Publicado
em 15 de setembro de 2012 por Bruno
Cava,
Enviado
pelo pessoal da Vila
Vudu
Devo
boa parte do conteúdo deste artigo às conversas com Hugo Albuquerque, Giuseppe
Cocco e Homero Santiago.
Bruno Cava |
No
Brasil, de uns tempos pra cá, pessoas de uma raça diferente começaram a se fazer
frequentes em certos espaços.
Começaram a frequentar espaços outrora inacessíveis:
aeroportos, universidades, restaurantes, shoppings, boates, pet shops. Começaram a fazer turismo, a
comer iogurte, beber vinho, fazer escova progressiva ou cirurgia plástica, a
comprar carro, computador, tablet,
tudo o que agora podem e têm direito.
Essa
raça não se comporta como os antigos frequentadores gostariam que se
comportasse. Essa raça rude que se agita do fundo da história não quer,
simplesmente, ser como seus antigos senhores. Um escândalo. Os senhores jamais
lhe perdoarão o fato de não reconhecer a eles, a velha e autointitulada “classe
média”, o lugar privilegiado que teriam conquistado com mérito e esforço
individual. Pouco importa aos novos bárbaros, no entanto, o que pensam deles.
Eles vieram para ficar e nada será como antes.
A
nova classe média virou um Dasein sociológico. Uma monstruosidade
teórica e prática.
As
tentativas mais recentes da velha sociologia alternam uma matemática primária
com palpitaria generalizada.
Por
um lado, sociólogos orgânicos quantificam e tabelam, para reforçar a numerologia
oficial, tão facilmente convertida em publicidade e campanha nas eleições.
Por
outro, tem sempre um “porteiro” que pensa assim, uma “empregada” que faz assado, os pobres genéricos que o
humanismo burguês se propõe a conhecer de perto, e de onde se elaboram as
ilações mais imbecis, decalcadas nos seus livrinhos de cátedra.
À
direita, a reedição do argumento das plebes ignaras. O povão se guia
essencialmente por estômago e sexo e, portanto, precisa de autoridade e moral.
Deve ser conduzido no caminho da ordem e do progresso. Ele mesmo não pensaria de
outra forma, se pensasse por si só. Platonismo de madame.
À
esquerda, o argumento de que agora é hora de qualificar a nova classe. É preciso
que a raça emergente se eduque para a política séria, que aprenda os velhos
truques e modos, que se conscientize de seu papel. Está muito crua, muito
propensa a ceder aos cantos da sereia. Uma pedagogia de esquerda, igualmente
elitista. Não é por acaso que o jargão que divide esquerda e direita tenha
surgido no âmbito das revoluções burguesas.
Por
que a velha classe média não se sente comprada, quando seus estudos são pagos
com dinheiro público, mas é a primeira a acusar os pobres de se venderem aos
governos, pelo primeiro miserê que
conquistaram?
Por
que bolsas de doutorado não são assistencialismo?
Consideram-se
racionalmente desinteressados e inspirados por altos ideais, mas se tornam
histéricos, vitimizam-se, escrevem colunas raivosas nos jornais, quando
ameaçados, em qualquer dimensão, nos privilégios de seu lugar intermediário.
Passaram
a história do Brasil pleiteando melhores salários e condições, e agora não
hesitam em tachar os pobres de vendidos, quando estes podem finalmente votar em
quem os contempla com renda e acesso.
Acusam
os pobres de não saber consumir, mas estão cobertos, da sola dos pés à ponta dos
cabelos, de marcas e produtos. É só vê-los desfilando nos aeroportos, o lugar
onde desde criança aprenderam a exibir os selos de sua casta.
Sua
parafernália de roupas, eletrônicos, cosméticos, tratamentos, sessões de análise
— nada disso seria consumismo. Consumista é sempre o outro, que não pode
controlar os apetites. É sempre o outro, o descerebrado que o império
capitalista submete com pão e circo, alienado, estupidificado,
mediocritizado.
Quanta
falta de generosidade, de crença nas pessoas, quanto preconceito disfarçado de
humanismo e esquerdismo!
O
lulismo não criou uma nova classe.
Essa
nova classe — essa classe selvagem sem nome, suas mil raças consideradas
“inferiores” que agora se afirmam — é que conferiu as bases materiais para que
algo como o evento Lula ou o lulismo — o que de mais democrático e
democratizante já aconteceu no Brasil — pudesse existir.
O
governo Lula é uma peça de uma engrenagem maior, um processo mais amplo e
profundo, político e antropológico, e cujo índice mais visível se situa na
franja dos anos 1980, no contexto da fundação do Partido dos Trabalhadores.
O
ressentimento coagulado como antipetismo perde de vista que o evento Lula, com
todas as limitações, contradições e paradoxos, foi exatamente o que não
traiu a configuração de forças nas bases originais do PT. Traíram a
composição de forças que mudou o Brasil nos últimos tempos aqueles que acreditam
que a nova classe deva se filiar à moral deles mesmos, seguir suas referências,
ouvir a sua ciência credenciada. Como se os pobres tivessem alguma dívida com a
Esquerda, o Socialismo ou, suprema piada, o Planeta!
Não
adianta tentar convencer com pedagogias. Muito menos tentar pilotar o monstro.
Se o governo Lula pôde sobreviver aos piores ataques moralistas, e das piores
crises do capitalismo de todos os tempos, foi porque governou junto com o
monstro.
A
reaparição do mensalão e a crítica moralista sobre a “classe C” tentam a todo
custo desacreditar essa memória de lutas e conquistas.
Se
tem algo a aprender hoje com o lulismo, é construir junto com o
monstro, sem julgá-lo, sem tentar enquadrá-lo a velhos esquemas, construir por
dentro, de seu estômago, de seu sexo, de sua rudeza pagã.
O
governo Lula aprendeu com o monstro. Agasalhou-o, amou e deixou-se amar por
ele.
(Comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirConquanto me considerem datado e superado pelos neostudo, gostei do texto do Bruno, que sempre se distinguiu, em estilo e reflexão, entre coevos e ativistas do ocidentalismo à outrance, encurvadamente desvanguardizante.
Abraços do
ArnaC