10/7/2005, La Nación, Buenos Aires
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ernesto Laclau |
Entrevista concedida por
Ernesto Laclau quando do lançamento de seu livro “La razón populista”, Fondo de Cultura Económica, Buenos
Aires, 2005, 312 p.
Ernesto Laclau,
reconhecido especialista em Filosofia Política, fala de seu livro
“La Razón
Populista ”, em que lança um toque provocativo ao resgatar da
marginalidade o Populismo como fenômeno chave da história da América Latina.
“O populismo possibilita
estruturar a vida política mediante discursos que articulam elementos
linguísticos e não linguísticos. Esta operação permitirá construir uma
neo-objetividade em relação ao conceito estudado, livre, dessa vez, de
condenações ‘éticas’.”
Habitualmente,
quando se fala de populismo, faz-se referência a um tipo de governo
assistencialista, demagógico, de inspiração nacional, que gasta mais do que tem
e que ignora as instituições e a lei, amparado na força que recebe dessa
entidade supra-individual chamada “povo”.
Ernesto
Laclau, doutor em História e dedicado à filosofia política, propõe, em seu
livro, La razón populista, uma provocadora mudança de rumo, no que se
pensa sobre o fenômeno do populismo, ao propor “resgatar o populismo do lugar
marginal em que vive hoje, nas ciências sociais”, para pensá-lo, não como uma
modalidade degradada da democracia, mas como tipo de governo que permite ampliar
as bases democráticas da sociedade.
“O
populismo – diz Laclau – não tem conteúdo específico, é um modo de pensar as
identidades sociais, um modo de articular demandas dispersas, uma maneira de
construir o político”.
Doutorado
em Oxford, onde chegou apadrinhado por Eric Hobsbawn há quase 30 anos, Laclau
está [o artigo é de 2005] na Argentina para participar do Seminário Psicoanálisis y Ciencias Sociales,
organizado por Flacso. Em entrevista a La
Nación relativizou o suposto componente antidemocrático do
governo de Hugo Chávez, manifestou seu otimismo quanto à situação da Argentina e
explicou a tese central de seu livro:
Quando
as massas populares que sempre viveram excluídas incorporam-se à arena política,
surgem modalidades de liderança não ortodoxas se se considera o ponto de vista
democrático liberal; uma dessas modalidades é o populismo. Mas o populismo,
longe de ser um obstáculo, é garantia de democracia, ao impedir que a democracia
converta-se em mera administração pública.
La
Nación:
Por
que, na sua opinião, generalizou-se o que o senhor define como uma concepção
pejorativa do populismo?
Laclau: A
crítica clássica contra o populismo está muito ligada a uma concepção
tecnocrática do poder, segundo a qual só especialistas devem ser encarregados de
decidir sobre as fórmulas para organizar a vida da comunidade.
No
caso da Venezuela, por exemplo. Há na Venezuela massas políticas virgens, que
nunca antes participaram no sistema político, senão mediante variações da
extorsão de caráter clientelístico. Então, no momento em que essas massas
lançam-se na arena histórica, elas o fazem mediante a identificação com
determinado líder. E essa liderança é democrática, porque, sem essa modalidade
de identificação com o líder, as massas não teriam como começar a participar do
sistema político, que permaneceria controlado por elites que não representam nem
manifestam, mas substituem, a vontade popular.
La
Nación: Quando
o senhor fala de maior democratização, refere-se à inclusão das massas populares
na política. Mas em geral, os que protestam contra atitudes antidemocráticas de
Chávez, e às vezes também de Kirchner, falam da dificuldade que esses líderes
demonstram para tolerar o pluralismo, do modo como manipulam o Congresso, das
relações tumultuadas com a oposição...
Laclau: Em
primeiro lugar, liberalismo e democracia não são conceitos que coincidam ou
tendam naturalmente a coincidir. Foi necessário todo o longo e complexo processo
das revoluções e levantes do século 19, para que se obtivesse algum equilíbrio
entre algumas formas de governo, que passaram a ser chamadas liberais
democráticas, como formas mais ou menos estáveis.
Mas
na história latino-americana nunca se alcançou esse tipo de integração. Tínhamos
um liberalismo oligárquico que respeitava as formalidades liberais, mas tinha
base clientelista, o que impedia qualquer expressão das aspirações democráticas
das massas. Por isso, quando as aspirações democráticas das massas começaram a
aparecer, nos anos 30, 40, 50, elas muitas vezes manifestaram-se mediante formas
políticas que foram absolutamente antiliberais – como o varguismo e o Estado
Novo no Brasil; como o peronismo na Argentina –, regimes formalmente
antiliberais e que, contudo, foram profundamente democráticos, porque deram vez
e voz a muitas das aspirações das massas.
La
Nación: Em que
medida as condições hoje são diferentes?
Laclau: Nos
últimos 20 anos, pela primeira vez na história latinoamericana, as aspirações
nacionais e populares das massas conseguem coincidir com a afirmação dos
direitos humanos, a divisão de poderes, o pluralismo político.
La
Nación: E como
se combinam essas duas perspectivas?
