama de televisão, pró-governo, mas continuava a ser visto pelo YouTube em toda a Síria , durante toda a
semana passada.
O
filme começa mostrando dois homens de meia idade algemados juntos, sentados num
banco, numa casa, cercados pelos captores, que às vezes os esbofeteiam e
espancam. Em seguida, são levados para a calçada. Um homem de camisa preta é
puxado pelas mãos e chutado até cair com a cabeça sobre um bloco de concreto. Um
menino, que aparenta ter 11 ou 12 anos, golpeia o pescoço do homem com uma
machadinha, mas não consegue separar a cabeça. Um homem, depois, conclui o
trabalho e decepa a cabeça. O segundo homem, de camisa azul, também é forçado a
deitar-se, com a cabeça sobre um bloco e é degolado. As cabeças são erguidas
frente à câmera e, em seguida, postas sobre os cadáveres. O menino sorri,
fazendo pose ao lado do cadáver sem cabeça.
O
vídeo dessa execução é muito semelhante a outros que a al-Qaeda filmava e
distribuía no Iraque, para demonstrar que não tinha piedade dos inimigos. Nem
chega a surpreender que vários dos homens mais experientes da Frente al-Nusra
vangloriem-se de, até recentemente, terem combatido contra o governo
predominantemente xiita do Iraque – parte da franquia local da al-Qaeda. A
agenda, naquele caso, era absolutamente sectária, e todos manifestaram
entusiasmo muito maior por massacrarem xiitas, quase sempre com bombas detonadas
no centro de multidões, em mercados ou em praças em frente a mesquitas, do que
por combaterem norte-americanos ocupantes.
O
levante sírio, que começou em março de 2011, nem sempre foi tão sangrento, nem
tão claramente controlado pelos sunitas, que constituem mais de 70% da população
síria, de 23 milhões. De início, as manifestações foram pacíficas, e as
principais demandas dos manifestantes visavam a governo democrático e respeito
aos direitos humanos, contra governo violento, arbitrário e autocrático. Muitos
sírios ainda dizem que o movimento contra o governo ainda é, até hoje, o traço
central do levante, mas há abundantes provas de que o movimento já desliza na
direção de converter-se em guerra santa, com traços do fundamentalismo islamista
mais sectário.
O
vídeo da degola é a mais clara comprovação visual de que a radicalização
religiosa aprofunda-se cada vez mais entre os rebeldes, mas não é a única. Outro
vídeo recente mostra milicianos do Exército Sírio Livre incendiando e depredando
uma husseiniyah (casa de estudos
religiosos e reuniões, semelhante às mesquitas) xiita em Idlib, no norte da
Síria. Cantam hinos religiosos de vitória, enquanto incendeiam o prédio e
estandartes e estampas usados nas procissões religiosas dos xiitas.
Mesquita Sayyida Zeinab em Damasco |
Se
o Exército Sírio Livre repetisse esse tipo de ataque em algum grande templo dos
xiitas, como a mesquita Sayyida Zeinab em Damasco, à qual no passado sempre
acorreram milhões de peregrinos iranianos e iraquianos, e que, hoje, está quase
completamente cercada por rebeldes, certamente provocariam uma explosão de ódio
e intolerância religiosa entre sunitas e xiitas em todo o Oriente Médio.
Observadores iraquianos têm alertado para o fato de que foi a destruição do
santuário xiita em Samarra, norte de Bagdá, por bomba da al-Qaeda, em 2006, que
detonou uma guerra sectária que fez dezenas de milhares de mortos.
Bashar al-Assad |
Essa
analogia com o Iraque é fator que muito preocupa os governos dos EUA e da
Grã-Bretanha. Os dois governos e seus aliados temem repetir, na Síria, os erros
desastrosos que as forças de ocupação cometeram no Iraque. Em termos ideais,
esses governos querem mudar o regime, derrubar Bashar al-Assad e as atuais
lideranças, mas não querem desmontar completamente a máquina burocrática de
governo, nem introduzir qualquer mudança revolucionária, como fizeram em Bagdá,
quando transferiram o poder, à força, de sunitas para xiitas e curdos. Esse erro
provocou furiosa contrarreação dos Baathistas e sunitas que se viram
economicamente empobrecidos e marginalizados.
Washington
quer ver-se livre de Assad, mas não está conseguindo controlar o tigre
revolucionário sunita. As potências ocidentais sempre sonharam com promover uma
divisão dentro da elite sunita, mas, até agora, não se vê sinal de que isso
esteja acontecendo. “Se se tomam as deserções, para avaliar a coesão política,
então não há divisão alguma, porque, até hoje, não houve deserções realmente
importantes” – disse um diplomata em Damasco.
A
Síria de hoje faz lembrar o Iraque também em outro aspecto perturbador. Já estou
há dez dias em Damasco e, todos os dias, vejo provas de que a situação em áreas
da Síria que visitei é absolutamente diferente do que o mundo vê, seja através
do que dizem líderes estrangeiros, seja pelo que diz a imprensa-empresa global.
A
última vez em que tive essa impressão, assim tão clara, foi em Bagdá, no final
de 2003, quando todos os iraquianos com quem eu falava já sabiam que a ocupação
comandada pelos EUA era absoluto desastre, ao mesmo tempo em que George W
Bush , Tony Blair e praticamente toda a imprensa-empresa global
insistia em pintar um quadro de progresso rumo à estabilidade e à democracia,
sob a sábia inspiração de Washington e de seus cúmplices iraquianos selecionados
a dedo.
