Jodi Dean |
23/12/2011, de You Scoop It, in Possible Futures
– Jodi Dean
“Vendeiro, vendeira! Vamos, vamos! Vamos
ouvir nossa mamãezinha Mirabeau!”
(Michelet,
1855, Les Femmes de La
Révolution, cap. V: “Les Femmes Du 6 Octobre [1789]”) [2] -
em francês.
“E insisto mais uma vez sobre o “plano” de
criarmos um jornal político para toda a Rússia”
(Lênin,
"Por Onde Começar?".
Iskra, n. 4, maio de 1901)
[2]
Semana
passada, fui para New York. Queria participar da tomada da Duarte Square. A ação
acabou antes da nossa chegada. Mas assisti a uma interessante conferência, do
grupo n+1. Houve painéis sobre finanças, ação direta, despejos e dívida. Entre
os que falaram, estavam Doug Henwood and David Graeber. Havia cerca de 200
pessoas (mas não sou boa nesses cálculos).
McKenzie
Wark estava sentado à minha frente. Disse duas coisas que me
marcaram.
Primeira:
vê-se que os EUA já são país do Terceiro Mundo, porque aqui praticamente todos
os grupos organizados de ativistas já são, quase todos,
ONGs.
Segunda:
As questões do movimento são simples – falta de empregos, “austeridade”, dívida
e sistema político fracassado.
Esse
postado tem a ver, sem muito rigor, com essas duas ideias. A primeira é
deprimente, mas não só porque nos põe diretamente, cara a cara, com a situação a
que os EUA chegaram (a cidade de NY é hoje mais desigual que o Brasil). A ideia
é deprimente, porque se vê que o modelo de ativismo via ONGs, por mais que tenha
conseguido alguns poucos avanços, ainda não parou de devastar o chamado Terceiro
Mundo, também chamado Sul Global.
O
modelo de ativismo das ONGs é modelo que coopera com o capitalismo.
As ONGs são
orientadas para questões específicas e mantidas e movidas por dinheiro doado
pelas corporações. Dependem sempre de especialistas e experts cuidadosamente selecionados pelos
patrocinadores.
Geert
Lovink, Jon Anderson e eu (na introdução da coleção “Reformatting Politics” que
editamos) vemos, nos governos dos quais as ONGs participem, o que chamamos de
“governabilidade pós-democrática”. Dizemos “pós-democrática” porque as ONGs não
têm representação democrática; até tentam ajudar, mas não representam, no
sentido de que não são nem eleitas nem escolhidas sequer pelos que as ONGs se
propõem a representar. Como logo se comprova, as ONGs não têm contas a prestar
aos que dizem representar: só devem responder aos próprios membros, às
diretorias e aos financiadores de cada ONG.
Para
não deixar dúvidas: “pós-democrático” não é termo de crítica: é termo
descritivo. Designa um tipo de ação política que surge e cresce quando a
democracia ou já não tem fôlego; ou ainda não emergiu. Os traços
“pós-democráticos” podem existir ao lado de práticas e instituições
democráticas, como elemento pós-democrático (assim como as práticas e
instituições democráticas também coexistem com elementos feudais).
Minha
preocupação, no caso do movimento
Occupy, é que pode acontecer de essa governabilidade pós-democrática
vir a truncar, ou vir a deslocar, as partes mais radicais e coletivistas do
movimento. Preocupo-me com isso, por causa da alta qualidade das contribuições
dos que falaram na Conferência n+1. Todos falaram focadamente, inteligentemente,
sabiam do que falavam – e mostraram que haviam refletido dedicadamente às
questões que discutiam. Eram especialistas, com saberes especializados. Alguns
acabam de graduar-se. É possível que só agora tenham refletido, pela primeira
vez, sobre algumas daquelas questões, porque o movimento radicalizou a
discussão, e os pontos cruciais puderam ser identificados. Mesmo assim, ainda
tive a impressão de que a discussão sobre algumas das questões e tópicos
especiais passam ainda por momento de reflexão singular, ainda não conjunta nem
coletiva.
As pessoas queriam que outros se juntassem a elas numa
ou noutra questão especial, ou num ou noutro setor do movimento (dívida dos
estudantes, moradia), mas ninguém estava cuidando de manter conectadas todas as
partes [1].
