10/12/2012, Hassan N. Gardezi, Countercurrents
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
(...) there is no other shelter hereabout. Misery
acquaints a man with strange bedfellows.
(...) Não há
outro abrigo à vista, para mim. A miséria nos apresenta a bem estranhos
companheiros de cama...
Trinculo, em The
Tempest , William Shakespeare, ato II, cena 2 [*]
Introdução
Hassan N. Gardezi |
Há
guerra, nos dias que correm, ainda, entre uma coalizão de estados liderada pelos
EUA, e al-Qaeda, que já entra na segunda década. Um dos lados em Guerra, os EUA,
dispensa introdução. Depois do colapso da União Soviética, passou a ser a única
superpotência e é conhecida nos quatro cantos do mundo como a nação mais
poderosa em termos politicos, militares, econômicos e socioculturais. A
al-Qaeda, contudo, não é vista assim tão claramente como força global e exige
definições e alguma introdução.
A al-Qaeda surgiu da
jihad dos anos 1980s
contra o Partido Popular Democrático do Afeganistão [orig.Peoples Democratic
Party of Afghanistan (PDPA)] em Kabul. Essa jihad foi mobilizada pelos EUA, [1] em colaboração com a realeza
saudita e o ditador militar paquistanês, general Zia. Os sauditas financiaram
abundantemente a jihad com a riqueza advinda de seu petróleo, mas a
contribuição dos sauditas que, ao final, revelou-se a mais decisiva, foi Osama
bin Laden, cuja chegada ao Afeganistão foi acertada entre a CIA e o chefe do
serviço secreto saudita, príncipe Faisal al Turki. Depois que a União Soviética
retirou suas tropas do Afeganistão, em 1989, Osama, figura encarnada do
guerreiro jihadista perfeito, e alguns de seus companheiros
árabes fundaram a organização chamada al-Qaeda, com o objetivo de prosseguir
sua jihad contra o “infiel”
norte-americano, o qual, para eles, desnaturava a terra santa do Islã com seus
soldados já se implantando na Arábia Saudita, no início da primeira Guerra do
Golfo.
Faisal al Turki |
Mas,
depois do início, a organização passara por modificações na constituição, na
esfera geográfica de atividade e nas crenças e objetivos. A al-Qaeda que há
hoje, seja como constructo político
brotado de dentro do establishment
norte-americano, seja como realidade existencial, reúne, por laços
fluidos de associação, uma pluralidade de grupos e indivíduos, que operam num
plano transnacional, com missão partilhada e táticas comuns a todos, com vistas
a cumprir aquela missão. Os grupos associados à al-Qaeda hoje vão do Talibã
afegão e paquistanês, aos grupos Ansar al Sharia da Líbia e Frente Al Nusra
síria.
A missão
da al-Qaeda e a Guerra ao Terror
A
principal missão da al-Qaeda é dominar o mundo, em particular o mundo muçulmano,
impondo sua específica griffe de
ordem sociopolítica baseada nas leis da Xaria sunita-salafista da Arábia
Saudita. Assim, a al-Qaeda pôs-se em conflito com os EUA, que também têm projeto
para dominar o mundo, embora por razões diferentes que, no caso dos EUA, têm a
ver com posse e controle imperiais. A al-Qaeda não tem qualquer interesse em
domínio imperial, nem no fenômeno imperial, porque crê que não alcançará seu
objetivo de dominar o mundo sem superar os “inimigos do Islã”, definidos, em
primeiro lugar, como infiéis. Os EUA, na posição de potência global líder, é o
principal dos inimigos infiéis da al-Qaeda. George W. Bush declarou formalmente
sua Guerra ao Terror, em 2001, em retaliação contra a declaração, pela a-Qaeda,
de que seu alvo passava a ser os EUA, “inimigo do Islã”.