Laclau: As
duas têm de estar presentes, se queremos ter algo que se possa chamar de
“sociedade democrática”. Contra a concepção tecnocrática do poder, temos a noção
da política como antagonismo, quer dizer, a emergência de demandas que a
sociedade faz a determinado sistema. Essas demandas sociais constituem um povo e
o povo constitui-se, sempre, na oposição ao poder. Na Argentina, por exemplo,
tivemos, depois da crise de 2001, uma enorme expansão horizontal dos protestos
sociais, e a baixa capacidade do sistema para absorver as demandas populares num
sistema institucional vertical estável. De algum modo, me parece, o atual
governo [de Hector Kichner] está tendo de por juntas as duas dimensões, a
vertical e a horizontal. Assim, está criando um sistema ampliado, de caráter
mais democrático.
La
Nación: Em que
consiste essa ampliação democrática?
Laclau: No
campo social, há grupos corporativos muito entrincheirados, grupos econômicos,
empresários, também grupos sindicais, muito fortes. Mas há setores da população
cujo grau de integração corporativa é muito menos consolidado, setores
marginais. Quando isso acontece, é preciso que os líderes políticos não tenham a
função, exclusivamente, de manifestar interesses já constituídos. Devem também
ajudar a consolidar esses outros interesses que permaneçam marginalizados.
La
Nación: Como os
interesses representados no movimento piquetero?
Laclau: Sim,
por exemplo. No sistema político argentino há dois tipos de forças que são
profundamente negativas. Uma é a que prega que é preciso reprimir o movimento
dos piqueteros. Reprimir os piqueteros só conseguirá sufocar as
manifestações, sem resolver os problemas que geram manifestações. A outra força
negativa é o piqueterismo duro, que também é uma modalidade de não
política, porque não propõe nenhuma forma de levar à ação ao marco institucional
existente. Sempre haverá alguma tensão entre o protesto social e sua integração
nas instituições. Mas essa tensão é, precisamente, o que chamamos “democracia”.
La
Nación: O
senhor está chegando num momento em que o peronismo está em fase extremamente
dura. O senhor acha que isso pode afetar a governabilidade?
Laclau:
Não. A
Argentina nos últimos anos mostrou-se excepcionalmente governável. O país tem
alta governabilidade. Superamos uma crise econômica de alta magnitude, adotamos
posição crítica ante o FMI, o que produziu vários efeitos positivos, temos um
sistema econômico que continua, em boa medida, sob controle. Por outro lado, há
diferentes alternativas políticas que se podem considerar, que se apresentarão
mediante a redefinição das formações políticas existentes, como, hoje, o núcleo
do justicialismo.
La
Nación: São
alternativas políticas verdadeiras? Não são só disputas por interesses pessoais
e por espaços de poder?
Laclau: Talvez
sejam, mas mediante esses interesses vão-se manifestando outras tendências mais
gerais. A política, em sua minúcia cotidiana, sempre tem essas características
de que você fala. Mas as disputas que se travam hoje na França, dentro do
movimento gaullista, ou dentro do
Partido Socialista, não são muito diferentes do que se vê dentro do
justicialismo. E nem por isso alguém fala de crise de governabilidade na
França. Não acho, no que está acontecendo hoje, que a luta de interesses possa
degenerar, com formação de camarilhas de tipo clientelístico e totalmente
apolíticas.
La
Nación:
Condoleezza Rice referiu-se ao risco do populismo na América Latina e
relacionou-o a um novo “eixo do mal”. Como o senhor vê o mapa político da
América Latina?
Laclau: Bem...
Em primeiro lugar, o mapa que os EUA fazem da América Latina tem a ver com o
mapa mundi global que a política de Bush tenta desenhar. Bush quer criar uma
fronteira “ético-política” que divida a humanidade entre “terroristas” e “não
terroristas”, quando, por sua vez, o terrorismo é definido de tal modo que nunca
se sabe com clareza quem são os “terroristas”. Por otro lado, no plano
internacional, a tendência de toda essa orientação de direita é criar um mundo
unipolar, e isso é o pior que pode acontecer, se se pensa nas possibilidades
democráticas de países como os nossos. Se a Comunidad Europea transformar-se em
interlocutor político cada vez mais ativo [não se verificou, nos anos recentes: a
Comunidade Europeia é hoje “os poodles de Washington” (NTs)], se a China
começar a participar também no quadro das opções internacionais [isso, sim, verificou-se (NTs)], nesse
caso realidades como a do MERCOSUL poderão começar a jogar estrategicamente.
Essa será a grande aposta dos próximos anos, em política internacional.
La
Nación: O
senhor é otimista, quanto à situação argentina hoje?
Laclau: Sou
bastante otimista, sim.
La
Nación: Em que baseia esse otimismo? Em que pontos
o senhor mantém certa reserva?
Laclau:
Se a
situação econômica deteriorar-se muito, pode afetar o precário equilíbrio
político que foi criado até agora, e que permitiu certa democratização das lutas
sociais. Também pode acontecer que, no final, as tendências mais tradicionais da
partidocracia, o duhaldismo e outras, consigam bloquear a tentativa de
criar uma abertura democrática. Mas sou otimista, porque acredito que, do ponto
de vista de suas expectativas democráticas, a Argentina está vivendo seu melhor
momento dos últimos 40 ou 50 anos.
