25/9/2012, Andrew J. Bacevich,
American Empire Project
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Andrew J. Bacevich |
Primeiro,
foi o bru-ha-ha em torno da “Mesquita no Marco Zero”. Depois, o pastor Terry
Jones de Gainesville, Florida, nas manchetes, promovendo o “Dia Internacional de
Queimar Alcorão”. Mais recentemente, um norte-americano que postou vídeo
antimuçulmano escandaloso na internet, com o consequente torvelinho.
Durante
todo esse tempo, a posição oficial dos EUA permaneceu imutável: o governo dos
EUA condena a islamofobia. Os norte-americanos respeitam o Islã como religião de
paz. Incidentes que sugiram coisa diferente são serviço de alguma minoria
insignificante – doidos, semeadores de ódios e caçadores de publicidade. Entre
os muçulmanos, de Benghazi a Islamabad, a “explicação” não pegou.
E
não sem razão: embora seja confortador desqualificar as irrupções de
anti-islamismo nos EUA, como serviço de uns poucos fanáticos, o quadro, de fato,
é muito mais complicado. E as complicações, por sua vez, ajudam a explicar por
que a religião, antes considerada ativo da política externa dos EUA,
converteu-se, nos últimos anos, em dívida exigível de curto prazo.
Comecemos
por rápida aula de história. Do final dos anos 1940s ao final dos 1980s, quando
o comunismo oferecia argumento guarda-chuva ideológico para o projeto do
globalismo norte-americano, a religião foi tema destacado da política externa
dos EUA. A antipatia comunista contra a religião ajudou a conferir notável
durabilidade ao consenso da política exterior da Guerra Fria. Bastava declarar
que comunistas eram gente sem deus, para excluí-los da ordem humana. Para muitos
norte-americanos, a Guerra Fria ganhou toda a clareza moral que chegou a ter,
graças à convicção de que havia uma disputa em que se confrontavam fiéis
tementes a Deus e infiéis negadores de Deus. Dado que os EUA estavam do lado de
Deus, passou a ser verdade axiomática que Deus retribuiria a deferência.
De
tempos em tempos, ao longo das décadas durante as quais o anticomunismo foi a
alma mater que animou o espírito das políticas norte-americanas,
estrategistas judeu-cristãos em Washington (eles mesmos nem sempre crentes),
obraram sobre a noção teologicamente correta de que cristãos, judeus e
muçulmanos todos cultuavam um mesmo Deus, não raras vezes alistando muçulmanos,
às vezes de crenças fundamentalistas, para lutarem diretamente em eventuais
escaramuças contra infiéis locais. Exemplo notável disso foi a Guerra
Soviético-Afegã de 1979-1989.
Para
causar dano máximo aos ocupantes soviéticos, os EUA apostaram seu peso no apoio
à resistência afegã, elegantemente apresentada em Washington como “combatentes
da liberdade”, e canalizaram sua ajuda (com a intermediação de sauditas e
paquistaneses) para o grupo mais religiosamente extremista dos que por ali
havia. Quando esse esforço resultou em massiva retirada dos soviéticos, os EUA
celebraram o apoio que haviam dado aos mujahedin afegãos como prova do
gênio estratégico dos EUA. Foi praticamente como se Deus assim o tivesse
decidido e sentenciado.
Mas,
poucos anos depois da retirada soviética, os combatentes da liberdade viraram os
ferozes Talibã antiocidente, que deram santuário à al-Qaeda enquanto planejava –
com pleno sucesso – atacar os EUA. Evidentemente, alguém enfiara uma cunha na
engrenagem dos planos de Deus.
Com
o lançamento da Guerra Global ao Terrorismo, o islamismo substituiu o comunismo
como corpo de crenças que, se não fossem contidas, ameaçavam espalhar-se pelo
mundo, com terríveis consequências para a liberdade humana. Os mesmos que
Washington armara como “combatentes da liberdade” tornaram-se então os mais
perigosos inimigos dos EUA. Ou, pelo menos, nisso acreditavam membros do
establishment da segurança nacional, ou diziam que acreditavam. E, assim,
sumiu de pauta qualquer discussão sobre se o globalismo militarizado seria ou
não abordagem adequada para promover globalmente os valores liberais ou, mesmo,
só os interesses das grandes empresas dos EUA.
