22/8/2012, Nicolás González Varela, Mosca Cojonera
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O sonho de Spinoza |
“Estes
negros – dizem os holandeses – são ferozes, pérfidos, infiéis aos tratados e
irreconciliáveis”
(Barão de
Bessner, Memória sobre os negros
fugitivos do Suriname, 1777)
“[trata-se de fazer ver] a eficácia específica e
local de uma alienação de braços longos” (Roberto SCHWARZ, Ao Vencedor as Batatas. Forma literária
e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo (Brasil), Duas
Cidades, 1981) [A]
“Spinoza, o
primeiro judeu liberal”
(Carl
Schmitt, O Leviatã na teoria do Estado de
Thomas Hobbes, 1934)
“As
contradições de um autor são significativas porque contêm problemas que o autor
com certeza não resolve, mas que, ao contradizer-se, revela”
(Karl Marx,
Teorias da mais-valia, 1861-1863)
Nicolás Alberto González Varela |
Spinoza, o “homem embriagado de
Deus”, o “marrano [B]
da Razão”, o “judeu subversivo”, o homem que o filósofo cortesão Leibniz
descreveu como “homem de pele olivácea, com algo de espanhol no semblante”, foi
sem dúvidas pensador radical para sua época, ligado aos rios, canais e ao
oceano. Sua reflexão curta, mas profunda está indelevelmente marcada pelo
surgimento do novo imperialismo, da emigração, da perseguição, da
precariedade, das travessias incertas, do risco mercantil da burguesia
desafiante e do mais moderno cosmopolitismo [1]. Impressiona sua dimensão total, ao
melhor estilo de homem do Renascimento: metafísico e moralista, pensador
religioso e filósofo político, exegeta crítico da Bíblia, crítico social,
talentoso polidor de lentes, comerciante multinacional, físico e cosmólogo,
herege até o último de seus dias.
Poder-se-ia
dizer que fosse espanhol, já que a família Spinoza, como o nome indica, vinha da
cidade castelhana de Espinosa de los Monteros, província de Burgos, no limite
cantábrico, e porque era costume, entre os judeus sefaradis portugueses falar
português, mas escrever em espanhol; hispano-português, porque seus pais foram
emigrantes forçados, de formação católica não judia, os Anusim, ou
“marranos” (os antepassados judeus de Spinoza viviam já na Espanha ao tempo de
Cartago e Roma); era judeu, porque foi recebido na comunidade de Abraão, recebeu
ensinamentos tradicionais talmúdicos e contribuiu economicamente para sua
sinagoga; era português, pois essa foi durante toda a vida sua língua primeira,
materna (sempre preferiu os poetas ibéricos, tanto que assinava, com
naturalidade com um “D’Espiñoza”); era holandês, porque nasceu em Amsterdã, num bairro que
havia entre o rio Amstel e o porto, Vlooienburg (hoje, Waterlooplein), em casa
alugada, espaçosa; e porque morreu em Haia; porque estava ligado a Rembrandt
pela mesma cultura; mas, por destino, Spinoza continuará a ser outsider,
intempestivo, homem póstumo, nunca atual.
Sua
situação é excepcional e gerará uma filosofia impossível de reduzir a uma
religião, impossível de cooptar pela peste nacionalista, mas ao mesmo tempo bem
ancorada nas relações materiais de seu tempo e atenta à tradição política. Mas,
apesar de seus esforços, a ideologia holandesa da burguesia viverá, para seu
pesar, enroscada nas entrelinhas, até nos seus sonhos.
Foram
vários os motivos da emigração massiva de judeus espanhóis e portugueses, e nem
sempre foram motivos exclusivamente religiosos: o anacrônico império espanhol
(que, para Marx, era uma forma tardia de “despotismo asiático”) já estava
economicamente decadente desde o nascimento, com relações de produção baseadas
na conquista, privilégio fiscal e monopólio real, quando a Holanda já exibia uma
nova forma de imperialismo militar & comercial centrado no espírito do
capitalismo, graças à mediação ideológica do protestantismo (calvinismo). A
Holanda foi o primeiro país em toda a Europa a fazer, com
êxito, uma revolução burguesa ao emancipar-se do despotismo espanhol. O
calvinismo, com toda sua filosofia política liberal, é aqui criador de uma nova
forma de estado.
A
comunidade portuguesa em Amsterdã e em Rotterdã, unida pelo idioma e pelas
plagas natais, considerava-se ela própria nação exilada, constituída de uma
elite comerciante e industrial, para a qual a religião não era realidade: era
problema. Aqui não dominavam, entre os Sefardim, como no caso dos judeus do
leste (Asquenazes), os dogmas absolutos, a intolerância étnica e a Cabala, mas a
grande tradição humanista do judaísmo ibérico: Crescas, Gebirol, Halevy, Hebreo,
Herrera, Ezra e o grande Maimônides.
A
nova pátria não foi fácil para a comunidade: periodicamente, os setores mais
conservadores da alta sociedade holandesa, os Predikanten, pediam a
expulsão dos “mercadores portugueses” [2]. Sobretudo e em primeiro lugar,
seria erro grave supor que, antes do final do século 18, as ideias modernas
acerca da igualdade entre as raças já tivessem lançado raízes nos Países Baixos.
A
tolerância, muito afamada nos Países Baixos, não se baseia nos princípios
modernos, mas em considerações crisológicas e práticas, para que uma população
que era (e continua a ser) profundamente dividida sobre assuntos religiosos
encontrasse meios e modos para viver lado a lado e conviver. As minorias
religiosas católicas e judias foram discriminadas e excluídas dos cargos
públicos.
O
próprio Spinoza viu-se forçado a publicar como obra anônima o seu tratado mais
político; teve de falsificar a informação sobre a cidade onde a obra fora
editada; e temia ser morto; todas as suas obras foram afinal proibidas em 1674,
junto com o Leviathan de Hobbes [3].
Há
uma boa historieta, sobre esse falso clima de tolerância, narrada, muitos anos
depois, por um destacado médico e professor universitário holandês, Herman
Boerhaave: em 1693, ainda estudante, viajando a bordo de um navio de
passageiros, ouviu animado debate entre seus companheiros de viagem, sobre
Spinoza. A maioria das opiniões era veementemente negativa. Então Boerhaave
aproximou-se e perguntou a um dos “críticos” se havia, algum dia, lido alguma
obra de Spinoza, porque tudo o que dizia era falso. Outro passageiro perguntou
seu nome e o anotou. Resultado: Boerhaave foi denunciado em Leiden como
“spinozista” e perdeu (embora afinal não lhe interessasse) qualquer
possibilidade de fazer carreira na Igreja oficial [4]. Na Holanda perseguiram-se
homossexuais, ciganos, mendigos e prostitutas, em ânsias de “purificação”. Não
havia na Holanda sistema de trabalhos forçados para esses “outros”, como houve
em outros locais (na França, Espanha, Portugal, Grã-Bretanha), mas aquele
excepcionalismo carcerário não estava baseado em algum tipo de atitude
indulgente e antirracista, como reza a fábula, mas no simples fato de que o
mercado de trabalho nos Países Baixos estava fortemente impulsionado pela
oferta, com afluência constante de trabalhadores imigrantes de países vizinhos,
vale dizer: contava com uma força de trabalho multinacional.
