E Deus abençoe Putin
8/3/2014, [*] Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Netanyahu por Latuff/2012 |
BINYAMIN NETANYAHU é ótimo em discursos,
especialmente para judeus, neoconservadores e outros, que pulam e aplaudem
furiosamente qualquer coisa que ele diga, inclusive que amanhã o sol nascerá a
oeste.
A questão
é: e ele presta para alguma outra coisa?
O pai de
Bibi, ultra direitista, disse uma vez sobre o filho que ele não servia para
primeiro-ministro, mas daria bom ministro de Relações Exteriores. Quis dizer
que Binyamin não tem a profundidade de entendimento necessária para conduzir a
nação, mas que vende muito bem qualquer política concebida por líder que
preste.
(Faz
lembrar o que Abba Eban disse de David Ben-Gurion: “Ele explica muito bem.
Depois que se diz a ele o que explicar”).
Essa
semana, Netanyahu foi convocado a Washington. Tinha de aprovar o novo “quadro”
de John Kerry para algum acordo, o qual serviria de base para o reinício de
negociações de paz que, até agora, nunca deram em nada.
Na véspera
da reunião, o presidente Barack Obama deu uma entrevista a jornalista judeu, e
culpou Netanyahu pelo congelamento do “processo de paz” – como se, algum dia,
tivesse havido algum processo de paz.
Mahmoud Abbas Latuff/2011 |
Netanyahu
chegou lá com a mala vazia – quero dizer, com a mala cheia de slogans vazios. A liderança israelense
muito se esforçara para alcançar a paz, mas a coisa não avança, tudo culpa dos
palestinos. A culpa é de Mahmoud Abbas, porque se recusa a reconhecer Israel como
estado-nação do povo judeu. O quê… hmm… E sobre as colônias, que cresceram
muito ao longo desse ano?
Por que os
palestinos teriam de negociar negociações sem fim, se, ao mesmo tempo, o
governo israelense rouba mais e mais terra, exatamente a terra que estaria
sendo negociada? (Como dizem os palestinos, argumento clássico: “Negociamos
sobre dividir a pizza, e, enquanto isso, Israel está comendo a pizza”).
Obama se
obrigou a confrontar Netanyahu, o AIPAC e seus congressionais servis.
Estava a
ponto de torcer o braço de Netanyahu até ele gritar “titio” – sendo “titio” o
tal “quadro” de Kerry, o qual, hoje, já está tão aguado que mais parece um
manifesto sionista. Kerry é louco por alguma “realização”, não importa o que
ele “realize”.
Netanyahu,
à cata de alguma coisa para impedir o massacre, já estava pronto para, como
sempre, pôr-se a gritar “Irã! Irã! Irã” – quando aconteceu algo imprevisto.
NAPOLEÃO,
em frase famosa, bradava: “Me deem generais pé-quente!”. Teria adorado o
general Bibi.
Porque,
justamente quando se aproximava de ter de enfrentar um Obama que parecia revigorado,
houve uma explosão que sacudiu o mundo.
A Ucrânia.
Foi como os
tiros que ecoaram em Sarajevo, cem anos atrás.
A
tranquilidade internacional foi repentinamente destruída. A possibilidade de
grande guerra estava no ar.
A visita de
Netanyahu a Washington sumiu do noticiário. Obama, às voltas com crise
histórica, só queria livrar-se dele, quanto mais depressa, melhor. Em vez da
admoestação severa que havia planejado, só rápidas frases ocas. Todos os
maravilhosos discursos que Netanyahu preparara lá ficaram, não discursados.
Sequer seu discurso triunfalista de sempre no AIPAC despertou qualquer
interesse.
Tudo por
causa dos eventos em Kiev.
AGORA, já
se escreveram inumeráveis artigos sobre a crise. O que não falta são paralelos
históricos.
Embora “ucrânia”
signifique “terra de fronteira”, o país sempre esteve no cento dos eventos
europeus. Coitados dos meninos e meninas das escolas ucranianas! As mudanças na história do país deles foram frequentes e sempre extremas. Em ocasiões
diferentes, a Ucrânia foi potência europeia, depois território depauperado e
exaurido, depois extremamente rica (o “cesto de pão da Europa”), depois
abjetamente pobre, atacada pelos vizinhos que capturavam o povo local como
escravos ou atacavam os vizinhos para ganhar território.
