terça-feira, 11 de março de 2014

Lembrem-se da Rumélia Oriental

8/3/2014, [*] Glen Newey, London Review of Books (Blog)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Entreouvido na Vila Vudu: Chegou ordem do alto do morro para traduzir; sim-senhor, e já. Ensaio à inglesa, de primeira qualidade. Biscoito finíssimo. É nóiz. Vam-ke-vamo. [pano rápido]  

Rumélia Oriental (Eastern Rumelia) em 1878 na divisão do Império Otomano
Em 1878, a guerra russo-turca estava no auge, os britânicos temiam a expansão russa, e G.H. MacDermott, astro do music-hall, cantarolava seu número [1] que deu à língua inglesa (e outras [2]) a palavra jingoism, “jingoísmo”. Como McDermott cantava, “Já combatemos esse Urso antes” e “Temos os navios, temos os homens, temos também o dinheiro”.

Agora, temos poucos homens, não temos porta-aviões e estamos quebrados. Só restou, como guincho repetido, o tom moralista altissonante.

Um governo democraticamente eleito, embora com mãos sujas de muito sangue, é deposto por uma oposição que inclui fascistas dos partidos Setor Direita (Pravy Sektor) e Svoboda (Liberdade). A nova junta, embora não eleita, é saudada pelas potências ocidentais como “o governo da Ucrânia”, seu ministro de Relações Exteriores é festejado no Europolo.

A Rússia age para proteger seus ativos estratégicos na região, sobretudo os portos no Mar Negro que alugou de Kiev; os interesses russos incluem também os gasodutos que cortam o território da Ucrânia e os muitos falantes de russo e cidadãos russos que vivem dentro das fronteiras ucranianas.

Tudo isso é ferozmente condenado pelo Executivo e pelo Legislativo dos EUA; um pouco menos pela União Europeia. A União Europeia há muito tempo cortejava a Ucrânia prometendo-lhe acesso, para grande temor dos russófonos no leste do país.

Entrementes, um plebiscito rapidamente organizado sobre a soberania da Crimeia é condenado pelo “governo” em Kiev e por euro-líderes.

A reunião da União Europeia na 5ª-feira (6/3/2014) sobre a crise ofereceu o mínimo imaginável. A Polônia e os estados do Báltico, por razões óbvias, favorecem uma linha dura. O Comunicado soou como brandir uma escova de dentes. Ali, nenhuma surpresa. Assistam a abertura - vídeo em inglês:


Nós na União Europeia, precisamos do gás russo. O comércio entre União Europeia e Rússia equivale a 15 vezes o dos EUA.

Sem exército europeu e sem canhões, ameaçar cortar o comércio é como ameaçar jogar um pudim de passas na cara de alguém. Eurotolos juram que cancelarão a próxima reunião de cúpula UE-Rússia; essa, deve ter feito o Kremlin engasgar de rir.

Sem meios para projetar força, a UE pode pelo menos indulgenciar nas fantasias morais dos impotentes. E os EUA, herdeiros das ambições imperiais britânicas na Ásia Central, permanecem no Afeganistão. E condenam reduntantemente a assertividade russa.

Sebastopol oferece interessante comparação com Guantánamo, outra base naval também alugada em país hospedeiro (embora Havana jamais veja a cor do dinheiro). Isso, claro, no “quintal dos EUA”, que agora parece estender-se já até o Mar de Aral e além dele: os EUA, diretamente ou mediante procuradores, estão no Afeganistão já há trinta e tantos anos.

A Rússia, ao invadir o próprio quintal para proteger seus ativos estratégicos violou tanto a soberania ucraniana, quanto John Kennedy violou soberania na Baía dos Porcos em 1961; a Crimeia, pelo menos, muito diferente nisso, de Cuba, abriga número considerável de cidadãos do país invasor.

Vladimir Putin
Com a displicente falta de perspectiva histórica que marca a atual geração de políticos, o vice-primeiro-ministro disse na tevê, essa semana, que a Rússia agia como se a Guerra Fria ainda estivesse em curso. Mas Putin tem mais de czar que de comissário, e suas ambições são imperiais.