La
Nación: Mesmo assim... Desde a crise de 2001, ante
a perplexidade de não termos sido aquele país que prometíamos ser no Centenário,
muitos concordam que, se houve época dourada na história argentina, foi quando
éramos “o celeiro do mundo”, em oposição à qual o presente aparece como
decadência.
Laclau: Mas
esse tipo de reivindicação não considera o funcionamento do sistema democrático.
Antes de 1830,
a política argentina funcionava de modo muito pouco
democrático. Havia, para começar, o nível dos punteros, que manipulavam
votos em troca de favores. Acima desse nível, ficavam os caudillos; e,
acima dos caudilhos, os deputados e senadores que negociavam com os caudilhos.
Com o desenvolvimento econômico, as demandas tendiam a ser institucionalmente
absorvidas dentro desse sistema clientelístico. Mas quando a crise começa a
apertar, a partir dos anos 30, as demandas deixam de poder ser absorvidas nos
canais tradicionais. É quando começa a criar-se uma situação de populismo – vale
dizer: uma acumulação de demandas insatisfeitas e um sistema que não atende
àquelas demandas. Até que aparece alguém que começa a arregimentar, por fora do
sistema institucional, aquelas massas virgens que viviam expostas às
intempéries. Aí começa a acontecer um novo tipo de mobilização social, que
culminou na emergência do peronismo. E a partir desse ponto já ninguém precisava
do caudilho para conseguir um leito no hospital, porque havia o hospital do
sindicato.
La
Nación: Os punteros, compradores de votos,
não desapareceram.
Laclau: É. Se
se vai ao Congresso, vê-se que continuam lá. Mas já não mandam na política
nacional, como mandavam.
La
Nación: Também ainda há quem compre e venda
favores...
Laclau: Sim,
claro. O duhaldismo é exatamente
isso. Mas trata-se agora de clientelismo de tipo mais burocrático, que opera
dentro das instituições.
La
Nación: Seu livro pode ser lido como o elogio do
populismo e, nessa linha, como uma defesa do peronismo.
Laclau:
Acredito
que o peronismo representou enorme avanço na participação das massas no sistema
político. Talvez não tenha sido o melhor modo de participar. Poderia ter havido
modalidades mais democráticas de participação, mas o peronismo foi a via de
participação que as massas encontraram naquele momento, a única historicamente
possível. Entendo que qualquer elaboração que se tente, para construir políticas
mais progressistas, tem de partir desse ponto histórico, porque a via histórica
que o 45 abriu para a participação popular democrática é dado primordial e
absolutamente positivo da história argentina. O regime oligárquico que havia
antes, baseado na fraude, em momento algum foi melhor que o peronismo.
(Comentário de um atento leitor, que preferiu não se identificar, enviado por e-mail pelo pessoal da Vila Vudu e postado por Castor)
ResponderExcluirPermitam-me dar uma pitada nesse cachimbo.
Após reler o livro do Ruy Mauro Marini (esta 8ª edição, reimpressa por uma editora de Londres – Milton Keynes UK, 08 july 2010, está fantástica, inclusive por trazer algumas marcações que penso sejam do próprio punho do Marini) Subdessarrollo y Revolución, Siglo XXI, e, ao mesmo tempo, ler o livro do Ernesto Laclau (nosso ‘hermano’ argentino) – Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism, London: NLB/1977 – posso afirmar, com toda segurança, que este último, o Ernesto Lacleau, foi o que melhor entendeu (e explicou) o populismo tanto de Perón como de Vargas e outros.
Mais, Ernesto Laclau, firmemente baseado na teoria de Marx (e na dialética, evidentemente) não só nos faz ver, claramente, a polêmica da Teoria da Dependência (FHC / Ruy Mauro Marini / Theotônio dos Santos / outros), como também aponta para a elucidação completa da necessidade / uso / trajetória do populismo em geral (Perón / Vargas / Mao / Mussolini / Hitler / ...).
Enfim, Laclau mostra que a diferença, por exemplo, entre o populismo de Perón / Vargas e o populismo de Hitler / Mussolini, está na forma de atuação em relação ao Estado, ou seja, Marx é bem claro no que diz respeito ao definhamento do Estado (ou Terceira Pessoa), o primeiro objetivava algo parecido com aquilo que os países desenvolvidos conseguiram consolidar, ou seja, o Estado do Bem Estar Social (Welfare State), o segundo objetivou (e consolidou) aquilo que os militares latinos “copiaram”.
Dou essa “pitada” porque a editora Bloonsbury da Inglaterra lançou, no ano passado, o livro What if Latin America ruled the World? How the South will take the north into the 22nd century / Oscar Guardiola-Rivera.
Neste livro, após mostrar a “ditadura do TINA [there is no alternative]” comenta que “... Could this be what lies behind the fact that Latin American nations [é claro que, dentre estas, o Brasil de Lula / Dilma se sobressai] tend to appear more often than others at the top of lists comprising the happiest countries on earth?”.
Tá aí, vale conferir!
Abraços.