Talvez
se deva concluir que os holandeses eram tão racistas como todo mundo naquele
momento, mas tinham menores necessidades e portanto não se aplicavam tanto na
prática do racismo em sua pequena pátria (em volta de 1650, a população não
passava de 2 milhões de pessoas). Não por acaso, na Holanda o forte movimento
abolicionista europeu não teria qualquer destaque, e mais: só por pressão da
Grã-Bretanha aboliu-se a escravidão nas colônias holandesas. Déficit moral
coletivo? Vasta bancarrota ética, que passou despercebida em sua filosofia
prática?
O
pai do filósofo, Miguel D’Espinosa, tornou-se sócio do irmão Abraão num
estabelecimento comercial, que parece ter sido importante, como se deduz da
movimentação financeira registrada no Banco de Amsterdã. A empresa exibia o nome
de fantasia “Manuel Rodrigues”, português; importava frutas exóticas e frutos
secos, emprestava dinheiro a comerciantes de armas, inclusive a contrabandistas
de Málaga, e parece que foi das empresas mais afamadas da cidade em sua época. Por acaso
ou não, o pai de Spinoza morrerá em 1654, pouco depois de os portugueses, com
nativos brasileiros, tomarem a cidade do Recife e expulsarem de lá os holandeses
definitivamente – derrota que se traduziu em enorme prejuízo financeiro para a
comunidade sefardim de Amsterdã e para os negócios da família Spinoza.
Há
uma fable convenue [aprox. “história acertada”, “versão combinada”]
relacionada à vida de Spinoza, cujos dois principais mitos são sua extrema
solidão e a pobreza sempiterna, mas ambos são isso, mitos, não correspondem à
verdade. Spinoza é filho de família da classe mais alta, na estrutura de classes
da Holanda da época [5]. Claro, pode
ser considerado intelectual pobre, se o comparamos ao extremo do
continuum: o filósofo cortesão gastador Leibniz.
Solidão?
Eremita? Um moderno Diógenes? “Spinoza viveu na quietude esotérica do indivíduo
isolado” – diz o jurista nazi-católico Carl Schmitt, acompanhando o mito
historiográfico [6]. Isolado?
Spinoza estava em contato com toda a cúpula liberal da Holanda, os dirigentes
chaves que conduziam o novo estado; e era íntimo amigo do Péricles da história
da Holanda, principal estadista republicano da época: Jan de Witt. Act est
fabula! [A peça teatral acabou!]
Mas
há outra dimensão da fable convenue sobre Spinoza, pouco analisada,
reprimida como em outros filósofos da época do nascente capitalismo europeu: a
flagrante discrepância entre pensamento e prática, entre teoria e práxis,
que marcou a fogo o período de transformação da forma mercantil do capital até
sua forma quase moderna, protoindustrial e financeira. Em outras palavras: será
que Spinoza apresenta na forma de uma quimera delirante, o paradoxo entre o
discursos da liberdade e democracia absoluta... e a prática da escravidão?
Como
diz Williams em sua importante obra sobre Capitalismo e Escravismo [7], a instituição da escravidão,
promovida e organizada por europeus no hemisfério ocidental entre os séculos 16
e 19, não foi fato “acidental” nem derrapagem na história econômica moderna. A
escravidão foi, isso sim, peça crucial nos primeiros momentos da formação do
capitalismo mundial e, no específico, da arrancada da acumulação primitiva na
Holanda. Não é possível explicar o surgimento do capitalismo a partir de 1500
sem os escravos como força de trabalho e sem o florescente comércio de escravos
no Atlântico: até 1900, calcula-se que para cada europeu que chegou às Américas,
chegaram três escravos africanos. Calcula-se que, na somatória, chegaram vivos
às Américas 12 milhões de africanos para trabalhos forçados; só entre 1500 e
1640, foram 788.000 escravos. O trabalho forçado e quase gratuito impulsionou o
que se poderia chamar de primeira agricultura de exportação capitalista: o
cultivo de açúcar, mas também de fumo e de algodão [8].
A
Holanda é o primeiro caso exemplar a considerar:
o esplendor holandês entre os século 16 e 17 é resultado de uma política militar
de agressão e do domínio do tráfico de escravos [9]. De fato, os holandeses foram os
primeiros a trazer mão de obra escrava da África para o estado de Virginia em
1619, e para a ilha de Manhattan em 1624, onde depois seria fundada New York. Entre 1657 e 1663, quatro
barcos holandeses chegaram ao porto de Buenos Aires (ponto chave do contrabando
continental da época) repletos de escravos, que foram imediatamente comprados
por espanhóis e criollos [10].
A
partir de 1630, os holandeses começaram, nas plantações de açúcar, a substituir
os índios Tupani por africanos (os portugueses iniciaram antes o comércio de
escravos; e, antes dos portugueses, os reinos islâmicos), por razões que os
espanhóis já haviam percebido: em termos de produção, um negro valia por quatro
índios.
A
história do “Brasil holandês”, muito relacionado com a família Spinoza, pode ser
dividida em três atos: primeiro, conquista e consolidação de um território
importante para o cultivo de açúcar; depois, uma década de relativa paz e
prosperidade sob o governo ilustrado de Johan Maurits van Nassau; e, finalmente,
a guerra interimperialista com os colonos portugueses locais e escravos forros
brasileiros, que levam à rendição da colônia holandesa em 1654. Até esse ano,
barcos de bandeira holandesa transportaram 23.000 escravos da África ao Brasil;
e das seis colônias de ultramar que a Holanda chegou a ter, no auge como
potência mundial, três eram sociedades escravistas; e em três delas, a maioria
da população era constituída de escravos de origem africana condenados a
trabalhos forçados [11].
Não
surpreende que ninguém menos que o pai do Constitucionalismo burguês,
Montesquieu, registrasse que “o açúcar seria caro demais, se os escravos não
fossem obrigados a cultivar a cana”. Porque o açúcar era e é essencialmente
empresa capitalista complexa, que implica não só operações agrícolas, mas também
as etapas primárias do refino final. A razão era crisológica e econômica, não
racial. Nada tinha a ver com a cor do trabalhador, mas com os custos para
reproduzir sua força de trabalho e a possibilidade de exploração extensiva e
intensiva.