No florescente verão Vitoriano, preocupações com o expansionismo russo significaram apoio vital aos otomanos (chamados, meio incongruentemente, de “os doentes da Europa”), querelas na Crimeia, o “Grande Jogo” no Afeganistão, e tentativas no Congresso de Berlin em 1878 para conter a maré do pan-eslavismo o qual, como então se temia, daria ao “Urso” um habitat na Europa continental. Em Berlin, a Grã-Bretanha insistiu em criar o pseudo-estado da Rumélia Oriental no norte da Trácia, como contrapeso multiétnico ao irredentismo [3] eslavo. Durou sete anos inteiros.

O que quer o jogo em que se meteram EUA−UE? Que os russos saiam da Crimeia? Mas não há meio confiável de conseguir que façam tal coisa. Criar um falso estado amigo da UE no oeste da Ucrânia? Ou meter tudo, Carcóvia e Donetsk, junto com Kiev, numa grande barraca, em mais um exercício de construção-de-estado do tipo que o ocidente tem patrocinado com tããããããão notável sucesso nos últimos anos?

Como a Spectator disse uns poucos anos depois de Berlim: “o experimento de Lord Beaconsfield já dura cinco anos, e o resultado anunciado pelo povo da Rumélia Oriental é desastroso fracasso”.




Notas dos tradutores

[1] Leem-se os versos (ing.) em: We Don’t want to fight − Não queremos lutar... (“McDermott's War Song − a.k.a. The Jingo Song”) [O canto de guerra de McDermott, também chamada “A canção do Jingo”]) [excerto]:

[coro]
“Não queremos lutar, mas, por Jingo!, se lutarmos,
Temos os navios, temos os homens, temos também o dinheiro
Já combatemos esse Urso antes, e se somos verdadeiros britânicos,
Os russos não terão Constantinopla!”

Escrita e composta por G.W.Hunt, 1877 - Apresentada por G.H. McDermott (1845-1901).

[2] Em port., o Dicionário Houaiss registra: jingo. 1 hist pol. Alcunha que recebeu na Inglaterra, em 1878, todo aquele que era a favor de uma guerra imediata contra a Rússia. 2 Patriota fanático.

[3] Irredentismo. 1 hist.pol movimento dos irredentistas, patriotas italianos que, do último quartel do séc. 19 ao início do séc. 20, se empenharam em obter a incorporação à Itália de territórios sob domínio estrangeiro [A Italia irredenta – Itália não resgatada – compreendia as seguintes localidades: Trentino, Gorízia, Ístria, Trieste, Ticino, Nice, Córsega e Malta, regiões ligadas à Itália e aos italianos pela língua e pelos costumes]. 1.1 p. ext. pol. política ou doutrina política por meio da qual uma nação advoga a recuperação de terras que lhe tenham sido tomadas ou a incorporação de um território cultural e historicamente ligado a ela mas que se acha sob domínio estrangeiro (Dicionário Houaiss).
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[*] Glen Newey é um filósofo político inglês, professor de Teoria Política na Université Libre de Bruxelles, na Bélgica. Até 2011 foi professor na School of Politics, International Relations & Philosophy na Keele University , Staffordshire , England. Membro proeminente da escola “realista” de filósofos políticos que também inclui figuras como Bernard Williams , John N. Gray , e Raymond Geuss.

Newey anima regularmente seu blog no site da London Review of Books com uma variedade de tópicos, incluindo a política exterior do Reino Unido, política universitária, finanças e cultura. Tem posição fortemente crítica ao capitalismo de livre mercado e a mercantilização do ensino superior. Seus artigos jornalísticos são muitas vezes extremamente ácidos; em um artigo intitulado: As Useful as a String Condom  Newey critica a família real britânica como sendo inútil na Grã-Bretanha moderna. Suas incursões jornalísticas incluem também crítica de cinema, teatro e de ensaios sobre filosofia política, ética e crítica cultural. É também um forte defensor da livre expressão e da liberdade acadêmica.

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