sábado, 22 de março de 2014

Pepe Escobar: “China, Crimeia e Pashtunistão”

21/3/2014, [*] Pepe Escobar, Russia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A área verde do mapa, ultrapassando fronteiras do Paquistão e Afeganistão, é o que Pepe Escobar chama de " Pashtunistão"
No centro do tumulto que Afeganistão e Paquistão enfrentam simultaneamente está o tabu de todos os tabus: o Pashtunistão. Como se interconectam o sonho de uma terra comum dos pashtuns e a secessão da Crimeia, que se separa da Ucrânia? E o que pensa a China, disso tudo?

Comecemos com o Paquistão. “Especialista” norte-americano da contrainsurgência, guru do general David Petraeus já caído em desgraça, David Kilcullen, insiste que o Paquistão está implodindo. Sem novidade: gente como essa gente é paga para predizer o caos.

Como sempre, a coisa aí é também muito mais nuançada. O Primeiro-Ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, está de fato tentando impedir que o Paquistão imploda. Por isso quer um acordo com o Talibã no Paquistão, o TTP.

O partido de Sharif, o PML-N, é conservador em termos religiosos e liberal, em termos econômicos. É partido intimamente conectado com os partidos religiosos do Paquistão. Sharif sabe que tem de ser cuidadoso na região do Punjab, por causa da popularidade dos jihadistas anti-xiitas – o grupo Sipah-e-Sahaba.

Um ramo do Sipah – o temido Lashkar-e-Jhangvi – também mata rotineiramente muitos xiitas em Sind e especialmente no Baloquistão. Sharif concluiu que não pode permitir uma aliança entre o TTP (o Talibã Paquistanês, com base nas áreas tribais) e grupos jihadistas ativos no Punjab.

Sharif é também homem de negócios. Ele sabe que o único modo de pôr novamente nos trilhos (como se algum dia tivesse estado...) a economia do Paquistão é acabar com a guerra civil. Esse é o arcabouço do argumento por trás do atual “processo de paz”. É o que Sharif disse aos chineses (aliados chaves) no verão passado, quando visitou Pequim.

Até agora, ainda não foram discutidas as questões realmente espinhosas no processo de paz. O TTP quer a lei da Xaria imposta em todo o Paquistão. Nenhum governo paquistanês jamais aceitará isso.

Inimigos do estado 

Os grupos de contato, dos dois lados, são muitíssimo interessantes. No lado do governo está um general aposentado, Muhammad Amir, ex-chefe do conhecido Inter-Services Intelligence (ISI), a CIA paquistanesa. Mas lá está também o grande jornalista Rahimullah Yusufzai, que trabalha em Peshawar, provavelmente a maior autoridade mundial em tudo que tenha a ver com as áreas tribais paquistanesas.

No lado do TTP está ninguém menos que o super mulá Samiul Haq, diretor da “Harvard Talibã”, em Akhora Khattak, próximo de Peshawar, instituição que formou gerações de Talibã (exclusivo para vocês: foi graças a uma carta assinada por Haq que eu e meu fotógrafo escapamos de ser metidos na cadeia pelos Talibã em Ghazni, em 2000, quando “invadimos” uma base militar abandonada).

Soldados do Exército paquistanês (foto Mian Khursheed)
O exército paquistanês não gosta, nada, nada, desse “processo de paz”. Principalmente o ISI, que conservam conexões muito íntimas com muitos grupos jihadistas que colaboram com o ISI em questões estratégicas de Islamabad nas relações com o Afeganistão e/ou a Índia. Nem é preciso dizer que o Talibã Afegão, com Mullah Omar ainda, quase com certeza, em Quetta (e como é possível que nenhum drone de Obama jamais o encontre?) além do grupo Haqqani, no Waziristão Norte, continuam muito próximos do ISI.

E no Punjab outro ninho de terríveis jihadistas – o grupo Lashkar-e-Taiba, autor do atentado à bomba em 2008, em Bombaim – são, pode-se dizer, “protegidos” pelo exército paquistanês.

Mas o TTP é completamente outro assunto. Diferentes de todos esses outros jihadistas, eles atacaram o estado e o exército paquistaneses cara a cara. É preciso ter colhões. Não surpreende que o exército os veja como inimigos do estado – além de serem manipulados por estrangeiros (adivinhem quem).