Pela
nova ótica capitalista, comparado com o trabalho dos índios, o escravo negro era
eminentemente superior. Foi durante esse período que Spinoza encarnou como
pensador mais destacado e paradigmático da nova ótica capitalista. Mas veremos
como sua própria Filosofia prática tem a cabeça bifronte de Jano: como o
legendário rei do Lácio, tem o dom de encarnar tanto o passado que não terminou,
como o futuro que ainda não se cristalizou. Flutua na filosofia de Spinoza um
duplo silêncio: ela silencia sobre o racismo e silencia sobre a escravidão.
Nosso
pensador recebe formação típica de um jovem marrano de família rica, com destino
prefixado: a profissão mercantil, para herdar a empresa do pai. Claro que isso
não excluía a formação religiosa talmúdica, dado que, entre os judeus, o estudo
religioso equivale a servir a Deus; tampouco excluía a formação humanista
radical: na biblioteca erudita que deixou ao morrer, além de gramáticas,
dicionários e várias edições da Bíblia, há quase todos os clássicos espanhóis
(Góngora, Montalván, Quevedo, Cervantes), gregos, latinos e da filosofia
neoescolástica e moderna da época: Diofanto, Josefo, Aristóteles, Hipócrates,
Epítecto, Arriano, Luciano, Homero, Euclides, dos latinos Tácito, Tito Lívio,
Petrônio, Virgílio, Julio César, Sêneca, Salustio, Marcial, Plínio, Ovídio,
Curcio, Plauto, Cícero, evidentemente Thomas Morus, Petrarca, Calvino, Bacon,
Maquiavel, Grocio, Hobbes e Descartes [12]. Spinoza, contra a opinião
corrente de muitos comentaristas, tomou a iniciativa de fazer-se expulsar da
sinagoga, com um escrito, Apologia, em que justificava uma diferença de
opinião, e que escreveu... em espanhol! A sinagoga nada teve a
fazer além de aplicar-lhe uma excomunhão furibunda (Cherem), que
ratificava sua condição de “ateu”, o que sempre o desgostou, e concluía com
violenta exortação para que toda a comunidade hebraica o isolasse.
No
mesmo momento da excomunhão, em 1656, aconteceu mudança decisiva em sua posição
social, em sua consciência de classe: é quando herda, com o irmão Isaac, o
florescente negócio de exportação & importação e de intermediação financeira
e bancária do pai. Já nessa data assinava as cartas comerciais e notas
promissórias escritas de próprio punho, como “Bento D’Espiñoza”. Nos documentos
de cartório, Bento aparece qualificado como “mercador português residente
em Amsterdã”.
Já se viam os primeiros sinais das consequências comerciais
desastrosas que teria, para o negócio familiar, a guerra interimperialista entre
Holanda e Inglaterra e entre Holanda e França. Porque a Holanda está em posição
de desafiante frente ao mundo, com sua porção colonial, a integração militar e
comercial de áreas não capitalistas, a conquista do mercado mundial, destinada a
cumprir o destino do ciclo lógico do capital.
Como
assinala Toni Negri, “nas Províncias Unidas da Holanda conjugam-se no espaço
tempo a ordem capitalista do benefício e a aventura selvagem da acumulação no
mar, a fantasia construtiva que os comércios produzem e o assombro que tudo isso
produz na Filosofia”. Mas o assombro filosófico ignorou o maior crime da
Holanda: os escravos e o trabalho forçado. O eixo sobre o qual girava o milagre
capitalista holandês – e é curioso que Negri não chame atenção para isso – era a
prática geral da escravidão, inclusive o uso e abuso doméstico de escravos
africanos.
Os
principais postos de comércio de escravos, os famosos “Asientos” [13] [em português do Brasil ,
“entrepostos”], tanto na América como na África, estavam sob bandeira
portuguesa, holandesa, francesa, inglesa, dinamarquesa ou de Branderburg.
Calcula-se que a Holanda (mediante a Companhia das Índias Ocidentais, CIO, que
foi a maior empresa privada de comércio de escravos de toda a história) [14] enviou para a América (das regiões
de Angola e do Congo) mais de 100 mil escravos, até 1730. Amsterdã seria a
capital do tráfico de escravos, na província de Zeeland (Middelburg e
Vilssingen); seus portos eram os mais importantes e eficazes no mecanismo
escravista. Os holandeses até inovaram nas ferramentas: desenharam um
bem-sucedido galeão super rápido, chamado Fluyt (“Barco
voador”*)
que, com convés largo, baixo calado e pequena tripulação, converteu-se no barco
ideal para transporte de escravos [15].
Quando
a conquista de uma parte do Brasil abriu novas oportunidades econômicas, os
escrúpulos morais protestantes (e judeus) evanesceram rapidamente. De modo
similar, a simpatia pelos sofrimentos dos indígenas americanos nas mãos dos
espanhóis, parte da “Lenda Negra”, não sobreviveu por muito tempo ao contato
real, mais que ideal, com os índios na Nova Holanda.
É
muito claro que havia um Common Sense racista que teria necessariamente
de participar como pano de fundo ideológico para anular todo arrepio moral ou
discrepância ética; era impensável que os europeus fossem submetidos à
escravidão (naquela época), mas escravizar africanos e negros sans phrase
já era questão ontologicamente diferente. Evidentemente, o racismo não criou o
comércio e o tráfico de escravos dos quais a Holanda beneficiou-se, mas ajudou
muito: deu aos europeus uma superestrutura lógico-moral para participar e tomar
parte nele.
Ou
seja: os europeus, incluídos os holandeses, já eram racistas muito antes de
meterem-se no comércio de escravos no Atlântico. O papel atlântico dos
holandeses foi importante: tiveram papel decisivo na combinação da tecnologia de
produção do primeiro sistema do Atlântico (Norte) com o capitalismo do chamado
segundo sistema do Atlântico. E dentro desse mecanismo, os judeus holandeses
tiveram papel crucial [16].
Como
resultado, as principais zonas produtoras de cultivos tropicais do Brasil
mudaram-se para o Caribe e as regiões meridionais da América do Norte. A
escravidão era a única fonte de trabalho nos dois sistemas, já que a mão de obra
era insuficiente, fosse a dos emigrantes disponíveis no Novo Mundo, fosse a dos
ameríndios ou dos colonos novos.
A
oferta da mão de obra africana era relativamente elástica, e essa elasticidade
forçada é um dos elementos chave na orientação distintiva do segundo sistema do
Atlântico para o mercado internacional. É óbvio que a ideologia holandesa de
meados do século 16 apresentava dois níveis da consciência moral na sociedade
civil: um conjunto de valores não racistas para uso doméstico (e entre os
europeus), e outro, racista, unicamente para uso no mundo exterior (não
europeu).
