31/3/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online − The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Não é
partida de xadrez entre iguais – um joga xadrez; o outro, Monopólio. É como se
o Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, esteja adiando o
xeque mate, enquanto o Secretário de Estado, John Kerry, dos EUA vai percebendo
que tem pela frente o inevitável.
Como Lavrov
já explicou repetidas vezes, a única
solução possível para a Ucrânia é criar-se uma federação fluida, como parte de uma “profunda reforma
constitucional”. Implica que o leste e sul da Ucrânia – os russos étnicos e
também os sentimentalmente russos – devem ser amplamente autônomos. Há cerca de
duas semanas, Kerry deu sinais de concordar que essas regiões ucranianas
precisam ter mais poder para decidir. Mas então a Casa Branca recomeçou com sua
blitzkrieg moralista – que coincidiu com a viagem do Presidente Barack
Obama a Haia e Bruxelas. Mesmo assim, depois de jogo inconclusivo de quatro
horas entre Kerry-Lavrov em Paris, o xeque mate está a caminho.
A solução
russa é o mesmo plano que Moscou já propôs há poucas semanas, e foi outra vez
discutido por telefone por Obama e o Presidente Vladimir Putin na 6ª-feira
(28/3/2014) – telefonema que fez Kerry redirecionar seu avião para Paris. Cada
região da Ucrânia, segundo Lavrov, poderá controlar a própria economia,
impostos, cultura, idioma, educação e “conexões econômicas e culturais externas
com países e regiões vizinhas”. É plano tão bom, que é aceito até por
ex-guerreiros da Guerra Fria (ou guerreiros eternos da Guerra Fria, dependendo
do “especialista” consultado) – como Henry Kissinger e Zbig Brzezinski.
O problema
chave é que Washington se meteu empedernidamente na cabeça que o atual arranjo
vigente em Kiev – também conhecido como o “Khaganato dos Nulands”, criado pela
Secretária-Assistente do Departamento de Estado, Victoria Nulands – seria
legítimo. Moscou vê ali um bando de putschistas
e fascistas. E Washington ainda se recusa a pressionar para que Kiev aceite um
sistema federal – único modo de permitir, dentre outras coisas, que o russo
seja aceito como segunda língua oficial.
Victoria Nuland |
A última
dos norte-americanos é uma campanha massiva de propaganda, do gênero “Os
Vermelhos estão chegando”, com imagens e “informações” sobre concentração
massiva de soldados russos [1]
na fronteira com a Ucrânia(a imprensa-empresa servil está falando de mais de
100 mil). (Tudo mediatamente
macaqueado por O
Globo, Terra, TV
Cultura... da imprensa-empresa de macaqueação que há por aqui... [suspiro] NTs)
Kerry, por
hora, está conseguindo, pelo menos, disfarçar os sintomas de histeria; já
admitiu que Washington e Moscou concordam que é indispensável chegar a uma
solução diplomática, nem que seja só para poder retornar ao mais novo meme posto
em circulação, perfeitamente artificial, o tal “prelúdio de uma invasão”, inventado
pelo Pentágono/OTAN.
A posição
oficial de Washington continua a ser que Moscou “tem de” desarmar suas forças
na Crimeia (não acontecerá); admitir observadores internacionais (Moscou talvez
decida admitir); e recuar seus soldados para dentro da fronteira leste (Moscou
diz que as tropas estão em manobras, e que ali não há um soldado extra, só os
de sempre: menos de 20 mil). Lavrov, obrigado a repetir e repetir e repetir que
não há qualquer plano russo para invadir a Ucrânia, já começa a expor Kerry ao
mais perfeito ridículo.
Cuidado!