Verdade
que, como palavra-de-ordem, fazer guerra ao islamismo sempre foi empreitada
difícil, desde o início. Com políticos obrando para impedir que o islamismo se
confundisse com o Islã na mente popular, muitos norte-americanos – por sincero
medo, ou mal-intencionadamente – viram aí uma diferença sem diferença alguma.
Muitos esforços fez o governo Bush nesse terreno, tentando meter a ameaça
pós-11/9 na rubrica “terrorismo”. Mas não deu certo, porque “terrorismo”, como
explicação genérica, nada explicava sobre os motivos dos ataques. Por mais que o
governo Bush tenha feito e refeito, o único motivo que se via, para explicar os
ataques, “tinha a ver” com religião.
Onde
exatamente situar Deus, na política dos EUA no pós-11/9 foi verdadeiro desafio
para os políticos, especialmente para George W. Bush, que acreditava, com
profunda e sincera fé, que Deus o escolhera para defender os EUA naquele momento
de perigo máximo. Não foi fácil porque, diferentes dos comunistas, em vez de
negadores da existência de Deus, os islamistas eram afirmadores, cada vez mais
furiosos, de Sua existência. De fato, nas ácidas denúncias contra os EUA, e na
prática de atos de violência antiamericana, eles audaciosamente se apresentavam
como instrumentos da realização da vontade de Deus, na guerra contra o Grande
Mal, o Grande Satan-EUA.
Guerra
em nome de
Jesus
O
debate sobre quem realmente representa a vontade de Deus é um dos debates que
dois governos, de George W. Bush e de Barack Obama, atenta e dedicadamente
trataram de evitar. Os EUA não estão em guerra contra o Islã per se,
insistem os funcionários do governo. Mas, para os muçulmanos do outro lado do
mundo, de pouco servem as repetidas negativas de Washington: a suspeita
persiste, e não sem razão.
William Boykin |
Veja-se,
por exemplo, o caso do tenente-general William G. (“Jerry”) Boykin. Ainda na
ativa, em 2002, esse oficial altamente condecorado do Exército falou, fardado,
num congresso no qual se reuniam cerca de 30 igrejas e organizações religiosas,
ocasião em que respondeu diretamente à famosa pergunta do presidente Bush: “Por
que nos odeiam?” E o general tinha opinião bem diferente da opinião de seu
comandante-em-chefe: “Eles nos odeiam porque somos nação cristã. Somos odiados
porque somos nação de crentes fiéis” – discursou ele.
Noutra
ocasião, o general recordou encontro com um senhor-da-guerra da Somália, que se
jactava de ser protegido de Alá. O senhor-da-guerra estava redondamente
enganado, declarou Boykin, e explicou: “Eu sabia que meu Deus era maior que o
dele. Eu sabia que meu Deus é Deus de verdade. E o dele é só um ídolo”. Sendo
nação cristã, Boykin esclareceu, os EUA só conseguiriam esmagar o inimigo se
“nos erguermos contra eles em nome de Jesus ”.
Quando
as frases de Boykin chegaram às manchetes, choveram declarações do alto – da
Casa Branca, do Departamento de Estado e do Pentágono – todos aflitos para se
desassociar dos discursos do general. Mas imediatamente começaram a aparecer
sinais de que, embora com excessiva clareza, Boykin, sim, manifestava ideias que
prosperavam na cabeça de não poucos de seus concidadãos.
Um
desses sinais surgiu imediatamente: apesar do furor espalhafatoso, o general não
perdeu seu importante emprego no Pentágono como vice-subsecretário de Defesa
para questões de inteligência; sinal de que o governo Bush não vira, nas
declarações do general, crime muito grave. Talvez Boykin tenha falado fora de
hora; mas ofender alguém, não, não ofendeu. (Diferente seria, se um funcionário
de alto escalão do governo dos EUA e fardado, dissesse, falando do
primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, que “meu Deus é Deus de verdade;
o dele é só um ídolo”).