O TTP é pântano impenetrável. São pelo menos 30 diferentes grupos, que, todos, juraram fidelidade a Baitullah Mehsud em 2007. Os drones de Obama continuam matando Mehsuds (Baitullah, em 2009; Hakimullah, em 2013), mas o TTP nunca morre. E a família Mehsud permanece no comando.

Eu definiria a família Mehsud como um grupo de guerrilheiros pashtuns com base nas áreas tribais muito próximas do Afeganistão. É guerrilha, sim, contra o estado, que eles veem como um bando de traidores porque colaboram com os norte-americanos desde o 11/9. Alternativamente, também se pode dizer que os EUA, no Paquistão, estão em guerra, na essência, contra uma família – e há mais de uma década.

Mapa legendado do Afeganistão/Paquistão o que ajuda a entender a multiplicidade de grupos étnicos na região (clique na imagem para aumentar)
Agora, as coisas mudaram um pouco. O novo líder dos TTP é Mullah Fazlullah. É original de Swat, e tem base nas áreas tribais de Mohmand e, até, em Kunar e no Nuristão, no Afeganistão (locais ultra linha-dura, ultra-ultra conservadores). Significa que a sua base principal já não está no Waziristão. É caso de perguntar se a gangue dos drones em Nevada, EUA, já sabe disso.

Tem havido muita conversa no Paquistão de que o próprio mulá Omar, em pessoa, teria intervindo, tentando unir as agora disparatadas facções do TTP, para fazer avançar o diálogo com Islamabad. Por quê? Porque, com a OTAN fora do Afeganistão no final de 2014, o que o Talibã no Afeganistão quer é reunir todos os pashtuns dos dois lados da fronteira, e, então, avançar para tomar Kabul – num replay de 1996.

Washington, previsivelmente, tem muito medo de um processo de paz Islamabad-TTP. Com isso, “Al-Qaeda”, o coringa perene, estaria de rédea solta nas áreas tribais, outra vez. Mas, seja como for, parece que ali só restaram uns poucos “Al-Qaedas”; todo mundo partiu para o Levante.

Mesmo assim, o jogo de longo prazo de Washington é continuar a inventar teorias conspiracionais sem fim no Paquistão – apostando no caos no país para, mais cedo ou mais tarde, tentar passar a mão nas armas atômicas do Paquistão, nos termos em que o ISI vê as coisas. Mas o atual processo de paz foi mais ou menos “aprovado” por Washington. E a guerra dos drones mais ou menos prossegue. Por enquanto.

Karzai ataca novamente

Mês que vem haverá eleições no Afeganistão. O esperto presidente Hamid Karzai anda ocupado promovendo “seu” candidato à presidência, Zalmay Rassoul. Indicou o ex-Ministro do Interior e presidente da Câmara Baixa do Parlamento, Younus Qanooni, candidato à vice-presidência, em substituição ao recentemente falecido Mohammad Fahim.

Hamid Karzai - Presidente do Afeganistão (foto Mohammad Ismail)
Qanooni, como Fahim, vem do vale do Panjshir e foi muito próximo do legendário Ahmad Shah Massoud, o “Leão do Panjshir”, assassinado pela Al-Qaeda dois dias antes do 11/9. Qanooni opôs-se ao bombardeio pelos EUA em 2001 e jamais baixou o tom das críticas a Karzai.

Karzai joga brilhantemente seu jogo pelo poder, porque reforça suas conexões tadjiques, ao mesmo tempo em que mina a candidatura de Abdullah Abdullah, favorito de Washington. O candidato de Karzai, Rassoul, agora, atrai o apoio de um grupo “misto”, pashtun/tadjique.

A eleição presidencial afegã será decidida no segundo turno. Então, sim, se verá quem os altos comandantes mujahideen – de Ismail Khan em Herat, a Gul Agha Sherzai em Kandahar – estão realmente apoiando. E como Karzai manobrou mais uma vez para obter o que quer.

Do ponto de vista de Washington, Rassoul pode ser aceitável, porque quer assinar o tal muito controverso Acordo sobre o Estado das Forças [orig. Status of Forces Agreement (SOFA)] que permitirá a permanência de tropas “residuais” dos EUA no Afeganistão.

