14/6/2013, [*] M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Os
EUA parecem ter aplicado um direto dos mais diretos no Kremlin, de toda a era
pós-Guerra Fria, com a Casa Branca anunciando, ontem, que
fornecerá armas aos rebeldes sírios.
O comunicado
oficial de Washington diz que:
Depois
de revisão deliberativa, nossa [dos EUA] comunidade de inteligência avalia,
conclusivamente, que o regime [de Bashar al-] Assad usou armas químicas (...).
Dadas as provas confiáveis de que o regime usou armas químicas contra o povo
sírio, o presidente [Obama] ampliou o fornecimento de assistência não letal à
oposição civil e também autorizou a expansão da assistência que damos ao
Conselho Militar Supremo [orig. Military Council (SMC)] (...)
Os
EUA e a comunidade internacional têm várias respostas legais, financeiras,
diplomáticas e militares à sua disposição. Estamos preparados para quaisquer
contingências e tomaremos decisões segundo nosso próprio cronograma. Qualquer
ação futura que venhamos a empreender será coerente com nosso interesse
nacional, para fazer avançar nossos objetivos.
A
Casa da Rússia precisa de reparos
Vladimir Putin |
O
presidente Barack Obama dos EUA deve encontrar o
presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante a cúpula do Grupo dos Oito (G8),
prevista para começar na próxima 2ª-feira na Irlanda do Norte. Deverá ser a
primeira vez que os dois presidentes encontram-se, depois das respectivas
reeleições à presidência.
Como
movimento de cortesia em relação a Putin , tanto no
plano pessoal como no plano político, Obama teria de ter adiado o anúncio da
“escalada” na Síria, até depois da reunião entre ambos. A Síria estava prevista como assunto de alta
prioridade na agenda daquele encontro, e Obama e Putin falaram-se várias sobre o
tema.
A
Conferência chamada “Genebra
2” foi
proposta conjunta de russos e norte-americanos. Os EUA não “perderiam a Síria”
se adiassem para a semana que vem o anúncio da “escalada”. Bem evidentemente,
Obama avaliou, friamente, que a simpatia de Putin pela “causa” dos EUA pouco
vale, ou, mesmo, que vale nada. Afinal de contas, persiste a discórdia na
questão dos mísseis de defesa, como um calo no pé, a atormentar as relações
EUA-Rússia, e sem solução à vista.
Frank A.Rose |
Alto funcionário do Departamento
de Estado, Frank Rose,
vice-secretário-assistente do Gabinete de Controle de Armas, já encerrara o
assunto na 4ª-feira, quando disse que Obama nada tem a oferecer a Putin em
matéria de mísseis de defesa. Rose disse
que:
EUA e
OTAN não podem aceitar as propostas russas de arquiteturas “setoriais” ou
“conjuntas” para os mísseis de defesa (...). A Rússia insiste em requerer
garantias legais que poderão limitar nossa capacidade para desenvolver e usar
sistemas futuros de defesa com mísseis (...). Já deixamos bem claro que não
aceitaremos limitações de nossa capacidade para nos autodefender, para defender
nossos aliados e nossos parceiros, nem sobre onde instalar nossa defesa de
mísseis balísticos [Orig.
BMD (ballistic missile defense] nos nossos navios Aegis (...). Os EUA têm de
ter flexibilidade, sem qualquer limitação legal, para responder às ameaças dos
mísseis sempre em evolução.
Por
outro lado, a moral da oposição síria chegou ao fundo do poço, depois de
esmagadora derrota que as gangues armadas sofreram em Qusayr. E as forças do governo de Assad já se preparam
para retomar também Aleppo. Se a queda de Qusayr significou o fim da entrada de
armas vindas do Líbano, a retomada de Aleppo pode cortar as linhas de
suprimentos vindos da Turquia que abastecem as gangues armadas que fazem
oposição a Assad.
Simultaneamente,
“Genebra 2”
também gorou. A oposição síria é dividida demais, fragmentada demais, e não
conseguirá apresentar delegação unificada. Os aliados regionais dos EUA –
Turquia, Arábia Saudita, Qatar – estão em fúria, acusando os EUA de deixar
esvair-se pelo ralo a “troca de regime” na Síria. E internamente, em Washington,
congressistas, empresas-imprensa e muitos think-tanks – quase todos sob
influência do lobby israelense, clamam por “ação mais decisiva” contra a
Síria.
Vinho
da Califórnia e uvas azedas
Edward Snowden |
Mas,
mais importante, é possível que a decisão da Casa Branca tenha brotado na cabeça
de Obama, quando voava de volta para casa a bordo do Air Force
One, depois de encontrar-se na
California com Xi Jinping, presidente da China, com Obama já sabendo do fato
terrível de que Edward Snowden, ex-CIA, ex-Agência de Segurança Nacional, vazara
quantidade arrasadora de documentos secretos.
Verdade
é que a repentina decisão de Obama, de intervir militarmente na Síria pode
deflagrar uma neo-Guerra Fria: é movimento diversionista desesperado, com o
governo Obama apanhado em momento em que a água já lhe chega ao queixo – efeito
do affair Snowden.
Todo
o edifício moral sobre o qual Obama tentou
construir seu governo e os valores que abraçou no âmago de sua “audácia da
esperança”, quando começou sua longa marcha até a Casa Branca há cinco anos –
transparência, prestação democrática de contas aos cidadãos, legitimidade,
multilateralismo, consenso – jazem hoje à vista do mundo, expostos como um
amontoado de mentiras.
