20/3/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Li Baodong, Vice-Ministro de Relações Exteriores da China |
Estamos acompanhando com máxima atenção a
situação na Ucrânia. Esperamos que todas as partes mantenham a compostura, para
impedir que a situação escale e piore. A única saída é coragem política e
diálogo.
Esse é o
comentário contido, pelo Vice-Ministro de Relações Exteriores da China, Li
Baodong, da interpretação oficial, em Pequim, do que está acontecendo na
Ucrânia: é a versão para consumo global.
Mas neste Editorial
de People’s Daily, pode-se ler o que a
liderança chinesa está realmente pensando. O foco, claramente, são os perigos
da mudança de regime, a “incapacidade do Ocidente para compreender as lições da
história” e o “campo de batalha final na ‘guerra fria’”.
Mais uma
vez, o ocidente interpretou erradamente a abstenção da China na votação no
Conselho de Segurança Nacional que examinava uma resolução apoiada pelos EUA
para condenar o referendo da Crimeia. Os “especialistas” puseram-se a repetir
que a Rússia estaria “isolada”. O modo como Pequim faz geopolítica mostra que
não está.
Oh, Samantha…
Samantha Power |
A manada de
elefantes na sala (Ucrânia), em termos de opinião global, é agora a questão de
que a verdadeira “comunidade internacional” – do G-20 ao Movimento dos Não
Alinhados (MNA) – que já está farta do Show
de Hipocrisia Excepcionalista, compreendeu plenamente, e até aplaudiu que,
afinal, já haja no planeta pelo menos um país com colhões para dizer claramente
“Fodam-se os EUA”.
A Rússia
sob o presidente Vladimir Putin pode até ainda manter algumas distorções, como
qualquer outro país no mundo. Mas agora não é piquenique; é realpolitik.
Para jogar na lona o Leviatã-EUA é indispensável um casca-grossa como Putin.
A OTAN –
sigla que designa o conjunto de zeros à esquerda europeus dominados pelo
Pentágono – continua a lançar ameaças e cuspir “consequências”. O que vão fazer
– lançar uma barragem de mísseis ICBMs armados com ogivas nucleares contra
Moscou?
Além do
mais, o próprio Conselho de Segurança da ONU é uma piada, com a embaixadora dos
EUA, Samantha “Nada se Compara a Você” Power
[1] – uma das mães da
“responsabilidade de proteger” (R2P) – a resmungar contra “a agressão russa”,
as “provocações russas” e a comparar o referendo crimeano a um assalto. Oh
yes; bombardear o Iraque, bombardear a Líbia e chegar a um passo de
bombardear a Síria, ah, é, são inocentes gestos humanitários. Samantha, a
Humanitária, melhor faria (imagina-se) se invocasse Sinead O'Connor no
chuveiro.
Vitaly Churquin |
O
embaixador russo Vitaly Churkin foi suficientemente polido para dizer-lhe que
“tais insultos, dirigido ao nosso país” são “inaceitáveis”. Mas o que
acrescentou na sequência foi o verdadeiro molho: “Se a delegação dos EUA espera
nossa colaboração em outras questões no Conselho de Segurança, é bom que Power
compreenda isso logo, bem claramente”.
Samantha “A
Humanitária”, como o resto dos figurantes juvenis da equipe de Obama, não
entenderam, nunca, é nada. O Vice-Ministro de Relações Exteriores da Rússia,
Sergei Ryabkov deu uma ajudinha: a Rússia não quis usar as conversações
nucleares iranianas para “subir a aposta”. Mas se EUA e UE continuarem com suas
sanções e ameaças, é, precisamente, o que acontecerá.
Assim, a
trama de adensa – com uma parceria estratégica, cada dia mais próxima, entre
Teerã e Moscou.
Secessionistas
do mundo, uni-vos?
Agora,
imaginem tudo isso, visto de Pequim. Ninguém sabe exatamente o que se passa nos
corredores do Zhongnanhai, mas é razoável pressupor que a contradição é só
aparente entre o princípio-chave dos chineses, de não intervenção em assuntos
internos de países soberanos, e a ação da Rússia na Crimeia.
Entrada principal do Complexo de Zhongnanhai |
Pequim
identificou claramente a sequência de questões: interferência de longo prazo do
ocidente na Ucrânia via ONGs e o Departamento de Estado; mudança de regime
perpetrada com a ajuda de fascistas e neonazistas; contra-ataque preventivo
russo, que pode ser interpretado como ação “de livro”, de operação R2P à
maneira de Samantha “A Humanitária” (responsabilidade de proteger russos e falantes
de russos, contra um segundo golpe planejado para a Crimeia, e que foi abortado
pela inteligência russa).
Acima de
tudo isso, Pequim sabe bem que a Crimeia sempre foi essencialmente russa desde
1783; que a Crimeia – exatamente como grande parte da Ucrânia – encaixa-se
perfeitamente na esfera de influência da civilização russa; e que a
interferência ocidental ameaçou diretamente interesses da segurança nacional
russa (como Putin
explicou com muita clareza)
Imaginem
então cenário semelhante no Tibete ou em Xinjiang. Prolongada
ação-interferência ocidental, via ONGs e CIA; tibetanos tomam o poder
local em Lhasa ou os uigures em Kashgar. Pequim poderia facilmente usar a R2P
de Samantha, em nome de proteger os chineses hans.