O
“padrão duplo” ético podia ser materialmente constatado: a diferença entre a
força de trabalho muito livre e móvel na República Holandesa e, simultaneamente,
a ausência de uma força de trabalho clássica, na maioria das colônias holandesas
no estrangeiro. Em especial, os holandeses judeus tiveram papel destacado nesse
mecanismo: tinham títulos de propriedade de 59 plantações de açúcar no Brasil
recém conquistado pela Holanda e estima-se que controlavam cerca de 20% da
produção [17]. Quanto à ética comercial, os holandeses não se limitavam à raça
negra: escravizaram portugueses capturados no mar, indonésios no Índico e até
japoneses.
Spinoza
transcendeu esse contraditório horizonte liberal?
Da
crise interior e exterior que converteu o “marrano da Razão” Spinoza, de
comerciante multinacional de frutos secos e jóias e operador da Bolsa, em
filósofo solitário em
busca de Deus , há rastros indiretos, indeléveis e muito
significativos.
A
decisão fundamental de Spinoza acontece no mesmo momento em que a empresa
familiar decai economicamente, resultado da crise no Brasil e do bloqueio no
Atlântico, pela Inglaterra. Além disso, o pai deixara dívidas não liquidadas. O
filósofo nascerá das ruínas de uma empreitada comercial e da rejeição, violenta
e pública, da religião de seus pais.
Em
escrito crítico sobre a Filosofia de Descartes, Spinoza expôs, numa confissão
rara, como havia superado a mera consciência burguesa, o modo de mediação
mercantilista, o espírito do capitalismo plasmado no judaísmo mais prosaico,
tanto quanto no novíssimo calvinismo holandês:
Depois
que a experiência me ensinara que tudo que acontece na vida ordinária é vão e
fútil; depois de ter visto que tudo que para mim era objeto ou motivo de temor
não continha nada nem de bom nem de mau em si, além dos efeitos que produzia em
minha alma, decidi-me finalmente a investigar se não haveria algo que fosse um
bem verdadeiro, alcançável e ao qual se pudesse entregar a alma, depois de
rechaçadas todas as demais coisas (...) Via, claro, as vantagens que nos advêm
das honrarias e riquezas, e via, mesmo assim, que era necessário renunciar a
elas, se queria entregar-me seriamente a esse outro novo propósito. Cheguei à
conclusão de que, mesmo que a Felicidade suprema consistisse nas honrarias e
riquezas, teria de privar-me disso (...) compreendi que adquirir dinheiro,
sensualidade e glória são sempre obstáculos, quando são buscados por eles
mesmos, não como meios para outros fins (...)
[18]
Um
conflito moral que aparentemente atormentava Spinoza: a separação entre sua vida
diurna, exotérica, de comerciante (na qual, inclusive, enriquecia indiretamente
do trabalho forçado dos escravos) e sua vida espiritual noturna, esotérica.
Spinoza considera que levar vida de comerciante é “um grande obstáculo”, dado
que o Dinheiro é bem incerto [falso] “por sua própria natureza”. Acompanha ad
verbatim a frase de seu admirado Demócrito: “Quem queira gozar de paz de
alma não se deve ocupar com muitos assuntos privados ou públicos” [19].
O
texto não implica que Spinoza confesse alguma aversão ao comércio per se,
de modo absoluto, mas que a disposição para a Filosofia é impedimento à prática
do comércio como tal, como contou, servindo-se de argumentos de Tales de Mileto,
a seu amigo Jarig Jelles, comerciante de especiarias. Primeiro, descrevia a
“mísera condição dos que perseguem honras e riquezas; (...) os estados devem
perecer e, de fato, realmente perecem, pela ânsia ilimitada de honras e riquezas
(...); adiante, conta uma historieta filosófica da
antiguidade:
Basta
seguir esse raciocínio de Tales de Mileto: tudo que há entre amigos – dizia ele
– é propriedade comum dos amigos; os Sábios são amigos dos Deuses; tudo é
propriedade comum dos Deuses; logo, tudo é propriedade dos Sábios. Assim, com
uma palavra, aquele grande Sábio tornou-se riquíssimo, mais por desprezar
nobremente todas as riquezas, do que por buscá-las sordidamente (...) Os Sábios
não carecem de riquezas, não porque não as possam obter, mas porque não as
querem.
[20]
Esta
ruptura existencial e social com a nova “Sociedade Comercial” (como Adam Smith
chamava o feroz capitalismo nascente) produz-se no período que vai de
1656 a
1660.
Nossa
história começa numa carta que Spinoza recebe em 1664 de seu amigo Peter
Balling, quando Spinoza já é outro homem, pensador que pode viver sem apuros,
graças à renda vitalícia que ganhou de um admirador, mas ainda ressoam nele as
bases ideológicas do capitalismo mercantil e o colonialismo holandês
transoceânico.
Desde o verão europeu de 1663,
Spinoza já está trabalhando em sua obra mais importante, a futura Ética,
livro que chama de Philosophia, que ainda é escrito de talhe
eminentemente metafísico, tem numerosos desenvolvimentos fundamentais de
filosofia política. A carta é curiosa por muitos motivos, Spinoza é um pensador
muito reservado em seus textos exotéricos e públicos, nos quais pouco se pode
saber de sua vida íntima ou de seu círculo mais privado: é uma das poucas cartas
nas quais Spinoza evoca uma experiência íntima. Em segundo lugar, esta carta em
particular foi escolhida pelo joven Marx na composição de seu caderno sobre o
pensamiento de Spinoza, no qual resumiu extratos do famoso Tractatus
Theologico-Politicus e de sessenta cartas do pensador holandês[C]
[21]. Peter Balling, jovem
comerciante amigo de Spinoza, membro dos famosos “Colegiantes” (ex-Mennonitas,
ex-Remonstrans, quackers dissidentes, heréticos de diferentes pelagens e
outros cristãos “sem igreja”) de Rijnsburg, muito culto e conhecedor de grego e
latim, autor de um manifesto daquela seita político-religiosa, Het licht op
den Kandelaar (Luz sobre o candelabro) de 1662, onde defende uma fé interior
cujo fundamento é a “luz divina” presente em cada um de nós. Parece que se podia
expressar em espanhol (representava em Amsterdam comerciantes importantes da
Espanha) e isso o aproximou de Spinoza.
