Nir Rosen, London Review of Books, vol. 34, n. 18, set. 2012, p. 19-20
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
“A
introdução do vírus de salafismo sectário que está sendo injetado na Síria pelos
sauditas e turcos é deliberado ato de intromissão – como foi feito no
Afeganistão nos anos 1980s. A questão é que os alawitas pouco conhecem os
fundamentos teológicos da própria religião, que é assunto de estudo só por
especialistas iniciados. Os alawitas creem na reencarnação e pouco têm em comum
com o islamismo dominante, nem sunita nem xiita, que praticamente desconhecem.
Para os alawitas, a religião é mais manifestação cultural, que questão de fé.”
Nir Rosen |
O
que define o coração da Síria alawita são as cerimônias fúnebres, os funerais.
Em Qirdaha, na montanhosa província da Latakia, terra natal da família Assad, vi
dois policiais, com motocicletas adornadas com flâmulas com a imagem de
Bashar-al-Assad, que subiam uma ladeira. Faziam a escolta de uma ambulância que
conduzia o corpo de um tenente-coronel do Exército Sírio. Homens postados na
calçada, ao meu lado, davam tiros de metralhadora para o alto, homenagem ao
morto. Meus anfitriões e intérpretes locais davam sinais de embaraço.
Prefeririam que eu não assistisse àquelas manifestações; disseram que era
primeira vez que acontecia. “É o enterro de um mártir”, disse um deles. –
“Então, para nós, é como um casamento”. Crianças com uniformes escolares e
professores também postados nas calçadas, jogavam arroz e pétalas de flores na
direção do cortejo. Cantavam “Só há um Deus e Deus ama os mártires”. Centenas de
pessoas vestidas de negro andavam pelas ruas da cidade na direção do santuário
local, para a cerimônia fúnebre. De todos os lados, ouviam-se cânticos de
“Bem-vindo, oh mártir. Queremos Assad! Todos queremos Assad!”
Era
abril, sexto mês de minha viagem pela Síria. Depois que saímos dali, chegaram
notícias de outro funeral, ali perto, na vila de Ras al-Ayn, perto da costa. Uma
vila de 700 habitantes já tinha então sete mártires, soldados do Exército Sírio;
seis desaparecidos ou capturados; e muitos feridos.
“Todos
os dias enterramos mártires”, diz um oficial. “Sacrificaram-se pela Síria”. Um
homem, ao lado, falou sobre “os crimes deles”; “eles” mataram o soldado porque o
soldado era alawita. Um dos meus guias reclama. Diz que não deve usar termos
sectários sobre o conflito. “A oposição não nos deixou escolha” – diz um
soldado. “Em matéria de negociação, só querem matar”.
Os
alawitas – a seita xiita ortodoxa que é a religião dos Assads, cujos crentes
permanecem na maioria fiéis ao presidente e ao governo – são cerca de 10% da
população. A maioria dos sírios – cerca de 65% – são árabes sunitas. Os alawitas
são uma das várias minorias, como os curdos sunitas e cristãos, os drusos, os
xiitas não alawitas e os ismailis. Mas os alawitas sempre foram vistos como caso
especial.
Os
alawitas pouco conhecem dos fundamentos teológicos da própria religião, que é
assunto de estudo só por especialistas iniciados. Mas a crença na transmigração
das almas, na reencarnação, e na divindade de Ali, primo do Profeta – numa
trindade constituída de Ali, Maomé e um de seus companheiros, Salman al Farisi –
põem os alawitas em ponto bem distante do centro da curva do Islã dominante.
Para muitos alawitas, a religião é menos uma fé rigorosa e impositiva, que uma
expressão da própria cultura do grupo.