Barack Obama |
Mas Pequim
aprovar (silenciosamente) a resposta russa ao golpe em Kiev que “recolheu” a
Crimeia mediante vitória em referendo, sem disparar um tiro, não implica que os
“separatistas” no Tibete ou em Taiwan sejam autorizados a seguir a mesma via.
Mesmo que o Tibete, mais que Taiwan, pudesse construir argumento histórico
forte a favor da separação. Cada caso é um caso, com sua miríade de
complexidades.
O governo
Obama – como Minotauro cego – está agora perdido num labirinto de pivôs que ele
mesmo fabricou. Faz falta um novo [Jorge Luis] Borges – aquele Buda de terno
cinza – para contar esse conto. Primeiro, foi a pivoteação para a Ásia-Pac (que
é outro nome para “cercar” a China), o que Pequim entendeu, sim, perfeitamente.
Depois veio
a pivoteação para a Pérsia – “se não formos à guerra”, nas palavras daquele “Algarismo
à Procura de uma Ideia, John Kerry”. Houve, claro, o pivoteamento marcial para
a Síria, abortado no último instante graças aos bons serviços da diplomacia de
Moscou. E voltaram para a pivoteação para a Rússia, atropelando o muito
celebrado “reset” e concebida como vingança, pela não guerra na Síria.
Os que
creiam que os estrategistas em Pequim não analisaram cuidadosamente – e
calcularam uma resposta a – todas as implicações desses pivoteamentos
superpostos, merecem, eles, reunir-se com Samantha no chuveiro. Acrescente-se a
isso que não é difícil imaginar a Think-tankelândia
chinesa mal conseguindo conter as risadas, enquanto analisam a hiperpotência
que não para de se pivotear, sem achar a saída, em torno dela mesma.
Enquanto os
cães ocidentais ladram...
Rússia e
China são parceiras estratégicas – no G-20, no clube dos BRICS das potências
emergentes e na Organização de Cooperação de Xangai. O objetivo de ambas,
objetivo número 1, nesses e noutros fóruns, é a emergência de um mundo
multipolar; nada do bullying que lhes vem do Império USAmericano de
Bases; um sistema financeiro internacional mais equilibrado; nada de
proeminência do petrodólar; uma cesta de moedas; abordagem essencialmente
“ganha-ganha” de todo o desenvolvimento econômico global.
Um mundo
multipolar também implica, por definição, a OTAN fora da Eurásia – e metê-la na
Eurásia é, do ponto de vista de Washington, a razão número 1 da intervenção na
Ucrânia. Em termos eurasianos, é como se – chutada para fora do Afeganistão por
um bando de camponeses armados com Kalashnikovs – a OTAN estivesse agora se
pivoteando de volta para lá, via Ucrânia.
Enquanto
Rússia e China são parceiras estratégicas na esfera da energia –
Oleogasodutostão e além dele – elas também se superpõem na corrida para
conseguir negócios na Ásia Central. Pequim está construindo não uma, mas duas Novas Rotas da
Seda – através do Sudeste da Ásia e através da
Ásia Central, com oleodutos, gasodutos, estradas de ferro e redes de fibras
óticas, e está alcançando já Istambul, portal para a Europa. Mas, por mais que
avance a competição por mercados entre Rússia e China, por toda a Eurásia, é
sempre mais como guarda-chuva “ganha-ganha”, que como jogo de soma zero.
Sobre a
Ucrânia (“último campo de batallha na Guerra Fria”) e especificamente a
Crimeia, a posição (não dita) oficial de Pequim é absoluta neutralidade
(veja-se a votação na ONU). Mas o grande negócio é apoiar Moscou. Não pode ser
apoio aberto, porque Pequim não está interessada em antagonizar o ocidente a
menos que seja pesadamente provocada (se o pivoteamente virar cerco
linha-duríssima, por exemplo). Que ninguém esqueça: desde Deng Xiaoping
(“mantenha perfil baixo”) trata-se e continuará a tratar-se da “ascensão
pacífica” da China. E assim, enquanto os cães ocidentais ladram, a caravana
sino-russa passa.
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Nota dos tradutores
[1] Referência a outro artigo de Pepe Escobar 17/3/2014, Asia Times – The Roving Eye: “Russia 1, Regime Changers 0” onde se lê (trad.):
Obama tentou criar mais duas guerras (na Síria e na Ucrânia). E
– sorte dele – perdeu ambas ainda enquanto “atentava”. Sortimento de
neoconservadores e a brigada excepcionalista estão, como se poderia adivinhar,
em pânico. Espera-se agora que a página de editoriais do Wall Street Journal enlouqueça completamente. E podem esperar
também que a embaixadora dos EUA na ONU, Samantha
“Responsabilidade de Proteger” Power pôr-se-á a resmungar feito Sinead O’Connor
cantando “Nada se compara a você”.
Que se vê e ouve a seguir:
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São
Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The
Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política
do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia
Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera.
Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de
Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan: How the
Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of
Baghdad During the Surge,Nimble Books, 2007.
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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