Um
segundo sinal apareceu imediatamente depois que Boykin aposentou-se do serviço
ativo. Em 2012, o influente Family Research Council (FRC) em Washington contratou o general para o posto de
vice-presidente executivo. Dedicado a promover “a fé, a família e a liberdade”,
o FRC apresenta-se como órgão cristão enfático. Todos os peso-pesados do Partido
Republicano são presenças frequentes nos eventos do FRC. A organização é parte
do núcleo mais duro dos conservadores, tão constitutiva dele como, digamos, a American Civil Liberties Union é
constitutiva da esquerda-esquerda.
Não
há dúvidas de que é digno de registro que o FRC contrate, para a função de chefe
de operações, um general que pensa e diz o que Boykin pensa e diz sobre o Islã.
No mínimo, os que o contrataram nada viram de problemático, no modo como o
general vê o mundo. Nada viram de politicamente indesejável, ou arriscado,
em
associarem-se ao Boykinismo.
Boykin é gente deles. O mais provável é que, ao contratar
Boykin, o FRC tenha querido enviar uma mensagem: nas questões nas quais o novo
diretor é especialista – questões de guerra, sobretudo – o mais politicamente
incorreto, declarado, é virtude.
Depois
que o FRC adotou o general Boykin, uma coisa é certa: já não se pode – e será
erro grave fazê-lo – reduzir a islamofobia nos EUA a qualquer simples minoria
insignificante.
Joseph McCarthy |
Como
os apoiadores do senador Joseph McCarthy, que, nos primeiros tempos da Guerra
Fria viam comunistas debaixo de cada mesa do Departamento de Estado, essa gente
já se atreve a expressar abertamente suas ideias porque sabem que outros, em
maior número, partilham as mesmas ideias. Dito de outro modo: o que, nos anos
1950s, os norte-americanos conhecemos como McCarthyismo, já reapareceu, sob a forma
de Boykinismo.
Há
divergência entre os historiadores sobre se o McCarthyismo foi uma perversão do
anticomunismo ou sua mais perfeita tradução. Do mesmo modo, hoje, haverá quem
discuta se o Boykinismo é apenas
resposta ardente, ou completamente ensandecida, ao que há quem veja como “ameaça
islamista”. Mas uma coisa é indiscutível: assim como o senador de Wisconsin em
seus dias de glória incorporou um traço não trivial da política norte-americana,
assim também acontece com o ex-agente-de-operações especiais e general “ordenado
pastor com vocação para pregar o Evangelho de Jesus Cristo”.
Chama
a atenção que, como líder supremo do Boykinismo, as ideias do ex-general são
espantosamente semelhantes às do falecido senador. Como McCarthy, Boykin
acredita que, se o inimigo externo é perigoso, muito mais perigoso é o inimigo
interno: “Estudei a guerrilha marxista” – disse ele num vídeo de 2010. – “Foi
parte do meu treinamento. E sei que tudo que é feito nos governos marxistas está
sendo feito hoje nos EUA”. Comparando explicitamente os EUA governados por
Barack Obama à URSS de Stálin, à China de Mao Tse Tung e à Cuba de Fidel, Boykin
já disse que, sob o disfarce de reforma da saúde, o governo Obama está
organizando uma “força militar que controlará toda a população dos EUA”. Será
força maior que o exército dos EUA e funcionará como os Camisas Marrons de
Hitler. E tudo aí, sob nossos narizes!
Boykinismo:
o novo McCarthyismo
Quantos
norte-americanos endossaram o delírio conspiratório que era o modo como McCarthy
via a política nacional e mundial? Difícil saber com certeza, mas número
suficiente para reelegê-lo ao Senado em Wisconsin, em 1952, com maioria
confortável de 54% contra 46% de votos em seu concorrente. O que
bastou para insuflar medo mortal no coração de muitos políticos, que estremeciam
à simples ideia de serem acusados por McCarthy de serem “moles contra o
comunismo”.
Quantos
norte-americanos endossam as ideias igualmente incendiárias de Boykin? Número
suficiente para persuadir os fundadores e financiadores do FRC a contratá-lo,
confiantes de que a contratação promoveria, sem em nada denegrir, a marca do
grupo. Com certeza, Boykin de modo algum compromete a capacidade do FRC de
funcionar como usina de projetos da direita doméstica nos EUA. O recente evento
“Cúpula dos valores do eleitor” promovido pelo FRC reuniu luminares, como o
candidato a vice-presidente Paul Ryan, o ex-senador Republicano e candidato à
presidência Rick Santorum, Eric Cantor, líder da maioria na Câmara de Deputados,
e a deputada Michele Bachmann – além do próprio Jerry Boykin, que discursou
sobre “Israel, Irã e o Futuro da Civilização Ocidental”. (No início de agosto,
Mitt Romney manteve encontros privados com um grupo de “destacadas lideranças
conservadoras”, entre os quais, Boykin).