A
identidade alawita gera algum complexo de inferioridade e medo da dominação
sunita. Os alawitas gostam de reencenar a história da própria opressão. “O
destino dos alawitas jamais foi invejável” – escreveu a historiadora palestina
Hanna Batatu. – “Sob os otomanos, foram abusados, vilipendiados e degradados por
vários tipos de exclusão; não poucas vezes, suas mulheres e crianças foram
capturadas e oferecidas à venda”. Foram praticamente servos dos senhores feudais
sunitas que os otomanos impuseram. Só em 1920, quando começou o mandato francês,
o poder da elite sunita foi reduzido, e as minorias, entre as quais os alawitas,
começaram a gozar de alguma precária mobilidade social. Os alawitas muito
reivindicaram, sem sucesso, que os franceses lhes dessem estado à parte, que os
protegeria do domínio dos sunitas.
Para
os alawitas, a doutrina pan-arabista do Partido Ba’ath, que tomou o poder
mediante um golpe, em 1963, foi o meio que encontraram para superar uma
identidade sectária. O exército e os empregos no funcionalismo público deram-lhe
meios para escapar das vilas empobrecidas. Rapidamente, pessoas de todos os
tipos, emigrados do campo para as cidades, mas, sobretudo, alawitas, passaram a
dominar os escalões iniciais do exército, os corpos de oficiais e as academias
militares. Em 1971, Hafez al-Assad, alawita e ex-piloto da força aérea, já então
Ministro da Defesa da Síria, comandou um golpe contra um rival Ba’athista.
Quando Hafez morreu em 2000, depois de permanecer trinta anos no poder, seu
filho Bashar foi empossado na presidência. Naquele momento, os alawitas
haviam-se convertido, de minoria perseguida e marginalizada, em grupo protegido
pelo Estado; e o Estado, por sua vez, havia-se convertido em núcleo da
identidade alawita.
“Estímulo
poderoso para tentar construir a coesão na atual conjuntura, é o grave temor,
entre os alawitas de todos os níveis e escalões da sociedade, de que os alawitas
sofrerão consequências muito graves, se o atual regime entrar em colapso” –
escreveu a historiadora Batatu, em 1981.
Historicamente,
os alawitas sempre se mantiveram à margem do Islã que Assad-pai teve de insuflar
na Síria, na “islamização” indispensável para que a maioria sunita o aceitasse
como presidente da Síria. Os alawitas veem-se como mais “liberais” e mais
seculares que os muçulmanos em geral. Podem consumir bebidas alcoólicas; homens
e mulheres usam roupas ocidentais; e homens e mulheres interagem livremente em
todos os espaços públicos. Não raras vezes, suas opiniões divergem completamente
da opinião dos sunitas, mais conservadores. Os alawitas lembram o levante da
Fraternidade Muçulmana nos anos 1980s como tempo de violência, quando o regime
lutou contra terroristas, até esmagá-los; para os sunitas, foi tempo em que o
regime perseguiu brutalmente os sunitas, coletivamente. Naqueles dias, era
difícil encontrar um sunita, membro da oposição, que não tivesse perdido um tio,
ou que não tivesse pai ou avô na cadeia, preso durante a repressão que se seguiu
ao levante coordenado pela Fraternidade Muçulmana. Até agora, a oposição nada
disse sobre o que será feito das centenas de milhares de prisioneiros que
permanecem nas prisões, no caso de o regime de Assad cair. Os alawitas entendem
que têm bons motivos para ter medo.
Na
província litorânea de Tartus e em outras partes da região em que vivem os
alawitas, foram instalados incontáveis novos postos de controle e revista,
comandados por grupos leais a Assad, pelo Exército Sírio ou por membros
paramilitares de comitês de resistência popular, em que se misturam uniformes
militares e trajes civis. O interior da região armou a própria defesa.
Estive
em maio na cidade de Xeique Badr, nas montanhas da província de Tartus. Ali
haviam sido mortos 43 membros da resistência local; sete haviam sido capturados,
ou eram dados como desaparecidos. Quando eu entrevistava o prefeito, em seu
gabinete, veio a notícia de que acabava de chegar mais um soldado ferido. O
primeiro mártir da cidade de Xeique Badr foi morto em Daraa, em abril de 2011,
um mês depois de iniciado o levante. O mais recente, um coronel morto em
Damasco, havia sido enterrado dois dias antes da minha chegada.