O
xis da questão é que Obama está preso nos cornos de dilema idêntico àquele em
que se viu Bill Clinton, quando, na tentativa
desesperada de afastar os olhos do mundo para bem longe dos seus excessos
libidinais extra maritais... disparou mísseis cruzadores sobre Kandahar, em
agosto de 1998.
Obama distrai a atenção... |
Obama
hoje, como Clinton naqueles dias, precisa desesperadamente distrair a atenção
mundial: a imprensa governamental chinesa já começou a falar do
affair Snowden. Em matéria intitulada “Programas
de espionagem são primeiro teste para as relações China-EUA”, o
jornal China Daily, ontem, quebrou o silêncio e criticou o governo Obama,
que propusera fazer da questão da cibersegurança “um novo campo de cooperação”
entre Pequim e Washington.
Interessante,
a matéria observa que Snowden permanece em Hong Kong, “fora do alcance de
Washington”. Diz também que Moscou já ofereceu asilo ao fugitivo. E conclui
citando um conhecido especialista chinês:
Se
esse caso for satisfatoriamente encaminhado, o sucesso servirá como importante
precedente entre os dois países, uma vez que não há leis internacionais que
regulem as questões da segurança global na internet.
Na 6ª-feira, o Global Times chegou
às ruas com
um editorial em que diz que “a China merece explicações sobre PRISM” do governo
Obama. Aqui, alguns excertos:
As
revelações de Snowden sobre ciberataques conduzidos pelos EUA contra Hong Kong e
redes em território chinês são assunto de alto interesse nacional da China. O
governo chinês buscará recolher mais informações e informações mais consistentes
do próprio Snowden, se as tiver, e deve usar essas informações como provas nas
negociações com os EUA (...) A opinião pública chinesa voltar-se-á contra o
governo central da China e o governo de Hong Kong se decidirem entregar Snowden
aos EUA. (...) Snowden é “trunfo” valioso com o qual a China jamais contou.
Impactos
sobre a dinâmica do poder
Ambos
os jornais, China Daily e People's
Daily trazem também matérias hoje, em
que dizem que os EUA “devem uma explicação à China sobre as atividades de
hacking e devem manifestar mais seriedade e sinceridade no
futuro, sempre que falarem de se engajarem em cooperação para cibersegurança”. E
prosseguem: “Washington meteu-se numa posição bem incômoda na atual disputa
sobre cibersegurança com Pequim”.
O
tom desabrido deixa bem claro que Pequim está jogando com as melhores cartas – e
que Pequim sabe que Washington sabe que Pequim tem melhores cartas – e seja qual
for o desenrolar da saga Snowden nos próximos
meses (ou anos).
A
tática diversionista de Bill Clinton em agosto
de 1998 teve consequências desastrosas, desencadeando uma sequência de eventos
que culminou nos ataques do 11/9 e na intervenção militar dos EUA no Afeganistão
(de onde, ironicamente, Obama tenta desesperadamente desvencilhar-se).
D. Rumsfeld |
Jazem
ocultas no ventre do tempo, a partir de agora, as consequências que advirão da
trágica decisão que Obama tomou nesse 13/6/2013 para forçar a mudança de regime
na Síria, sobre a política e a história do Oriente Médio – e sobre o próprio
curso desse pós-Guerra Fria.
O ex-secretário de Defesa dos EUA,
Donald Rumsfeld diria que há o “não sabido não
sabido”. Para começar: como Putin reagirá? Hoje, ele já enfrenta forte pressão
do governo dos EUA, que já obra para provocar “mudança de regime” na Rússia. Na 4ª-feira, Putin
reclamava que:
Nosso
[russo] serviço diplomático não coopera com o movimento Occupy Wall
Street, mas o
serviço diplomático deles [dos EUA] coopera e apóia diretamente a oposição [na
Rússia]. Na minha opinião, estão errados, porque serviços diplomáticos existem
para construir relações entre estados, não para interferir em assuntos políticos
internos dos estados.
Não
há dúvidas de que não será decisão simples, agora, para os russos, desistir dos
esforços para pacificar a Síria. Que alternativas haverá? A partir de agora, com
certeza, as melhores cabeças do Kremlin trabalharão exclusivamente para
responder essa pergunta.
No
próprio Oriente Médio, a decisão da Casa Branca também impacta dramaticamente a
dinâmica do poder. Recep Tayyip Erdogan da Turquia, por causa de suas tendências
autoritárias, vive às turras com o governo Obama. Mesmo assim, a decisão da Casa
Branca catapulta a Turquia para a posição de “estado linha-de-frente”... Mas a
opinião pública turca milita contra qualquer intervenção militar na Síria.
Arábia
Saudita, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Jordânia, Irã, Hezbollah, Israel,
Iraque, Líbano – todos estão envolvidos na questão síria, de um modo ou de
outro. Será virtualmente impossível arrebanhá-los, reuni-los, convencê-los a
marchar juntos rumo a algum resultado final agradável. Isso, é claro,
assumindo-se que a Síria sobreviva como entidade, no mapa do Oriente
Médio.
[*]
MK
Bhadrakumar
foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista em
questões do
Afeganistão e
Paquistão e
escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais The
Hindu, Asia
Online e Indian Punchline. É o filho mais
velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e
militante de Kerala.
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