sexta-feira, 21 de março de 2014

Pepe Escobar: “A Crimeia vista de Pequim”

20/3/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Li Baodong, Vice-Ministro de Relações Exteriores da China
Estamos acompanhando com máxima atenção a situação na Ucrânia. Esperamos que todas as partes mantenham a compostura, para impedir que a situação escale e piore. A única saída é coragem política e diálogo.

Esse é o comentário contido, pelo Vice-Ministro de Relações Exteriores da China, Li Baodong, da interpretação oficial, em Pequim, do que está acontecendo na Ucrânia: é a versão para consumo global.

Mas neste Editorial de People’s Daily, pode-se ler o que a liderança chinesa está realmente pensando. O foco, claramente, são os perigos da mudança de regime, a “incapacidade do Ocidente para compreender as lições da história” e o “campo de batalha final na ‘guerra fria’”.

Mais uma vez, o ocidente interpretou erradamente a abstenção da China na votação no Conselho de Segurança Nacional que examinava uma resolução apoiada pelos EUA para condenar o referendo da Crimeia. Os “especialistas” puseram-se a repetir que a Rússia estaria “isolada”. O modo como Pequim faz geopolítica mostra que não está.

Oh, Samantha…

Samantha Power
A manada de elefantes na sala (Ucrânia), em termos de opinião global, é agora a questão de que a verdadeira “comunidade internacional” – do G-20 ao Movimento dos Não Alinhados (MNA) – que já está farta do Show de Hipocrisia Excepcionalista, compreendeu plenamente, e até aplaudiu que, afinal, já haja no planeta pelo menos um país com colhões para dizer claramente “Fodam-se os EUA”.

A Rússia sob o presidente Vladimir Putin pode até ainda manter algumas distorções, como qualquer outro país no mundo. Mas agora não é piquenique; é realpolitik. Para jogar na lona o Leviatã-EUA é indispensável um casca-grossa como Putin.

A OTAN – sigla que designa o conjunto de zeros à esquerda europeus dominados pelo Pentágono – continua a lançar ameaças e cuspir “consequências”. O que vão fazer – lançar uma barragem de mísseis ICBMs armados com ogivas nucleares contra Moscou?

Além do mais, o próprio Conselho de Segurança da ONU é uma piada, com a embaixadora dos EUA, Samantha “Nada se Compara a Você” Power [1] – uma das mães da “responsabilidade de proteger” (R2P) – a resmungar contra “a agressão russa”, as “provocações russas” e a comparar o referendo crimeano a um assalto. Oh yes; bombardear o Iraque, bombardear a Líbia e chegar a um passo de bombardear a Síria, ah, é, são inocentes gestos humanitários. Samantha, a Humanitária, melhor faria (imagina-se) se invocasse Sinead O'Connor no chuveiro.

Vitaly Churquin
O embaixador russo Vitaly Churkin foi suficientemente polido para dizer-lhe que “tais insultos, dirigido ao nosso país” são “inaceitáveis”. Mas o que acrescentou na sequência foi o verdadeiro molho: “Se a delegação dos EUA espera nossa colaboração em outras questões no Conselho de Segurança, é bom que Power compreenda isso logo, bem claramente”.

Samantha “A Humanitária”, como o resto dos figurantes juvenis da equipe de Obama, não entenderam, nunca, é nada. O Vice-Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Ryabkov deu uma ajudinha: a Rússia não quis usar as conversações nucleares iranianas para “subir a aposta”. Mas se EUA e UE continuarem com suas sanções e ameaças, é, precisamente, o que acontecerá.

Assim, a trama de adensa – com uma parceria estratégica, cada dia mais próxima, entre Teerã e Moscou.

Secessionistas do mundo, uni-vos?

Agora, imaginem tudo isso, visto de Pequim. Ninguém sabe exatamente o que se passa nos corredores do Zhongnanhai, mas é razoável pressupor que a contradição é só aparente entre o princípio-chave dos chineses, de não intervenção em assuntos internos de países soberanos, e a ação da Rússia na Crimeia.

Entrada principal do Complexo de Zhongnanhai 
Pequim identificou claramente a sequência de questões: interferência de longo prazo do ocidente na Ucrânia via ONGs e o Departamento de Estado; mudança de regime perpetrada com a ajuda de fascistas e neonazistas; contra-ataque preventivo russo, que pode ser interpretado como ação “de livro”, de operação R2P à maneira de Samantha “A Humanitária” (responsabilidade de proteger russos e falantes de russos, contra um segundo golpe planejado para a Crimeia, e que foi abortado pela inteligência russa).

Acima de tudo isso, Pequim sabe bem que a Crimeia sempre foi essencialmente russa desde 1783; que a Crimeia – exatamente como grande parte da Ucrânia – encaixa-se perfeitamente na esfera de influência da civilização russa; e que a interferência ocidental ameaçou diretamente interesses da segurança nacional russa (como Putin explicou com muita clareza)

Imaginem então cenário semelhante no Tibete ou em Xinjiang. Prolongada ação-interferência ocidental, via ONGs e CIA; tibetanos tomam o poder local em Lhasa ou os uigures em Kashgar. Pequim poderia facilmente usar a R2P de Samantha, em nome de proteger os chineses hans.