A
cidade é conhecida por ser terra natal do Xeique Saleh al-Ali, herói da luta
anticolonial, que lutou contra os franceses. “Num famoso discurso, ele rejeitou
a ideia de estado alawita independente, porque amava a Síria” – disse-me o
prefeito, citando de memória partes daquele discurso; ao lado, Abu Haidar, homem
da segurança, ouvia. “Não acreditamos em Hafez al-Assad porque fosse alawita,
mas porque foi grande patriota” – disse ele. – “Que governo permaneceria no
poder por 40 anos, sem o consentimento do povo?”. O prefeito reagiu estremeceu,
quando lhe perguntai como responderia a novo presidente que a Síria viesse a
ter. Como a maioria dos alawitas que encontrei, não conseguem sequer imaginar
governo na Síria, sem algum Assad. Um dos homens que assistia à entrevista
perguntou como era possível que – na Líbia, na Tunísia, no Egito, na Arábia
Saudita e em toda a parte – o ocidente apoiasse islamistas em vez de “movimentos
mais seculares e mais avançados”?
O
prefeito, como muitos apoiadores do regime de Assad, acredita que esteja
em curso na
Síria uma conspiração de fundamentalistas islamistas.
Para
eles, os levantes na Tunísia, no Egito e na Líbia não foram irrupções
espontâneas de protesto popular, mas conspiração organizada para a qual se
uniram os EUA, a Fraternidade Muçulmana e os países do Golfo Árabe. “Não é
movimento popular. É movimento salafista” – disse um deles. “O que conseguiram,
afinal, as revoluções na Tunísia, Líbia e Egito?” – perguntou Abu Haidar. A
ascensão de islamistas ao poder naqueles três países tornou os alawitas sírios
ainda mais desconfiados de que o fim do governo Assad venha, algum dia, a
significar qualquer tipo de mudança para melhor.
Perguntei
a Abu Haidar, o homem da segurança, por que Bashar só começara suas (tímidas)
reformas depois que começaram os protestos na Síria em março de 2011.
Respondeu-me como respondem os apoiadores do regime, que os eventos de 2003
(invasão do Iraque), 2005 (assassinato do Primeiro-Ministro libanês Rafiq
al-Hariri e retirada dos sírios do Líbano), 2006 (guerra de Israel contra o
Líbano), 2008 (disputas internas no Líbano) “nos tiraram a liberdade para
promover reformas”. Perguntei então se as forças de segurança não haviam atirado
contra manifestantes desarmados. Todos responderam que não e insistiram em que o
regime proibiu o uso de armas contra manifestantes. Não sei se proibiu ou não,
mas sei que houve tiros contra manifestantes. Em seis meses na Síria, estive
presente em mais de uma centena de manifestações da oposição. Atiraram contra
mim em várias daquelas manifestações. Uma vez, um jovem que estava ao meu lado e
atirara uma pedra, recebeu tiros no abdômen e morreu na calçada.
Para
viajar em segurança por áreas alawitas, contratei, para me acompanhar, um
sargento do exército, dispensado do serviço ativo, de nome Abu Laith, nascido em
Rabia, cidade na área rural de Hama. No ano que o conheci jamais o vi comer, mas
fumava narguilé cada vez que tinha uma chance; falava constantemente ao
telefone, em negociações de seu segundo emprego, como contrabandista de
cigarros. Seu salário era de 17 mil liras mensais, cerca de £160. “Não temos
conexões no Estado”, contou-me. Por isso, não conseguia emprego no funcionalismo
civil: “os únicos empregos que nos restam são o Exército ou serviços de
segurança”. Na venda de cigarros contrabandeados, conseguia ganhar 1.000-1.500
liras extras por dia. Vários de seus irmãos estavam ou no Exército ou na
Polícia. Dirigindo por áreas que não conhecia, várias vezes perguntou às pessoas
como fazer para evitar áreas sunitas. Em alguns pontos, os locais abriram
estradas alternativas através de cidades alawitas e cristãs; pelas paredes,
viam-se setas pintadas nas paredes, indicando o caminho, para que ônibus e
outros carros pudessem evitar os pontos ocupados pela oposição. Quando nos
aproximávamos de áreas sunitas, Abu Laith carregava a pistola Makarov. “Vou
sair-lhes caro” – explicou. “A coisa mais importante é não morrer sem dar-lhes
trabalho”. Falou-me sobre a centena de homens de sua força de segurança regional
que haviam sido mortos. Outros duzentos foram feridos. Cinco de seus primos
foram mortos.