As línguas faladas na Ucrânia, por região (clique no mapa para aumentar) |
A relação
entre Ucrânia e Rússia é ainda mais complexa. Num certo sentido, a Ucrânia é o
coração da cultura, da religião e da ortografia russa. Kiev foi muito mais
importante que Moscou, antes desta tornar-se a pedra central do imperialismo
moscovita.
Na Guerra
da Crimeia dos anos 1850s, a Rússia lutou valentemente contra uma coalizão de
Grã-Bretanha, França, o Império Otomano e a Sardenha, mas perdeu a guerra. A
guerra eclodiu por causa de direitos cristãos em Jerusalém, e incluiu longo
sítio de Sebastopol. O mundo lembra a Carga da Brigada Ligeira. [1]
Uma britânica, de nome Florence Nightingale, criou a primeira organização para
atender feridos no campo de batalha.
Durante
minha vida, Stálin assassinou milhões de ucranianos, que morreram de fome. Resultado
disso, muitos ucranianos festejaram a chegada da Wehrmacht alemã, em
1941, como libertadores. Poderia ter sido o início de uma bela amizade, mas,
infelizmente, Hitler estava decidido a erradicar os ucranianos Untermenschen
[subumanos], para integrar a Ucrânia ao Lebensraum [espaço vital]
alemão.
A Crimeia
sofreu horrivelmente. O povo tártaro, que governara a península no passado, foi
deportado para a Ásia Central; décadas depois, foram autorizados a voltar. Hoje
são pequena minoria, aparentemente indecisa quanto às suas lealdades.
A RELAÇÃO
entre a Ucrânia e os judeus não é menos complicada.
Shlomo Sand |
Alguns
autores judeus, como Arthur Koestler e Shlomo Sand, creem que o império Khazar,
que governou a Crimeia e territórios vizinhos há mil anos, converteu-se ao
judaísmo, e que muitos judeus asquenazes descendem dos khazares. A ser verdade,
todos em Israel seríamos ucranianos (muitos dos primeiros sionistas, sim, eram
ucranianos).
Quando a
Ucrânia foi parte do extenso império polonês, muitos nobres poloneses se
apossaram de vastas propriedades ali. Empregaram judeus na administração dos
negócios. Daí que os camponeses ucranianos tenham passado a ver todos os judeus
como agentes dos que os oprimiam e exploravam; e o antissemitismo tornou-se
parte da cultura nacional da Ucrânia.
Como
aprendemos na escola, a cada salto da história ucraniana, os judeus eram
massacrados. O nome de inúmeros heróis do folclore ucraniano, de líderes e de
rebeldes reverenciados na terra natal, são, na consciência dos judeus, associados
a terríveis pogroms.
Bohdan Khmelnytsky |
Cossack
Hetman (líder) Bohdan Khmelnytsky, que libertou a Ucrânia do jugo
polonês e é considerado pelos ucranianos o pai da nação, foi um dos mais
terríveis assassinos em massa na história dos judeus. Symon Petliura, que liderou
os ucranianos na guerra contra os bolcheviques depois da 1ª Guerra Mundial, foi
assassinado por um vingador de judeus.
Em Israel,
alguns dos imigrantes mais velhos terão dificuldade para decidir quem odeiam
mais: os ucranianos ou os russos (ou, os poloneses, não se pode esquecer).
As pessoas,
pelo mundo, acham difícil escolher seu lado.
Os
fanáticos da Guerra Fria, não; escolhem facilmente – ou odeiam os EUA ou odeiam
a Rússia, por questão de hábito.
Quanto a
mim, quanto mais analiso a situação, mais inseguro me sinto. Essa não é
situação de ou branco ou preto.
A primeira
simpatia vai para os rebeldes da praça Maidan (Maidan é palavra árabe,
que significa “praça da cidade”. Estranho que tenha chegado a Kiev.
Provavelmente, via Istambul).
Queriam
unir-se ao ocidente, ter independência e democracia. O que há de errado nisso?
Nada,
exceto que aqueles rebeldes apareceram aliados a estranhos companheiros de
cama: neonazistas em uniformes nazistas, saudando à Hitler e gritando slogans antissemitas. Não, nada
atraentes. O encorajamento que recebem de aliados ocidentais, incluídos os
odiosos neoconservadores norte-americanos, é impalatável.
Vladimir Putin |
Por sua
vez, Vladimir Putin tampouco é muito sedutor. É o velho imperialismo russo,
tudo outra vez.
O slogan dos russos – temos de proteger os
falantes de russo em país vizinho – é horrivelmente bem conhecido. Foi o que
Adolf Hitler disse em 1938, para proteger os alemães Sudeten dos
monstros tchecos.