Barack Obama
Mas Pequim aprovar (silenciosamente) a resposta russa ao golpe em Kiev que “recolheu” a Crimeia mediante vitória em referendo, sem disparar um tiro, não implica que os “separatistas” no Tibete ou em Taiwan sejam autorizados a seguir a mesma via. Mesmo que o Tibete, mais que Taiwan, pudesse construir argumento histórico forte a favor da separação. Cada caso é um caso, com sua miríade de complexidades.

O governo Obama – como Minotauro cego – está agora perdido num labirinto de pivôs que ele mesmo fabricou. Faz falta um novo [Jorge Luis] Borges – aquele Buda de terno cinza – para contar esse conto. Primeiro, foi a pivoteação para a Ásia-Pac (que é outro nome para “cercar” a China), o que Pequim entendeu, sim, perfeitamente.

Depois veio a pivoteação para a Pérsia – “se não formos à guerra”, nas palavras daquele “Algarismo à Procura de uma Ideia, John Kerry”. Houve, claro, o pivoteamento marcial para a Síria, abortado no último instante graças aos bons serviços da diplomacia de Moscou. E voltaram para a pivoteação para a Rússia, atropelando o muito celebrado “reset” e concebida como vingança, pela não guerra na Síria.

Os que creiam que os estrategistas em Pequim não analisaram cuidadosamente – e calcularam uma resposta a – todas as implicações desses pivoteamentos superpostos, merecem, eles, reunir-se com Samantha no chuveiro. Acrescente-se a isso que não é difícil imaginar a Think-tankelândia chinesa mal conseguindo conter as risadas, enquanto analisam a hiperpotência que não para de se pivotear, sem achar a saída, em torno dela mesma.

Enquanto os cães ocidentais ladram...

Rússia e China são parceiras estratégicas – no G-20, no clube dos BRICS das potências emergentes e na Organização de Cooperação de Xangai. O objetivo de ambas, objetivo número 1, nesses e noutros fóruns, é a emergência de um mundo multipolar; nada do bullying que lhes vem do Império USAmericano de Bases; um sistema financeiro internacional mais equilibrado; nada de proeminência do petrodólar; uma cesta de moedas; abordagem essencialmente “ganha-ganha” de todo o desenvolvimento econômico global.

Um mundo multipolar também implica, por definição, a OTAN fora da Eurásia – e metê-la na Eurásia é, do ponto de vista de Washington, a razão número 1 da intervenção na Ucrânia. Em termos eurasianos, é como se – chutada para fora do Afeganistão por um bando de camponeses armados com Kalashnikovs – a OTAN estivesse agora se pivoteando de volta para lá, via Ucrânia.

A ponte Aizhai, o maior conjunto túnel − ponte − túnel do mundo, com 336 metros de altura e 1.176 metros de comprimento, abre localizada em Jishou, província de Hunan, região central da China, da nova Rota da Seda. (31/3/2012)
Enquanto Rússia e China são parceiras estratégicas na esfera da energia – Oleogasodutostão e além dele – elas também se superpõem na corrida para conseguir negócios na Ásia Central. Pequim está construindo não uma, mas duas Novas Rotas da Seda – através do Sudeste da Ásia e através da Ásia Central, com oleodutos, gasodutos, estradas de ferro e redes de fibras óticas, e está alcançando já Istambul, portal para a Europa. Mas, por mais que avance a competição por mercados entre Rússia e China, por toda a Eurásia, é sempre mais como guarda-chuva “ganha-ganha”, que como jogo de soma zero.

Sobre a Ucrânia (“último campo de batallha na Guerra Fria”) e especificamente a Crimeia, a posição (não dita) oficial de Pequim é absoluta neutralidade (veja-se a votação na ONU). Mas o grande negócio é apoiar Moscou. Não pode ser apoio aberto, porque Pequim não está interessada em antagonizar o ocidente a menos que seja pesadamente provocada (se o pivoteamente virar cerco linha-duríssima, por exemplo). Que ninguém esqueça: desde Deng Xiaoping (“mantenha perfil baixo”) trata-se e continuará a tratar-se da “ascensão pacífica” da China. E assim, enquanto os cães ocidentais ladram, a caravana sino-russa passa.
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Nota dos tradutores

[1] Referência a outro artigo de Pepe Escobar 17/3/2014, Asia Times – The Roving Eye: Russia 1, Regime Changers 0 onde se lê (trad.):

Obama tentou criar mais duas guerras (na Síria e na Ucrânia). E – sorte dele – perdeu ambas ainda enquanto “atentava”. Sortimento de neoconservadores e a brigada excepcionalista estão, como se poderia adivinhar, em pânico. Espera-se agora que a página de editoriais do Wall Street Journal enlouqueça completamente. E podem esperar também que a embaixadora dos EUA na ONU, Samantha “Responsabilidade de Proteger” Power pôr-se-á a resmungar feito Sinead O’Connor cantando “Nada se compara a você”.

Que se vê e ouve a seguir:

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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009. 

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