A
maioria dos homens de Rabia servem no Exército ou em forças de segurança em
outras partes do país. Muitos vivem em complexos de hospedagem para militares,
ou arranjaram casa e família na periferia da grande Damasco onde vivem operários
alawitas. Qudsaya, subúrbio sunita de Damasco, inclui dois “enclaves” alawitas:
Wurud e “Guarda Republicana”, nome que homenageia os soldados que ganharam casas
ali. As duas áreas são contíguas a bairros de operários sunitas; desde o início
do levante, começaram os conflitos entre as duas comunidades. Muitos dos prédios
foram construídos ilegalmente e às pressas, em terras do Estado. As
autoridades fingem que não veem esses acordos informais, porque os moradores são
elementos chave das forças de segurança. Aqui, como nas vilas de onde vieram os
moradores, há poucas estradas pavimentadas e praticamente não há serviços
públicos. Apesar do abandono, são fiéis apoiadores do regime, a guarda
pretoriana que se vê nas ruas. Os homens da segurança que nos cercavam
argumentaram que a pobreza em que vivem é prova de que os alawitas não extraem
qualquer benefício do regime. “Nunca pedimos coisa alguma e nada queremos, além
de viver em segurança”.
Quando
Abu Laith levou à sua cidade, Rabia, notícias sobre nossa chegada espalharam-se
rapidamente. Milhares de moradores organizaram manifestação que pareceu
instantânea, espontânea e sincera, de apoio ao regime, no centro da vila, ao
lado de uma estátua de Hafez al-Assad segurando um ramo de oliveira e uma
espada. A estátua, paga pelos moradores, foi erigida depois do início do
levante. Por trás da estátua, um gigantesco pôster com uma foto de Hafez e
Bashar. Sobre o pôster, alguém escrevera “Rabia é a toca do leão”, jogo de
palavras com assad, que significa “leão”. Fui levado de casa em casa,
para que todos pudessem falar dos parentes mortos e feridos, e dos 42 mártires
de Rabia. Disse a um grupo de homens da cidade que, quando visitara cidades onde
havia bases operacionais da oposição, como Baba Amr em Homs, também ouvira
contar de pais e filhos que haviam sido martirizados. “Nossos filhos estavam
simplesmente indo trabalhar” – respondeu um coronel do Exército cujo sobrinho
foi morto em Idlib.
“Há grande diferença entre matar um homem que saiu de casa para
ir trabalhar para o Estado, e matar alguém armado que atira contra o Estado.
Pode-se dizer que cinco soldados assassinados num posto de passagem foram
assassinados por manifestantes pacíficos?”.
Ao
longo do ano que passou, os alawitas de Rabia tiveram vários conflitos com
moradores sunitas das vilas próximas. No verão, os alunos da cidade não puderam
viajar até Hama para os exames escolares, porque a oposição bloqueara a estrada.
Cerca de trinta famílias alawitas que viviam em vila próxima, de maioria sunita,
mudaram-se para Rabia, sentindo que já não estariam seguros onde viviam antes.