Em
1664, traduz ao holandês a versão spinozista dos Principia de Descartes;
Spinoza o descreve nas cartas como “muito culto e prudente”. Na carta de que
aqui se trata, Balling, que acabava de perder um filho pequeno, conta que tivera
pressentimentos e augúrios do falecimento ouvindo vozes e gemidos que anunciavam
o desenlace fatal. Spinoza responde-lhe o seguinte:
Digo-lhe
que não é caso raro, e posso confirmar que se passou comigo algo semelhante no
inverno passado em Rijnsburg
[22], que explicarei. Quando, uma manhã,
despertava de sono muito pesado, o céu já clareando, as imagens que que vira no
sonho apareciam ante mim, como se fossem coisas reais, em particular a aparição
de um certo negro brasileiro leproso [23], que nunca vira antes. Esta imagem
desaparecia quase por completo quando, para distrair-me com alguma coisa e
manter-me ocupado, meus olhos fixavam-se num livro ou em outra coisa; se tirava
os olhos desse objeto e não fixava minha atenção em nada de especial, por
momentos reaparecia a imagem do etíope (Æthiopis) [24], com igual intensidade anterior, até que se
ia desvanecendo até desaparecer. O mesmo que aconteceu nos meus sentido internos
deve ter ocorrido ao seu ouvido.
A
figura de um brasileiro ameaçador era, para um patrício médio e informado de
Amsterdã, ainda mais para um comerciante transatlântico como Balling, algo que
não exigia nenhuma explicação suplementar. Recordemos que Spinoza chega à
conclusão de que a alucinação auditiva dos gemidos do filho de seu amigo Balling
era, de fato, um presságio da enfermidade iminente, porque se baseia em
conhecimento íntimo do menino; mas seu sonho do negro brasileiro leproso não
poderia ser, por sua vez, produto de enfermidade física ou delírio. Spinoza
explica o significado do delírio auditivo de Balling, mas não é plenamente
consciente do próprio sonho. E é claro que Spinoza agrega o adjetivo “negro”,
nigri.
Para
os leitores pósmodernos de Spinoza, não parece haver qualquer problema: por
exemplo, Hardt & Negri assinalam, para justificá-lo, que ninguém menos que
Kant e Hegel também falavam de “negros” em seus textos [26].
Analisar
uma forma de comunicação invariavelmente distorcida, nesse caso um sonho
delirante é, portanto, revelar de que maneira suas lacunas, imagos,
repetições, omissões e equívocos são por si mesmos significativos e apontam para
o reprimido, o inominável, o excluído. Se podemos revelar as condições que
compelem um discurso particular (narração da aparição intensa de um negro
escravo enfermo) a incorrer em alguns enganos e disfarces, igualmente podemos
examinar os restos diurnos gerados pelas condições materiais de uma época e
lugar, que introduzem informação (“conteúdo manifesto”, segundo Freud) no texto
de um sonho.
Terry
Eagleton ensina que o que se produz (seja sonho diurno ou complexa produção
ideológica) tem de ser entendido em termos de suas condições de produção.
Permitam-me
sugerir que Spinoza chegou a conclusão equivocada sobre seu próprio sonho:
intimamente, tinha o necessário equipamento ideológico para engendrar a
alucinação, o fantasma do escravo raivoso, a imago nigri. A causa
imediata do sonho pode ter sido alguma forma de delírio, mas o conteúdo do sonho
– quer dizer, a imagem aterradora de uma colônia nativa de escravos e
trabalhadores braçais em rebelião contra seus amos europeus – não podia ser
explicado por causas puramente físicas, mas, sim, pela confusa consciência
mental de Spinoza, do capitalismo holandês, da própria empresa colonial em si
mesma, do sonho imperial de uma Nederlands-Brazilië, de uma grande
Nieuw-Holland e das representações dessa empresa em sua cultura,
calvinista e liberal, no núcleo mais duro e mais reprimido da Ideologia
holandesa.
O
escravismo como realidade material atravessava transversalmente a vida dos
Spinoza, era o Business as normal, numa cidade como Amsterdã, onde os
mercadores judeus controlavam cerca de 20% do comércio, até 1630 [27]. Até um irmão de Spinoza, Gabriel,
havia emigrado para a colônia de Barbados, onde tinha participação em plantações
de açúcar e era proprietário de escravos; outra meia-irmã, Rebecca, emigrou com
dois filhos para Curaçao, ilha onde não havia economia agrícola importante, mas
que era utilizada como depósito central, um enorme entreposto de escravos, e
parada para classificação dos escravos africanos destinados à comercialização
nas colônias inglesas e espanholas [28]. O sistema escravista era uma
presença natural e cotidiana entre a comunidade de ricos comerciantes da potente
província de Holanda.
O
chamado plano geopolítico Groot Desseyn (Grande Projeto), no qual
colaboravam lado a lado a Companhia das Índias Ocidentais e o Estado Geral das
Províncias Unidas da Holanda, pretendia estabelecer uma grande colônia holandesa
ex-novo, na costa de territórios de Portugal em Angola e Brasil , explorar o
viciante acúçar mediante o tráfico de escravos africanos numa única zona
econômica, plano que começou a se materializar com a primeira expedição militar
em 1624 para conquistar a Bahia [29]. Spinoza tem delírios do fracasso
do Groot Desseyn?
Não
se pode apagar sem mais nem menos o reprimido na alta Teoria. Ele reaparece como
resto diurno claro e simples num delírio persecutório. A narração desse sonho
obsessivo já de olhos abertos foi debatida por alguns especialistas.
Em
dezembro de 1640, Portugal separa-se da Espanha, e a comunidade portuguesa de
Amsterdã volta a restabelecer vínculos comerciais com a nova nação e suas
colônias em todo o mundo, especialmente na extensa colônia brasileira. E os
Spinoza começam a importar frutas e nozes do Algarves português. As novas
relações permitem fazer lobby a favor dos mercadores judeus holandeses
que se haviam estabelecido no norte do Brasil, especialmente no Recife. A
Holanda invadira territórios do norte do Brasil em várias etapas desde 1624,
apoiada financeiramente pela Companhia das Índias Ocidentais, a Geoctroyeerde
West-Indische Compagnie, a famosa e primeira multinacional da história do
capitalismo, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã.
Precisamente
o órgão político da Holanda, o Estado Geral, onde havia muitos amigos e
admiradores de Spinoza, deu-lhe uma concessão em monopólio, de 24 anos, sobre o
tráfico comercial e comércio de escravos para América e África. A Holanda
inclusive designou um vice-rei para governar suas novas conquistas: Johan
Maurits van Nassau-Siegen, administrador moderno, liberal que colaborou com a
instalação da comunidade judia no Recife e Pernambuco.