Mas Putin
tem alguma boa lógica a seu favor. Sebastopol – cenário de sítios heroicos,
tanto na Guerra da Crimeia como na IIª Guerra Mundial, é essencial para as
forças navais russas. A associação com a Ucrânia é parte importante das
aspirações que a Rússia tem como potência mundial.
Operador de
sangue frio, calculista, tipo raro, hoje, no planeta, Putin usa as cartas
fortes que tem, mas é cuidadoso e não se expõe a riscos. Está administrando a
crise com astúcia, usando as óbvias vantagens da Rússia. A Europa precisa de
seu gás e de seu petróleo; Putin precisa dos capitais e do comércio da Europa.
A Rússia tem papel de liderança na questão síria e na questão do Irã. Os EUA,
de repente, parecem simples transeunte.
Assumo que,
ao final, os dois lados farão concessões. A Rússia manterá influência sobre a
próxima liderança ucraniana. Os dois lados proclamarão vitória.
(Por falar
nisso, a todos aqui que ainda acreditam na “Solução de Um Estado”: o que se vê
na Ucrânia é mais um estado multicultural que se parte em pedaços) .
E O QUE
TUDO ISSO tem a ver com Netanyahu?
Ele ganhou
tempo, alguns meses ou anos, sem nenhum passo em direção a qualquer paz. E,
entrementes, ele pode continuar a ocupar e construir colônias em ritmo
frenético.
É a
tradicional estratégia sionista: o tempo é tudo. Cada adiamento é oportunidade
para criar mais “fatos em campo”. Deus abençoe Putin. As preces de Netanyahu
foram atendidas.
[*] Uri Avnery nasceu
em Beckum, Alemanha, em 10/9/1023 com o nome de Helmut Ostermann, Avnery
e família emigraram para a Palestina em 1933, fugindo do nazismo. Em 1938, ele se juntou ao grupo paramilitar sionista
Irgun. Abandonou o grupo Irgun em 1942 após se decepcionar com suas táticas. Em
1947, Avnery deu início ao seu pequeno grupo, Eretz Yisrael Hatze'ira (“Jovem
Terra de Israel”) que publicava o jornal Ma'avak ("Luta"). Em 1947 ele propôs a união dos países da “região
semítica”: Palestina, Transjordânia, Líbano, Síria e Iraque.
Durante
a guerra árabe-israelense de 1948, Avnery lutou no fronte sul na Brigada Givati
como comandante de um batalhão. Ferido, foi dispensado no verão de 1949.
Durante as décadas de 1950 e 1960 Avnery foi, em conjunto
com Shalom Cohen, editor da revista semanal HaOlam HaZeh ("Esse
Mundo"). Em 1965 Avnery criou um partido político que tinha o mesmo nome
que sua revista HaOlam HaZeh – Koah Hadash. No mesmo ano, foi eleito para o Knesset. Depois fundou o partido político Meri, que não conseguiu
garantir lugares nas eleições de 1973. Ele voltou ao Knesset como membro do
partido de esquerda de Israel, após as eleições de 1977, mas não foi reeleito
em 1981. Mais tarde se envolveu com a Chapa Progressista pela Paz.
Avnery encontrou-se com Yasser Arafat em 3 de julho de 1982,
durante o cerco de Beirute. Foi possivelmente a primeira vez que um israelense
teve um encontro pessoal com Arafat.
Posteriormente, Avnery passou ao ativismo e fundou o
movimento Gush Shalom (em hebraico: גוש שלום, Bloco da Paz) em 1993.
Ele é adepto do secularismo e se opõe firmemente à influência ortodoxa na vida
política.
Atualmente
Avnery colabora com os sites jornalísticos CounterPunch, Information
Clearing House, Lew Rockwell e The Exception Magazine.
__________________
Nota dos tradutores
[1] A Carga da Brigada
Ligeira foi poema de Tennyson no século 19; filme
em 1936; refilmagem
em 1968 e também novela de rádio produzida pela BBC – British Broadcasting
Corporation em 2002 e sabe-se lá o que mais foi! Famosa foi mesmo a Batalha de
Balaclava em 1834, entre os Impérios Britânico e Russo.
Notavelmente foi tema de rock punk
do Iron Maiden, em gravação de 1983, “The Trooper”, do álbum Piece of Mind que
pode ser ouvido a seguir:
É bom ler este artigo com a ressalva de que foi escrito por um israelense...
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