18/9/2012, Marco d’Eramo* - Il Manifesto,
Itália
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
“God bless you and may God
bless the United States of America”
Pres. Barack Obama
(em todos os discursos nos EUA) [1]
Há
15 meses, o jornal Il Manifesto organizou conferência sobre as primaveras
árabes, sob o mote “A esperança na rua”. Hoje podemos perguntar-nos o que foi
feito daquela esperança e o que foi feito da rua. Já naquele momento as
intervenções e testemunhos foram cautelosos, mas ninguém, certamente, podia
prever a extensão da regressão fundamentalista. Hoje, a Irmandade Muçulmana
governa o Egito, homólogos dela guiam Túnis, e integristas financiados e armados
por Qatar e Arábia Saudita preparam-se para ocupar a
Síria.
Para
não falar de algumas derivas aparentemente marginais (embora nada tenham de
marginais), como a insurgência islamista no Mali. Onde antes governavam
ditadores, hoje dominam tendências teocráticas.
Robin Blackburn |
Mas,
será, de fato, regressão? O historiador, ensaísta e socialista britânico Robin
Blackburn (1940), que foi editor da New Left Review, defende, há tempos,
duas teses. Uma, relacionada à primeira revolução democrática na Europa, a
revolução britânica de Oliver Cromwell e seus puritanos (1642-1651). Foi em nome
do fundamentalismo cristão que, pela primeira vez na história, houve movimento
popular suficientemente forte a ponto de cortar a cabeça de um rei (Carlos I, em
1648). E os pais fundadores da democracia americana foram os peregrinos do
Mayflower (1620), outros fundamentalistas puritanos, que fugiam de perseguição
religiosa.
Portanto,
a imagem de democracia laica que se teria desenvolvido no ocidente é, no mínimo,
parcial: é imagem que só se aplica talvez à versão francesa de 1789 (embora
também em Paris os revolucionários tenham sentido que não derrotariam o antigo
regime sem nova religião: a da “deusa Razão”). Como se revolução estrutural,
virada social radical, tivesse sempre a imperativa necessidade de acolher uma
dimensão escatológica, uma motivação milenarista.
Mas até
quando as revoluções democráticas europeias nasceram como agitações
fundamentalistas religiosas, há de fato entre o capitalismo e o fundamentalismo
religioso um vínculo ainda mais ambivalente, explorado de Max Weber (A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo [2]) em
diante. Ambivalente, porque a ética calvinista transpira por todos os poros do
capitalismo moderno, mas, por outro lado, a mercantilização de todos os aspectos
da vida carrega nela mesma uma carga explosiva profanadora (que Marx
admirava).
Daí
a duplicidade do Ocidente (se essa categoria tem algum sentido) ante os
fundamentalismos. Inclusive do caso da laicíssima França, os estudiosos do
colonialismo falam de “paradoxo francês”: os franceses defendem de capa e espada
o laicismo de seu Estado, mas suas colônias sempre favoreceram a religiosidade e
fomentaram os exponentes clericais. Na mesma sintonia, o multiculturalismo
inglês revelou-se, afirma Amartya Sen, como um “multifundamentalismo”, uma vez
que sempre privilegiou como interlocutores os líderes religiosos das minorias.
Para nem dizer que, nos últimos 30 anos, os EUA foram governados
majoritariamente por cristãos fundamentalistas: da moral majority
[maioria moral] de Ronald Reagan aos cristãos conservadores de George Bush Jr.
Numa
acepção mais mundana, os EUA e as potências ocidentais sempre privilegiaram as
suas relações internacionais com fundamentalistas e integristas, não com
partidos seculares ou de esquerda. De início, Israel financiou o Hamás, para
minar o prestígio de uma organização então “laica”, a Organização para a
Libertação da Palestina (OLP). No Paquistão, o general Zia Ul Haq foi preferido
ao laico Ali Bhutto. Na Índia dos anos 90’s, o Partido Bharatiya Janatha
(fundamentalista hindu) foi usado contra o secular Partido do Congresso, da
família Nehru. A mesma preferência pelo fundamentalismo manifestou-se nos Bálcãs
nos anos 90s e hoje se manifesta com plena força no Oriente Próximo. Quem os
muito laicos ocidentais financiaram na Líbia e na Síria, se não vários
salafistas, wahabistas, a Irmandade Muçulmana e outros representantes do
confessionalismo islâmico? Que faz o Ocidente, além de incitar ao “choque de
civilizações” que tanto diz que evita?
Daí
a segunda tese de Robin Blackburn: os povos muçulmanos não tiveram qualquer
possibilidade de desenvolver democracia secular; e quando tiveram foram
destruídos, como aconteceu ao burguês iraniano (nacionalista) Mossadegh, em
1953.
O
único laicismo que o ocidente permitiu foi o das ditaduras, militares ou não: na
Turquia (os generais epígonos de Atatürk), no Egito (os militares Nasser, Sadat
e Mubarak), na Síria (o general Hafiz al-Assad e seu filho Bashar), no Iraque (o
general ad honorem Saddam Hussein), na Tunísia (Ben Ali, chefe da
inteligência militar, antes de ser presidente), na Argélia (Houari Boumedienne e
Chadli Bendjedid, generais, e esse também ex-chefe dos serviços de segurança do
exército) e na Líbia (o coronel Muammar Gaddafi).
É
compreensível, pois, que os turcos entendam que já tiveram dose suficiente de
laicismo com ditadura e generais; e que se tenham entregue a um partido
islâmico. Além do mais, todos esses regimes foram laicos e implacáveis nas
relações sociais; a única forma de assistência que o povo jamais encontrou era
oferecida por organizações beneficentes islâmicas – modelo Cáritas – uma rede de
segurança, contra o desespero generalizado.
Não
há pois grande mistério em os egípcios e tunisianos terem optado pelo voto
islamista. A pergunta é: se o presidente Mohammed Mursi (ex-dirigente da
Fraternidade Muçulmana) será o Cromwell egípcio, ou uma versão árabe e sunita de
Khomeini? Se os novos regimes confessionais serão capazes de reequilibrar as
escandalosas desigualdades econômicas e sociais, ou se, ao contrário disso,
reconstituirão a velha aliança entre o clero e o feudalismo?
Em
resumo, se vão lançar o Oriente Próximo na direção de uma pós-modernidade
islâmica, ou na direção de trocar um subdesenvolvimento ocidentalizante corrupto
por um subdesenvolvimento islamizante
beato.
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Marco d’Eramo*
é físico e sociólogo italiano, correspondente de vários jornais italianos em
vários países, atualmente jornalista de Il Manifesto, jornal do qual foi
redator-chefe das editorias “Internacional” e “Economia
Internacional”.
Notas dos
tradutores
[1] Epígrafe acrescentada pelos
tradutores brasileiros. Pode ser visto/ouvido, a seguir:
[2] Pode ser baixado de: “A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – Max Weber
(1864-1920)
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