As famílias desalojadas de onde viviam sentiram-se frustrados com a resposta que
receberam do governo. “Não tínhamos armas. Tivéssemos, teríamos ficado e lutado”
– disse-me um velho. “Deveriam ter-nos mandado tanques. Mas a oposição bloqueou
todas as estradas. Queremos que o Estado resolva nossos problemas e que o
Exército nos devolva às nossas casas. O Exército tem de entrar nessas vilas. Mas
estão ocupados, agora, em Hama. Por que o Estado move-se tão devagar?”. O pai de
Abu Laith, soldado aposentado, concordou. “Só o Exército poderá resolver isso” –
disse ele. “Se respondermos nós mesmos, será visto como violência sectária e as
outras vilas sunitas unem-se contra nós. Estamos em menor número”.
De
Rabia, parti para o noroeste, na direção de Aziziya, uma remota vila alawita que
lutou contra os sunitas da vila vizinha de Tamana. Como em muitas vilas
alawitas, a maioria dos homens trabalha ou no Exército ou na segurança. Os
sunitas vizinhos apoiam, todos, a oposição; e houve operações de milícias
sunitas na área, desde a primavera. Salhab, a vila mais próxima, de tamanho
significativo, está acolhendo centenas de mães e crianças alawitas que fugiram
de suas casas. A luta entre Aziziya e Tamana não dá sinais de estar amainando.
Encontrei várias famílias em estado bem próximo da histeria. Uma mulher
recém-chegada a Salhab gritava: “Saímos de lá sob fogo! Nossa dignidade é
preciosa! Nosso líder é respeitável. Os sunitas são traidores. Tudo por Bashar!”
“Pedimos
reforços ao Estado” – outra queixa várias vezes repetida – “mas não mandaram
reforços.” Todos concordam que as relações com os vizinhos sunitas sempre foram
amistosas e próximas, até o levante. “Éramos vizinhos” – disse-me uma das mães.
– “Comíamos juntos, nos visitávamos, uns as casas dos outros. Houve incitamento
sectário. De repente, havia gente nas ruas, gritando, praguejando.” Apesar da
frustração com o regime que não os está protegendo – crítica que se ouve em
muitas comunidades alawitas –, querem mostrar que sua devoção a Bashar não
diminuiu. “Eles podem matar todos nós” – disse uma mulher. “Mas se um de nós
restar vivo, continuará a apoiar o presidente.” Há aí uma contradição
intrigante. Os alawitas veem-se eles mesmos como os cidadãos mais pobres do
país, originários de vilas pobres, negligenciados por Damasco. Mesmo assim, se
declaram dispostos a deixar-se matar pelo Estado que, segundo eles mesmos, não
os está protegendo.
No
início do levante, conheci o Dr. Yahya al-Ahmad, figura influente das áreas de
alawitas de classe média de Homs. Naquele momento, sua principal preocupação era
trabalhar junto aos seus amigos sunitas para reduzir as tensões sectárias. Eu
estava sentado sobre a laje de sua casa durante uma daquelas reuniões, quando
atiradores escondidos, de repente, abriram fogo contra nós. Ninguém foi ferido.
O Dr. Al-Ahmad e seus amigos suspeitaram de que os atiradores não fossem membros
da oposição, mas extremistas leais ao regime. Quando nos encontramos novamente,
no início de 2012, as coisas haviam-se deteriorado – a casa havia sido atacada
duas vezes com morteiros pela oposição; e o Dr. Al-Ahmad tivera de mudar-se e
passava quase todo o tempo numa cidade próxima. Em torno da casa, praticamente
todas as lojas estavam fechadas. O Dr. Al-Ahmad contou que alguns alawitas
haviam sido sequestrados; e que outros alawitas haviam retaliado. Perguntei
quantos alawitas haviam sido mortos. “Mortos? Você quer números? Paramos de
contar. Os números deixaram de ter importância”. Meus amigos na oposição várias
vezes disseram praticamente a mesma coisa sobre seus mortos.
“Homens
armados controlam as coisas” – Yahya continuou. – “Estou armado. É uma resposta.