Claro, é parte do ideário autonomista, tão influente: cada um deve perseguir com
independência o que deseja, servindo-se da “marca” política do movimento Occupy.
É
surpresa que o público presente às Assembleias Gerais esteja diminuindo, que as
Assembleias Gerais sejam cada vez menos cruciais (Boots Riley, músico e ativista
do movimento de Oakland, escreveu recentemente sobre isso)? As Assembleias
Gerais são muito cansativas e consomem muito tempo. E quebram a rotina das
práticas, forçando as pessoas a um outro tipo de engajamento. Tudo que torna
sensacionais as Assembleias Gerais também as torna difíceis e vulneráveis ao
cansaço, à exaustão física; o que, por sua vez, torna as Assembleias Gerais
vulneráveis a “conclusões” que se aproximam perigosamente das práticas políticas
já conhecidas, que servem ao sistema e à sobrevivência do sistema – as práticas
do “ONGuismo” e dos grupos “de cidadãos” que atuam a favor de uma ou outra
posição que une, só, o próprio grupo, contra todos os demais grupos.
O
segundo ponto: há questões coletivas aqui; e são elas que mantêm a coesão do
movimento. São as questões da justiça e da responsabilidade. Nossa economia
promove injustiça e nosso sistema político não está respondendo responsavelmente
àquela injustiça. Tudo, no movimento, tem de estar focado nessa direção:
empregos e dívida.
O
desafio do movimento para o próximo ano, parece-me, é crescer. Gente. Precisamos
de mais gente. Não falo de alguma maioria do país. Falo de mais gente, para que
mais ações sejam possível, ações maiores, mais dramáticas. Precisamos de gente
para podermos fazer uma greve geral, para ocupar o Senado, para derrubar
mercados financeiros. Precisamos de mais gente, para empurrar o sistema falido
para o fundo do poço.
Como
se faz tudo isso? Com serviços e ação direta. Nada disso e fácil e tudo consome
muito tempo. O risco de todas as nossas ações é que rapidamente se tornam
personalizadas, são localizadas, des-radicalizadas, reinseridas nos quadros
“regulares” da “normalidade” (protestos de massa também podem tornar-se
“regulares” e “normais”). Por isso, quanto mais serviços (suspender despejos e
execução de dívidas, por exemplo, ações que tiveram tanta importância nos
eventos de 6/12) conseguirmos oferecer, para trazer mais gente para um movimento
mais amplo, mais fortaleceremos o movimento – como uma força nacional e global
que ele deve ser.
Notas
dos tradutores
[1]
Sobre
isso, ver A
“farsa democrática” e o desafio de inventar a democracia futura (1/2), 7/11/2011, Samir Amim. , onde
se lê:
“A
condição fundamental que permitirá que esse reagrupamento de combatentes
realmente trabalhe pela mesma causa é
a tomada de consciência do caráter imperialista do sistema que
há. (...) Se insisto na dimensão anti-imperialista
dos combates a fazer, é porque essa é a condição da possibilidade de construir uma convergência entre as lutas
do Norte e do Sul do planeta
[negritos dos tradutores]”.
O
artigo acima traduzido, escrito ao calor da hora do movimento Occupy, está ainda muito longe desse
tipo de clareza: só fala da necessidade de manter todo o movimento Occupy focado em torno de algumas causas gerais.
Mas o artigo faz BOA CRÍTICA das ONGs e ONGuismos. E é estimulante que já se
encontre aí, pelo menos, um ponto onde inserir, embora ainda só em NOTA DE
RODAPÉ, alguma reflexão mais madura sobre a importância de fazer convergir todas
as lutas de todos os pobres do mundo – importância da qual o movimento Occupy ainda não se deu conta.
Pode-se
até dizer que descobrir (ou reconstruir?) o “elo imperialista” que conecta entre
eles todos os movimentos de todos os pobres do mundo pode vir a ser o teste
crucial pelo qual o movimento Occupy
ainda terá de passar. Que seja! Só a luta ensina.
[2] Epígrafes
acrescentadas pelos tradutores
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