Anders Fogh Rasmussen |
A
imagem da Síria que se vê no exterior mostra os rebeldes cercando a capital, com
o governo de Assad usando seus últimos trunfos, já antevendo a derrota para
dentro de algumas semanas, poucos meses, no máximo. O secretário-geral da OTAN
Anders Fogh Rasmussen disse, semana passada, que o regime “aproxima-se do
colapso”.
A
imprensa-empresa mundial exibe perfeito consenso, segundo o qual os rebeldes
estariam avançando em todas as frentes, e a vitória estaria ao alcance da mão.
Nada mais falso. Quando alguém chega a Damasco, descobre rapidamente que os
sírios bem informados e os diplomatas dizem que, ao contrário, os recentes
avanços rebeldes na capital já foram destruídos pela contraofensiva do Exército
Sírio.
Para
todos esses, os avanços territoriais dos rebeldes, apresentados no ocidente como
sinal de que o governo sírio estaria implodindo, são explicáveis, pelo menos em
parte, por uma nova estratégia do Exército Sírio, que optou por se retirar de
pontos nos quais a defesa é mais difícil, para concentrar forças nas maiores
cidades.
Vez
ou outra, Damasco ouve fogo de artilharia ou a explosão de um carro-bomba. Mas a
cidade absolutamente não está sitiada. Dirigi para o norte, 160 km até Homs, terceira
maior cidade da Síria, com população de 2,3 milhões, absolutamente sem qualquer
dificuldade. Homs, onde nasceu o levante, está sob controle do Exército Sírio,
exceto um bairro, a Cidade Velha, onde se concentram milícias do Exército Livre.
Pontos nos quais se concentravam essas milícias, em Damasco, foram bombardeados
pelo Exército Sírio, e a maioria dos habitantes fugiram para outros bairros da
capital.
O
diretor do hospital militar Tishreen (1.000 leitos), que recebe doentes de
grande parte do sul do país, disse-me que o hospital está recebendo 15-20
soldados feridos por dia, com cerca de 20% de mortes. Esses números indicam ação
de atiradores, assassinatos e emboscadas em pequena escala, mas não sugerem luta
que se encaminhasse para o fim.
Nada
disso implica que o governo sírio esteja em posição confortável.
Não conseguiu ainda retomar Aleppo, no sul; nem a Cidade Velha,
em Homs. Não tem tropas suficientes para manter permanentemente nas áreas
retomadas de Damasco. Em termos gerais, a posição diplomática e militar do
governo de Assad está, sim, sendo corroída lentamente, e aumentam as
dificuldades. Mas isso não significa que esteja derrotado, ou próximo da derrota
– exceto, claro, se houver intervenção direta da potências ocidentais, como
aconteceu no Iraque e na Líbia; mas nada disso parece viável, hoje.
Todas
as distorções na informação que se divulgam sobre a Síria são alimentadas pela
propaganda, mas, muito mais, pelos relatos imprecisos, tendenciosos e viciosos
da imprensa-empresa ocidental, cujo viés contra o governo e a favor dos rebeldes
é o maior que o mundo jamais viu, desde o auge da Guerra Fria. Relatos
tendenciosos fazem crer que os rebeldes tenham muito mais força ou que sejam
muito mais populares do que de fato têm e são. Em parte, a responsabilidade por
isso cabe ao governo sírio – que impede a entrada de jornalistas no país, exceto
uns poucos. Assim, o regime criou um vácuo de informação que o inimigo,
evidentemente, ocupa rapidamente.
Nesse
contexto, a opinião pública mundial só tem acesso a relatos falsos, que têm
objetivos propagandísticos muito evidentes, sobre os eventos na Síria,
construídos e distribuídos por uma imprensa-empresa simplória e crédula, que usa, sem verificar, as informações que lhe chegam de fontes pró-oposição, como se daí
pudesse sair alguma informação objetiva, a ser divulgada como jornalismo
objetivo.
O
caso do vídeo da degola é exemplar. Não encontrei um único sírio, em Damasco,
que não tivesse assistido àquele vídeo. É documento que está influenciando
profundamente o modo como os sírios pensam o próprio futuro. Mas não foi
noticiado nem comentado por nenhum veículo da imprensa-empresa global (fora da
Síria). Não há dúvidas de que é horrendo. Não há dúvidas de que a selvageria
naturalizada é repulsiva. Mas não são essas as razões pelas quais o vídeo está
sendo ocultado da opinião pública. O vídeo não foi exibido porque, só ele, basta
para desmentir grande parte do que dizem os líderes mundiais e os veículos da
imprensa-empresa global, sobre o que acontece por aqui.
Amigos, vcs teria o vídeo? Se tiver posta o link pra gente ai:
ResponderExcluirPrezado Sturt Silva
ExcluirÉ claro que temos o vídeo (está no YouTube), mas decidimos não postá-lo, pois é uma exposição de violência e crueldade além do interesse informativo do nosso bloguinho. Note que igualmente não postamos o vídeo do assassinato de Gaddafi (horror sermelhante)quando de sua ocorrência. Consideramos que a descrição do Cockburn é suficientemente clara e detalhada para se conhecer o ocorrido.
Abraço
Castor