É
sintomático que o templo judeu do Recife (cidade que será rebatizada como Mauritsstad), a Kahal Zur Israel, será a primeira
sinagoga construída em todas as Américas. Com
o Tratado de Münster, na primavera de
1648, chega a paz entre o reino de Espanha e as Províncias Unidas; com a paz
será possível reatar relações comerciais tanto com o reino como com suas
colônias, abrindo-se para a Holanda todos os portos sob domínio espanhol,
período que ficou conhecido como a “Idade de Ouro” dos judeus portugueses em
Amsterdã, apesar de um decreto de Felipe IV que obrigava todos os judeus
confessos a ter um agente católico ou protestante como intermediário (que ficava
com 20%).
A
prática econômica capitalista da escravidão (sistemática, altamente sofisticada,
extensiva e intensiva, con um Profitque podia chegar aos 300%) dos povos
não europeus como força de trabalho nas colônias, era de tal magnitude que, em
meados do século 17, todo o sistema econômico do Ocidente, e sua correspondente
acumulação primitiva, estava baseada nela [30]. Imediatamente, a Holanda teve de
enfrentar outro imperialismo competitivo: a Inglaterra, a qual, mediante um
Navigation Act de 1651, impedia que navios holandeses partidos da Europa
ancorassem em suas águas; e proibia o comércio com suas colônias. A primeira
guerra anglo-holandesa acontecerá afinal em 1652. Não é por acaso que, adiante,
Kant, em seu escrito de 1795 Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer
Entwurf [Paz Perpétua. Um Esboço Filosófico], criticará essa geopolítica
escravista, exploradora, violenta e racista do novo capitalismo europeu,
denunciando “a conduta hostil dos Estados civilizados de nosso continente, em
especial dos estados comerciais” e destacando “a injustiça que exibem aos
visitar povos e países estrangeiros (que, no seu caso, é o mesmo que
conquistá-los)”; e finaliza dizendo que:
a
América, os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc. eram para
eles, ao descobri-los, países que não pertenciam a ninguém, pois para nada
levavam em conta os habitantes. Nas Índias orientais (Industão) introduziram
tropas estrangeiras, sob o pretexto de estabelecimentos comerciais e, com as
tropas, introduziram a opressão dos nativos, a incitação de seus diferentes
estados a grandes guerras, fomes, rebelião, perfídia e a litania de todos os
males que afligem o gênero humano.
[31] [D]
Entre
os séculos 15 e 16,
a escravidão como topoi retórico (embora sua origem
também seja histórica) havia-se convertido na principal metáfora da filosofia
política ocidental, mediante a qual se conota tudo que haja de nefasto, perverso
e negativo nas relações de poder absolutistas (europeias, não europeias e
clássicas).
Sem
dúvida, a metáfora política condensou-se em ideologia oficial do Iluminismo
nascente, quando a prática econômica da escravidão incrementa-se qualitativa e
quantitativamente.
A
tópica na ideologia funciona como um depósito de provisões; de modo sistemático
e normativo, nela podem-se encontrar as ideias mais gerais, ad usum
delphini, prontas para serem citadas em todos os escritos e discursos que
operam como um tipo especial de discurso demonstrativo. Os topoi que se
usam no Iluminismo – a metáfora escravista é um deles – são testemunho de uma
nova “atitude espiritual” relacionada à ascensão da burguesia comercial e
proprietária.
A
discrepância escandalosa entre Theoria e Praxis, entre Ser e
Mundo, entre pensamento e prática, a escansão sem resolver, pode muitas vezes
adotar a forma do silêncio, porque não seja percebida, ou quando o aparelho
conceitual seja bloqueado. E pode acontecer de ser silenciada e ao mesmo tempo
fundamentada, como acontece no caso de Spinoza e de seus contemporâneos. Essa
dupla visão, esse olhar vesgo em duas direções era bastante frequente nos
filósofos dos 1500s e 1600s.
O
que acontece na Ideologia holandesa? Será uma autêntica anomalia selvagem? Ou,
na realidade, estamos ante uma simbiose paralisante do conflito burguês? Os
pensadores do Iluminismo continental, inclusive os mais radicais, utilizavam com
generosidade a figura retórica da escravidão como argumento para enfrentar o
Absolutismo, em especial o católico e o espanhol, indignavam-se contra a
escravidão qua
teoria, ao mesmo tempo em que ignoravam & reprimiam soberanamente a
prática concreta, o ofício terrestre e o enriquecimento que lhes vinha da
escravidão.
O
berço do racismo moderno (e suas variantes) cristalizou-se no
Ocidente durante o período que vai de 1500 a 1700 [32], mas a maioria dos filósofos do
Iluminismo (inclusive da ala mais radical) aceitavam como “natural” a exploração
forçada de milhões de trabalhadores escravos, os Untermenschen
[sub-homens] da Modernidade, nas colônias, os mesmos que proclamavam que a
Liberdade era o estado natural do homem e direito inalienável e intrasferível.
Untermenschen, sub-homens, é termo geralmente útil, mas tem de ser
subdividido, sob pena de não se compreender ou compreender-se mal a complexidade
ideológica ou reduzir o racismo a uma caricatura, um cão de palha.
Tradicionalmente,
produziram-se hierarquias raciais dentro dos grupos subordinados ao capital, por
exemplo, com os “bárbaros”, que se distinguem dos simples “selvagens”. Os
“orientais” ou “asiáticos” (eslavos, índios, chineses), por exemplo, de forma
padrão situam-se sempre acima da maioria dos nativos americanos, africanos e
aborígenes australianos. Por outra parte, devido à variedade dos marcos teóricos
racistas que se utilizam para justificar a escravidão e o trabalho forçado,
sempre há uma ampla gama de concepções que às vezes opõem-se e entram em luta:
“Racismo teológico” [33] versus
“Racismo científico”; “Poligênese” versus “Monogênese”; “Ambientalistas” versus
“Biologicistas”, etc.; para nem falar das variedades internas a cada uma delas.
Era possível ser inferior por ser dito animal não humano; ou por ser entidade
intermediária entre os animais não humanos e os seres humanos (“o elo perdido”),
por serem seres humanos de uma gênese diferente inferior evolutivamente; por
serem seres humanos da mesma gênese, mas por padecer de atraso evolucional
irreversível, e assim por diante.
O
conceito de Untermenschen foi conceito que visou a “simplificar” a
manutenção dessa situação de inferioridade moral, dar legalidade à “morte
social” de populações inteiras, com uma suspensão de juízo em relação a outras
diferenciações.
Mas,
depois que se implanta, passa a haver grande número de formas pelas quais alguém
pode ser um Untermenschen, uma subpessoa, do ponto de vista do ocidente e
da nascente ideologia burguesa, o liberalismo.