Se o Estado não nos dá segurança, então é conosco. Como alawita, você não pode
depender só do Estado. E se os homens que fazem a vigilância caem no sono?” A
posição de Yahya mudou. “Há um ano, se você me perguntasse quem poderia
substituir Bashar al-Assad eu teria pensado num ou noutro nome. Pergunte hoje, e
lhe direi que só aceito Bashar al-Assad”. Mas há nele a mesma ambivalência que
se vê em muitos alawitas. “Bashar enfraqueceu a segurança na vida diária. Aí
está uma das causas do que se vê hoje”. Tentei que ele reconhecesse o número
inadmissível de civis mortos nos ataques do governo contra o povo. “Gente
inocente é morta todos os dias” – respondeu ele. “Ninguém pode distinguir, ante
um homem armado contra você, se ele é culpado ou inocente. Que governo, no mundo
inteiro, aceitaria não se defender?”.
Um
alto dirigente do Exército, responsável por Homs, dentre outras cidades,
disse-me que 80 oficiais com comandos e sem estão presos por “erros” – abusos,
atrocidades, tortura – e que pelo menos dez devem esperar sentenças de 15 anos.
A asserção pareceu sem sentido, face à violência do regime contra civis. (Se o
Exército Sírio fez qualquer tentativa para disciplinar seu pessoal, não foi
divulgada.) Os alawitas não erram, ao sentir que, se se considera a fúria da
repressão, o estado sírio está perdido, sem saber o que fazer para protegê-los.
Esse sentimento, sobretudo, é o que levou ao crescimento de milícias leais ao
Estado, cada dia mais fortes e cada dia mais independentes, que agem em plena
impunidade e não raras vezes criam problemas para o governo de Assad. As
milícias foram responsáveis por vários massacres em Homs e Hama , mas Bashar não está
em posição que lhe permita controlar seus seguidores mais renitentes.
Um
engenheiro em Homs, alawita que se aliou à oposição, disse-me que a primeira vez
que viu milícias legalistas em ação foi em março de 2011. “Não tinham qualquer
comando ou organização. Não eram organizados por ninguém, além deles mesmos” –
disse ele. Mas em julho já estavam organizados. E hoje operam por conta
própria... Nada mais perigoso numa guerra civil que a gente que vive dela e
depende financeiramente dela. Vi acontecer no Líbano. Em Homs o que temos é
aberta guerra civil”.
Nos
tempos de Hafez al-Assad, a expressão shabiha, que significa “fantasmas”,
designava os criminosos e contrabandistas organizados que cooperavam com as
forças de segurança. Alguns eram do clã Assad – o irmão de Bashar é famoso por
ter esmagado elementos da shabiha Assad que escaparam ao seu controle –
mas nunca, em momento algum, foram alawitas. Contudo, quando o levante começou,
a palavra shabiha muito rapidamente passou a aplicar-se a milícias
legalistas; com o tempo, já designava qualquer força leal ao governo de Assad.
Em seguida já se ouviam, nas manifestações pró-regime, cantos dirigidos à
oposição e que diziam: “Somos a shabiha! Deem adeus à liberdade!
Shabiha para sempre!”.
Um
oficial de segurança disse-me que há milhares de shabiha – comitês
populares – nas áreas periféricas alawitas de Homs. Não são milícias pagas,
disse ele; mas continuam a receber os salários de funcionários públicos que
recebiam antes, embora já não compareçam aos locais de trabalho. Reportam-se aos
prefeitos locais. “Podem prender qualquer um, de Khaldiyeh ou Bayada [dois
bairros sunitas, em Homs]” – disse ele. – E entregam o prisioneiro ao Exército.
Trabalham coordenados com o Exército”.
O
engenheiro de oposição em Homs foi mais claro: “Shabih é gente que ama
Bashar mais do que Bashar se ama ele mesmo. Shabih é uma cultura, não uma
pessoa. Eles se sentem acima da lei, sentem que são a lei... Por hora, o estado
ainda pode controlá-los, mas não sei se conseguirão controlá-los no futuro.
Atualmente, o estado está usando os shabih. O estado criou essa gente”.