A
presença no evento do FRC significa que Ryan, Santorum, Cantor e Bachmann
subscrevem os fundamentos do Boykinismo? Tanto quanto os que
exploraram o momento do auge do McCarthyismo para extrair vantagens
políticas – Richard Nixon, por exemplo – mesmo sem concordar com todos os
delírios de McCarthy. Mas a presença de lideranças Republicanas em evento do
qual Boykin é um dos conferencistas sugere que nada veem de especialmente
objetável ou politicamente daninho, no que ele diz e prega.
As
comparações entre o McCarthyismo e o
Boykinismo param por aí. O Senador
McCarthy fez seu inferno sobretudo no plano doméstico, pregando a caça às
bruxas, destruindo carreiras e atropelando direitos civis, dando à política dos
EUA ares ainda mais circenses que o habitual. Em termos de relações
internacionais, o McCarthyismo só fez
reforçar um consenso anticomunista que já havia no mundo. As loucuras de
McCarthy não criaram inimigos em outros países, todos contra os EUA. O
McCarthyismo simplesmente reafirmou que o inimigo eram os comunistas, e tornou
ainda mais dificultosa a tarefa de exercer o pensamento crítico no campo
político.
O
Boykinismo, não. O Boykinismo tem impacto em todo o mundo.
Diferente do McCarthyismo, não
inspira medo algum a candidato algum, a cargo algum, aqui mesmo nos EUA. Atrair
ou o apoio ou a ira do general Boykin não definirá o rumo de nenhuma eleição.
Mas as várias manifestações de Boykinismo ajudam a alimentar o
sentimento antiamericano no mundo islâmico. Reforçam a crença, entre os
muçulmanos, de que a Guerra Global ao Terror é, isso sim, guerra contra eles.
O
Boykinismo confirma o que muitos
muçulmanos já tendem a crer: que os valores muçulmanos e os valores
norte-americanos seriam irreconciliáveis. Presidentes e secretários de Estado
dos EUA dedicam-se a repetir que o Islã é umas das maiores tradições religiosas
e patrimônio imaterial da humanidade, e relembram as muitas ações militares que
os americanos empreenderam para defender (pelo menos à primeira vista), povos
muçulmanos. É mijar contra o vento, se se considera o que os EUA fazem hoje a
iraquianos, paquistaneses, afegãos e outros povos do Oriente Médio Expandido.
Se
nem nos EUA há número significativo de americanos que engulam o argumento
ideológico inventado para justificar a intervenção dos EUA no mundo islâmico –
invadir e ocupar e detonar e destruir, sim, mas respeitando a concepção de
liberdade (inclusive a liberdade religiosa) dos muçulmanos – ainda muito menos
os muçulmanos a engolem. Nesse sentido, os apoiadores do Boykinismo que rejeitam (até) aquela
tentativa de argumento, estimulam os muçulmanos a odiar cada vez mais os
norte-americanos. E assim, cada vez mais, reafirma-se a indispensabilidade da
violência de forças armadas, forças especiais, forças clandestinas e outras,
como único instrumento da política dos EUA no mundo islâmico. E continuam a
reproduzir-se os erros e vícios que criaram e definiram a era
pós-11/9.
Nota
dos tradutores
*Do
Urban Dictionary: Boykinism.
Fanatismo religioso imbecil, que se expressa mediante ignorância da história
mundial, de teologia e da história da Cristandade. É uma forma de terrorismo
teológico do mais primitivo. Ocorre boykinismo quando um adulto
pensa como criança em questões de religião. É uma doutrina da imaturidade
religiosa e da incompetência. É palavra derivada do nome do tenente-general
William G. (“Jerry”) Boykin (detalhes no texto). [verbete assinado por Kasala
Djibwanda Musema Kweli].
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