(Continua)
(Continua)
__________________________
Notas
de rodapé
[1]
Para informações sobre a vida de Spinoza ainda é vigente e insubstituível o
livro de Carl Gebhardt, autor da edição definitiva, nos anos 1920s [em espanhol]
da obra completa: Spinoza, Losada, Buenos Aires, 1940; também os soberbos
trabalhos de Steven Nadler: Spinoza. A Life, Cambridge University Press, Cambridge, 1999; Spinoza’s Heresy.
Immortality and the Jewish Mind, Oxford University Press, New York, 2001, e
A Book Forged in Hell. Spinoza’sScandalous Treatise and the Birth of the
Secular Age, Princeton University Press, Princenton, 2011.
[2]
Estudioso inicial de Spinoza como Feuer descreve a comunidade judia de Amsterdã
como “Entidade socioeconômica virtualmente autônoma”. Ver FEUER, Lewis, Spinoza and the Rise of Liberalism, Beacon
Press, Boston, 1958, p. 5.
[3]
E em 1678 proibiram-se até traduções em outros idiomas ou a publicação de
excertos do livro. ISRAEL, Jonhattan: “The Banning of Spinoza’s Works in the Dutch
Republic (1670-1678)”, in VAN BUNGE, W./ KLEVER, W. (eds.),Disguised and
Overt Spinozism around 1700, Brill, Leiden, 1996, pp. 3-14. O
mesmo se pode dizer da situação de emigrado de Descartes, sempre sob ameaça de
expulsão e censura, e outros intelectuais holandeses de destaque como Ericus
Walten, ou artistas como De Hooghe.
[4]
A história do chamado “Pai da medicina moderna na Holanda”, in LINDEBOOM, Gerrit
Arie, Herman Boerhaave: the man and his work, Methuen, London, 1968, p.
46 y ss.
[5]
Ver VAZ DIAS, A.M. / VAN DER TAK, W.G.; Spinoza, Mercator et
Autodidactas, Nijhoff, La Haye, 1932; trata-se de importante coleção de
documentos privados e comerciais da família Spinoza.
[6] SCHMITT, Carl; Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas
Hobbes: Sinn und Fehlschlag eines politischen Symbols, Hohenheim Verlag,
Colonia/Lövenich, 1938.
[7]
WILLIAMS, Eric; Capitalismo y Esclavitud, Traficantes de Sueños, Madrid,
2011.
[8] Os números estão em ELTIS, David ; The Rise of
African Slavery in the Americas, Cambridge University Press, Cambridge,
2000, p. 9, Table I-I.
[9]
Os dinamarqueses foram os primeiros a por fim ao tráfico de escravos, em 1804;
Grã-Bretanha, em 1831; França, em 1848; Rússia e EUA, só em 1861, mas a
tolerante Holanda só aboliria o comércio de escravos em 1863, sendo uma das
últimas nações europeias a fazê-lo [no Brasil, só foi abolido em 1888 (NTs)].
[10]
ZACARIAS, Moutoukias; Contrabando y control colonial en el siglo XVII:
Buenos Aires, el Atlántico y el espacio Peruano, Centro Editor de America
Latina, Buenos Aires, 1988, pp. 143-47.
[11] BLAKELY, Allison: Blacks in the Dutch World: The Evolution of
Racial Imagery in a Modern Society, Indiana University Press, Bloomington,
2001, p. 8. Ver
a completa base de dados do comércio escravista, agora online em “Trans-Atlantic Slave Trade Database”
(TSTD2),
[12]
Spinoza tinha, ao morrer, biblioteca de cerca de 160 volumes: VAN ROOIJEN, A. J.
Servaas, Inventaire des livres formant a bibliothèque de Bénédict
Spinoza, The Hague: W. C. Tengeler, 1888; VULLIAUD, Paul; Spinoza d'après
les livres de sa bibliothèque, Chacornac, Paris, 1934; PANNIER, J.; Les
Livres protestants chez Spinoza, Etudes religieuses et théologiques,
Montpellier, 1935; AA.VV.; Catalogus van de Bibliotheek der Vereeniging Het
Spinozahuis te Rijnsburg, E. J. Brill, Leyden, 1965.
[13]
A Espanha sempre foi, até o século 19, dependente de estrangeiros no que
concernia aos escravos, fosse porque aderia à arbitragem papal que a excluía da
África (foi outorgada a Portugal), ou porque carecia do capital e das técnicas
necessárias para traficar escravos. O suculento negócio de fornecer escravos ao
império espanhol, eufemisticamente denominado Asiento de negros
[assentamento de negros], converteu-se num dos troféus mais cobiçados da
diplomacia e comércio internacional.
[14]
Cerca de 7% das ações da Companhia das Índias Ocidentais pertenciam a judeus
holandeses.
[15]
Sobre o tema, ver o trabalho de EMMER, Pieter, C.; The Dutch Slave Trade
1500-1850, Berghahn Books, Oxford, 2005.
[16]
Até 1644, os comerciantes judeu-holandeses compravam 63% dos escravos vendidos
on-shore no tráfico da Companhia das Índias Ocidentais para o Brasil.
Ver “Jews and New Christians in the Atlantic Slave Trade”, in The
Jews and the Expansion of Europe to the West, 1400-1800, Paolo Bernardini
(Ed.), Berghahn Books, 2004, p. 450. O
papel dos judeus no tráfico de escravos do Atlântico, apesar da lenda
antissemita divulgada pelo historiador Werner Sombart, foi em geral muito
localizado e de curta duração, e associado ao novo colonialismo holandês.
[17] Ibidem, DRESCHER, Seymour, p. 475 y ss.
[18]
SPINOZA, Benedictus; Opera, ii, Winter, Heildelberg, 1925, p. 5 y 6;
em espanhol:
SPINOZA , Baruch; Tratado de a reforma del Entendimiento.
Principios de Filosofia de Descartes. Pensamientos metafísicos; Alianza,
Madrid, 1988, p. 75 y ss.
[19]
Demócrito, en: D I E L S/ K R A N Z , Die Fragmente der Vorsokratiker,
II, p. 12, frag. 3. Essa sentença havia sido apropriada pelos epicúreos.
[20]Carta XLIV, 17 de fevereiro, 1671;
em: SPINOZA, Baruch de; Correspondencia Completa; Hiperión, Madrid, 1988,
p. 133-134.
[21] Remetemos o leitor à primeira edição em espanhol do trabalho do jovem Marx sobre Spinoza, com estudo preliminar e tradução nossas: MARX, Karl Heinrich; Cuaderno Spinoza, Montesinos, Mataró, 2012. (Há entrevista sobre o lançamento desse livro, com o autor, traduzida ao português, na redecastorphoto em 12/8/2012, “Sobre: El Cuaderno Spinoza de Karl Heinrich Marx” [NTs]).