Os alawitas que se unem à oposição, acrescentou, são vistos como traidores da
seita. Alguns alawitas ativos na oposição em Homs, como ele, já morreram nas
mãos dessas milícias legalistas: em abril de 2011, numa das principais praças de
Homs, uma manifestação pacífica da oposição, da qual participaram até alguns
alawitas, terminou num massacre cometido por homens dos comitês populares de
apoio a Bashar e do Exército.
O
que será dos alawitas, se o regime cair, e o que será da base de apoio popular
que está com Assad, são perguntas diferentes. Entre os que apoiam Bashar há
outras minorias, além dos alawitas – para nem falar dos muitos sunitas que o
apoiam. Desde o início o governo apresentou a oposição como motivada por
sectarismo – acusação que estimula ainda mais o sectarismo que parece deplorar.
Mas o governo cuidou atentamente de não manifestar qualquer tipo de preferência
sectária – o que deixou os alawitas ainda mais desamparados, apesar de sua
manifesta solidariedade. Os que defendem Bashar dizem que há diversidade em seu
campo; e que a oposição é quase completamente sunita. Mas oficiais e soldados
sunitas sempre estiveram lado a lado em unidades de elite do exército, como a 4ª
Divisão e a Guarda Republicana. E muitos intelectuais da oposição já admitiram
abertamente que, se a base de apoio ao governo de Bashar fosse composta só de
alawitas, o regime já teria caído há muito tempo. Se se tratasse exclusivamente
de conflito entre sunitas e alawitas, Bashar perderia o apoio que os sunitas
sempre lhe garantiram na Síria; e estaria reduzido ao apoio de 10% da população,
mais alguns grupos de outras minorias.
Quando
perguntei a Abu Rateb, líder do conselho militar de Homs, o que aconteceria ao
Exército e aos comitês populares da shabiha, e às centenas de milhares de
alawitas armadas, se o governo de Bashar caísse, ele respondeu que eu estava
exagerando nos números. Previu o que chamou de “chacina”, mas sentia que uma
alternativa para Bashar acabaria por emergir de dentro do sistema e levaria a um
acordo. “Bashar é a figura central para ales. Sem Bashar, ficam sem espinha
dorsal e perdem a motivação”. Depois de uma transição difícil, pode nascer uma
nova Síria, “uma Síria livre, justa e democrática”. Um dos líderes da guerrilha
anti-Bashar em Duma, o principal bairro dos subúrbios de Damasco, disse-me que
muito se preocupa com combates entre sunitas e alawitas em vilas como
Aziziya e Tamana. “Não podemos dizer que nós temos direito de
viver aqui, e eles não” – disse ele. Mas “depois da revolução os alawitas
voltarão ao lugar natural deles. Quando já não tiverem qualquer autoridade”.
Evidentemente
não se sabe qual seria o tal “lugar natural”. Terão de deixar as cidades e
voltar para suas áreas rurais étnicas tradicionais? Uma nova geração de
especialistas em Síria ativos pelos jornais ocidentais já está discutindo a
possibilidade de criar-se um estado alawita à parte. Mas nada ouvi sobre isso
dos próprios alawitas. Há muito tempo a Síria é o principal projeto desses
alawitas; o modo pelo qual se envolveram foi deixar as vilas tradicionais e
mudar-se para uma versão de modernidade.
É
possível que terminem cercados em alguma espécie de enclave autônomo, como
resultado de uma guerra civil que venha a ser vencida pela oposição. Mas esse
não é desejo dos alawitas. Estão convencidos de que combatem hoje pelos velhos
ideais do Partido Ba’ath, do nacionalismo sírio e árabe.
De
qualquer modo, nenhum estado alawita seria jamais viável: o território
tradicional dos alawitas jamais ofereceu o mínimo necessário para que os
alawitas ali permanecessem; ali não há serviços nem empregos; e a comunidade
seria integralmente dependente de diferentes tipos de apoios externos. É
possível que a “revolução síria” acabe nisso. Mas esse jamais foi o objetivo de
ninguém.
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