Ou, pelo menos, Rassoul disse que assinará, depois de subornar todos os senhores-da-guerra relevantes. Rassoul sabe que, se isso acontecer, todos os Talibã saltarão sobre sua garganta, por mais pashtun que ele seja. O mais provável, se for pashtun esperto, é que esteja dizendo uma coisa e pensando em fazer outra.

Assim se vê que há dois processos de paz paralelos em andamento no Paquistão e no Afeganistão. O problema chave é que a “paz” que se obtenha no Paquistão pode traduzir-se em caos no Afeganistão, porque então o Talibã Afegão estará reforçado pelo Talibã Paquistanês “liberado” numa ofensiva contra o novo governo em Kabul.

Combatentes paramilitares no Paquistão (foto Aamir Qureshi)
Alguns combatentes do TTP persuadidos pelo exército paquistanês estão agora em segurança estacionados na fronteira – especialmente nas áreas supracitadas de Kunar e Nuristão. E ali estarão protegidos pelos serviços de segurança afegãos – como lastimam os paquistaneses.

Que ninguém se engane: a rivalidade Paquistão-Afeganistão permanece extremamente feroz. E nem poderia ser diferente: o Afeganistão jamais reconheceu a Linha Durand, que lhes roubou muitas de suas próprias terras pashtuns. Culpa do Império Britânico, há mais de 100 anos. Essa ainda é a chave para toda essa confusão.

Não há dúvidas de que os pashtuns dos dois lados da fronteira estão prestando imensa atenção à Crimeia. Uma secessão semelhante levaria ao resultado com que sonham a vida inteira – o Pashtunistão. O problema é que teriam de combater ao mesmo tempo contra dois governos centrais – Kabul e Islamabad. E, em termos de representação, os Talibã, dos dois lados da fronteira, com certeza não respondem pela maioria dos pashtuns.

Só queremos fazer dinheiro

A posição da China acrescenta ainda mais tempero a esse cozido. Pequim está focada como um laser na retirada de EUA e OTAN, por bem, do Afeganistão, no final do ano. Será um posto a menos do Império das Bases dos EUA – próximo demais, para o conforto da China, de suas fronteiras.

Pequim quer um Afeganistão que gere lucros. Não parece possível, no futuro que se vê. Em 2008, as empresas Chinese Metallurgical Group e Jiangxi Copper Co. compraram um arrendamento por 30 anos em Mes Aynak – a maior mina de cobre do planeta – na província de Logar, por, nus e crus, US$3 bilhões.

Drone MQ-1B utilizado pelos EUA para assassinar civis e líderes tribais no Af-Pak
(Foto Julianne Showalter)

Então, os Talibã começaram a atacar a mina. E Pequim começou a olhar para o Afeganistão mais como dor-de-cabeça de segurança, que como fonte de lucros – mesmo tendo entrado numa cooperação de segurança com o governo Karzai.

Fator altamente complicador é que Pequim identificou os atacantes Talibã como originados do Paquistão. Acrescente-se a isso que os uigures andam para lá e para cá com o Paquistão, onde recebem treinamento para “desestabilizar” Xinjiang, e tem-se um importante problema entre os aliados Pequim e Islamabad. Pequim está intrigada, porque parece que Islamabad nada faz para deter essas infiltrações.

E a coisa fica ainda mais complicada quando já se sabe na região que alguns ativistas uigures têm sido infiltrados/manipulados – por décadas – pela CIA. Assim sendo, se você estiver cruzando do norte do Paquistão para Xinjiang, paralelo à estrada Karakoram, há forte probabilidade de você ser espião norte-americano – como Pequim vê as coisas.

Mas ainda não há nada suficiente para provocar ruptura séria entre Pequim e Islamabad. Os dois lados concordam absolutamente com pôr EUA e OTAN para fora do Afeganistão. Os dois lados concordam que não se deve dar voz aos Talibã no novo Afeganistão (para a China, está fora de questão; para o Paquistão, tudo depende de o quanto os Talibã aceitem ceder).

Acima de tudo, os dois absolutamente concordam com construírem-se cada vez mais laços comerciais – com o Paquistão podendo contar com todos os lucros de um corredor comercial que vá do porto Gwadar a Xinjiang. E os dois definitivamente concordam em mais um ponto: se a Crimeia vier a inflar o sonho do Pashtunistão, será/seria um novo jogo; totalmente novo, imensamente imprevisível e “desestabilizante” novo jogo.
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009. 

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