[21] Remetemos o leitor à primeira edição em espanhol do trabalho do jovem Marx sobre Spinoza, com estudo preliminar e tradução nossas: MARX, Karl Heinrich; Cuaderno Spinoza, Montesinos, Mataró, 2012. (Há entrevista sobre o lançamento desse livro, com o autor, traduzida ao português, na redecastorphoto em 12/8/2012, “Sobre: El Cuaderno Spinoza de Karl Heinrich Marx” [NTs]).
[22]
Spinoza terá visitado os colegiantes rebeldes de Rijnsburg no inverno de
1663-1664, para expor-lhes suas ideias? Recordemos que Spinoza mudou-se para
Voorburg em abril de 1663.
[23]
Textualmente: “…et praesertim cujusdam nigri et scabiosi Brasiliani quem
nunquam antea videram…” Alguns
textos em espanhol traduzem a expressão como “sarnento”; outros como “peludo”
(!!), na época, confundiam-se os sintomas do parasita da sarna com as úlceras da
lepra; e, não raro, há infecção por sarna em pacientes que sofrem de lepra.
[24]
A maioria das edições ao espanhol (inclusive em inglês) traduzem a palavra como
“negro”.
[25]
O estranho sonho de Spinoza foi debatido por especialistas e intérpretes, desde
o trabalho pioneiro, de enfoque psicanalítico de Feuer: FEUER; Lewis, S.; “The
Dream of Benedict Spinoza”, in American Imago, XIV, 1967, pp. 225-242:
BERTRAND, M.; Spinoza et l’immaginaire, Presse Universitaire de France, Paris,
1983; ROSENTHAL, Michael A.; “The Black, scabby Brazilian. Some Thoughts on Race en Early Modern Philosophy” in
Philosophy&Social Criticism, 31, 2005, pp. 211-221; MONTAG, Warren;
Bodies, Masses, Power. Spinoza
and his Contemporaries;
Verso. London-New York, 1999, p. 84 y ss., em espanhol,
Cuerpos , masas, poder: Spinoza y sus
contemporáneos, Tierra de Nadie ediciones, Madrid, 2005; “Chi ha paura della
moltitudine?”, em: Quaderni Materialisti, 2003, pp. 63-79. No influente
livro de Toni Negri, o sonho de Spinoza é diluído, sem análise dos conteúdos e
sua conexão com a Ideologia holandesa, como mera introdução formal e ilustração
filosófica ao poder constitutivo da imaginação no Real: ver NEGRI, Antonio;
La anomalia salvaje. Ensayo sobre Poder y Potencia en Spinoza;
Anthropos, Madrid, 1993, pp. 157-159.
[26]
O que é exato, mas não num contexto classista-racista como o de Spinoza. Uma
péssima comparação, mutatio controversiae, em especial no caso de Hegel,
do qual não encontram exemplo a citar. A fantasmagórica imagem do escravo negro
é subsumida no símbolo criativo Calibán, o poder criativo da imaginação (!!).
Ver HARDT, Michael/ NEGRI, Antonio; Commonwealth, Belknap Press, Harvard,
2009, p. 99 y ss.; em espanhol:
Commonwealth : O proyecto de uma revolución del
común, Akal, Madrid, 2011, p. 112; e um tema que já havia desenvolvido, “A
la sombra del negro sarnoso brasileño”, en sua obra clásica: La anomalia
salvaje. Ensayo sobre Poder y Potencia en Spinoza; Anthropos, Madrid, 1993.
[27]
O dado em STEVEN,
Nadler : Spinoza. A Life, Cambridge University Press, Cambridge, 1999, p. 22.
[28]
Na
época, estimava-se que chegassem por semana a Curaçao entre 1.000 e 2.000
escravos.
[29] ISRAEL, Jonathan I.; The Dutch Republic: Its Rise, Greatness and
Fall, 1477-1806, Oxford University Press, Oxford-New York, 1995.
[30] Ver EMMER, Pieter, C.: “The Dutch and the Making of the Second
Atlantic System”; in SOLOW, Barbara L. (ed.),Slavery and the Rise of the
Atlantic System, Cambridge University Press, Cambridge, 1991), pp. 75–96.
[31]
Em espanhol,
KANT , Immanuel; Sobre la paz perpetua; Tecnos; Madrid,
1998. Alguns pesquisadores sustentaram que Kant é o criador do conceito
moderno de raça, não do racismo per se, como Emmanuel Eze, “The Color of
Reason: The Idea of 'Race' in Kant's Anthropology”; in EZE, E. (ed.),
Postcolonial African Philosophy: A Critical Reader, Blackwell, Cambridge,
1997, pp. 103-40; Charles W. Mills debate a tesis de Eze: “Kant's Untermenschen”
in VALLS, Andrew (ed.); Race and Racism in Modern Philosophy, Cornell
University Press, Ithaca, 2005, pp. 169-93.
[32] Ver a história geral de Georg L. Mosse: Toward the Final
Solution: A History of European Racism, University of Wisconsin Press,
Madison, 1985.
[33]
Os três principais grupos raciais reconhecidos na Modernidade, brancos, amarelos
e negros, como descendentes dos três filhos de Noé: Jafet, Sem e Caim, como
acreditava, por exemplo, o almirante Cristóvão Colombo, aos encontrar os três
primeiros indígenas no Caribe.
Notas
dos tradutores
[A]
Epígrafe
acrescentada pelos tradutores brasileiros que não resistiram à tentação. Os que
se interessem por uma leitura seminal sobre os “enroscamentos” da ideologia
liberal escravista na formação do romance brasileiro – e na mesma chave da
interpretação marxiana, encontram material de primeira qualidade em SCHWARZ, Roberto. Ao
Vencedor as Batatas. Forma literária e processo social nos inícios do
romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades, 1981. Capítulo central
desse estudo já clássico nos estudos literários marxianos, “As ideias fora de
lugar” (pp. 11-31), pode ser lido (em português).
[B]
Ver sobre o termo em “marrano”.
*Difícil
não pensar, aqui, na lenda que inspira o Der fliegende
Holländer [“Holandês voador”, também traduzido como “Navio
Fantasma”], ao qual Wagner deu tratamento de ópera romântica, que estreou em
1843. Para aproveitar a oportunidade, os que gostem, ouve-se “A Balada de
Senta”, maravilhosa, a seguir:
[C]Sobre esses cadernos de estudo do
jovem Marx, sobre Spinoza, em português, ver 12/8/2012, redecastorphoto: “Sobre:
El Cuaderno Spinoza de Karl Heinrich
Marx”.
[D]
Kant poderia estar falando dos EUA hoje, na Europa Ocidental e no norte da
África. Difícil dizer melhor.
Muito brigado por o gran trabalho!
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