Vem aí o Império do Caos
E há as
próximas eleições presidenciais. Podem-se apostar rios de vodka: vai ser
operação imundíssima. Os sabujos do partido Svoboda e do Setor Direita (Pravy
Sektor) que estão hoje em posição de poder farão de tudo para falsificar
resultados (porque sabem que não são o que se entende normalmente por “governo
bem quisto pelos eleitores”). Depois que o cavalo da Chanceler alemã, Angela
Merkel – o ex-boxeador “Klitsch” – abandonou o páreo, o líder é – e como
poderia não ser?! – um oligarca: o bilionário, rei do chocolate, Petro
Poroshenko. Já anunciou que não quer saber da solução de federalizar a Ucrânia;
para ele, seria “plano de alguém por lá, no governo russo, que quer nos ensinar
o tipo de sistema de governo que devemos ter”.
Trata-se sempre da Dominação de Pleno Espectro... Via OTAN |
Mas, para
começar, não se trata absolutamente de “democracia”. Os mudadores-de-regimes,
como Kommersant noticiou, trabalham a pleno vapor para reescrever a Constituição
ucraniana, com o Primeiro-Ministro, Arseniy “Yats” Yatseniuk exigindo que
entreguem a redação final em, no máximo, duas semanas.
O tigre
siberiano que está na sala e do qual não se fala é um detalhe, inegociável para
os russos: Kiev tem de prometer oficialmente que a Ucrânia não se unirá à
Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN. E todos nós sabemos, desde que
foi instalado o Khaganato dos Nulands, que, aí, só se trata, mesmo, da expansão
da OTAN comandada pelo Pentágono.
A “cenoura”
que Putin exibe para Obama é algo que Putin também lhe disse ao telefone: o
futuro da Transdnistria na Moldávia, na fronteira sudoeste da Ucrânia, tem de
ser decidido por conversações em formato de 5+2: Moldávia, Transdnistria, a
Organização para Segurança e Cooperação na Europa, Rússia e Ucrânia, mais a
União Europeia e observadores norte-americanos. Mais uma vez, não se cogita de
qualquer “invasão”.
Acima de
tudo isso paira, sim, um fato já consumado e inafastável: a reincorporação da
Criméia na Federação Russa. E não há volta possível – e EUA, UE e Kiev que
espalhem quanta propaganda queiram espalhar.
Tudo isso,
contudo, introduz mais um problema. O raciocínio de Putin para agir na Crimeia
– depois que a inteligência russa descobriu um complô para reproduzir em
Simferopol o golpe em Kiev – assumia, como pressuposto necessário, que só a
autonomia da Crimeia não bastaria para proteger a região contra a ação dos
mudadores de regime. O mesmo valeria logo depois no caso dos russos étnicos e
falantes de russo no leste e no sul da Ucrânia. Implica dizer que as condições
da autonomia – e a reforma da Constituição – terão de ser muito, muito firmes e
sólidas e garantidas. E muito provavelmente não serão.
Onde está o botão Liga-Desliga desta coisa? |
Seja como
for, também é fato inamovível que nem EUA, nem União Europeia nem o Fundo
Monetário Internacional (FMI) dão qualquer bola ao “povo ucraniano” (a Rússia,
pelo menos, interessa-se pelo destino dos russos na Ucrânia). Outro problema
posterior ainda mais sensível, assumindo-se que Washington e Moscou cheguem a
algum acordo, é até que ponto alguém pode(ria) confiar na “palavra” do
governo dos EUA. A Rússia tem experiência direta nesse assunto (Bush Pai
prometeu a Mikhail Gorbachev que a OTAN não avançaria na direção do leste da
Europa. E, sim, a OTAN avançou exatamente naquela direção – como geleca assassina,
de filme B de terror).
Não se pode
jamais perder de vista o Grande Quadro: como no caso do complexo
Panopticon-orwelliano da Agência de Segurança Nacional, trata-se sempre,
sobretudo, da aplicação da doutrina de Dominação de Pleno Espectro do
Pentágono, que implica cercar a Rússia (via OTAN), movimento que se articula a
outro cerco (esse, de estilo “pivô”), contra a China. A lógica que rege tudo
isso nunca muda: é o Império do Caos em ação.
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista,
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom
Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia
Today,
The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem
ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu
e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
− Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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