A
“guerra ao terror”, apesar da denominação ambígua, é essencialmente guerra de
dominação, como as duas guerras mundiais anteriores, embora com alguns trações
anômalos específicos. A primeira e principal anomalia dessa guerra é o fato de
que um dos combatentes não é entidade estatal: é uma entidade transnacional
denominada al-Qaeda. Como o presidente Obama gosta de repetir, o objetivo da
guerra ao terror é “desmontar, desmantelar e derrotar a al-Qaeda”. Embora, com
sua política para o “Af-Pak”, Obama tenha expandido o teatro da guerra para
incluir o Paquistão com o Afeganistão, as operações da al-Qaeda não se limitam a
esses dois países. Nenhum continente ou país parece hoje livre de ataques reais
ou potenciais dos guerreiros flutuantes da al-Qaeda. O problema complica-se
imensamente, quando os EUA passam a entender, como hoje, que seria necessário
fazer pactos com a chamada al-Qaeda inimiga quando parece conveniente aos EUA –
exatamente o que se viu acontecer na Líbia e está acontecendo hoje, novamente,
na Síria.
O
pesadelo líbio
Dia
15/2/2011, houve em Benghazi, no leste da Líbia, uma manifestação pacífica de
opositores ao regime de Gaddafi. Enquanto o regime movia-se para dispersar a
manifestação, o Conselho de Segurança da ONU entrava em ação com espantosa
agilidade: dia 26/2/2011 já aprovava a primeira resolução que congelava, em
bancos ocidentais, bens de Gaddafi e de vários membros de seu governo, e os
impedia de viajar ao exterior; e o regime foi acusado de usar força excessiva
contra os manifestantes em Benghazi. Rapidamente ,
dia 17/3/2011, o Conselho de Segurança aprovou sua segunda resolução, dessa vez
implantando uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia, depois do que os países da
OTAN, liderados pelos EUA, obtiveram condições ideais para usar suas forças
aéreas para atacar a Líbia. Os canais globais de notícias, entre os quais Al-Jazeera, que tem sede no Qatar, e
que, antes, criara a esperança de ser algum rosto emergente de alguma via
alternativa à propaganda imperialista, pôs-se imediatamente a repetir que os
ataques explicavam-se perfeitamente, e que seriam efeito de uma “preocupação
humanitária” pela segurança do povo líbio.
Dia
28/3/2011, o presidente Obama falou à nação, para dizer, dentre outras coisas,
que:
Barack Obama |
Confrontado por repressão brutal e crise crescente,
ordenei que navios americanos posicionem-se no Mediterrâneo. Aliados europeus
declaram-se desejosos de aplicar recursos para fazer parar as mortes. A oposição
líbia e a Liga Árabe apelaram ao mundo, que salve vidas na Líbia. Sob meu
comando, os EUA lideraram o esforço com nossos aliados no Conselho de Segurança
da ONU, para aprovar a resolução histórica que autorizou a zona aérea de
exclusão para deter os ataques do regime pelo ar, e autorizar todos os meios
necessários para proteger o povo líbio. [2]
É
citação extraordinariamente reveladora, da fala do presidente dos EUA. Aí está
bem claro que os EUA controlavam e conduziam as reuniões do Conselho de
Segurança; e as resoluções para a intervenção militar na Líbia foram aprovadas
bem pouco tempo depois que acontecera, em Benghazi, a primeira manifestação
pacífica. Além disso, a história que Obama conta, sobre Gaddafi estar provocando
“as mortes” entre seu próprio povo, e sobre “os meios necessários para proteger
o povo líbio” soa, de fato, como
replay da história que
Bush contou sobre as “armas de destruição em massa” do Iraque. Mas, se Obama bem
pode ter contado a verdade sobre mensagens que diz que recebeu dos aliados e da
Liga Árabe, a referência que fez a uma “oposição líbia”, essa, sim, tem de ser
examinada mais a fundo.
Desde
o início dos confrontos armados, a mídia estatal líbia sempre insistiu que a
oposição a Gaddafi era liderada por impiedosos agentes de operação da al-Qaeda.
Mas fontes dos EUA e da OTAN ou desmentiram ou, simplesmente, não
comentaram. Os seus aviões continuaram a atacar furiosamente as forças de defesa
líbias, derrubaram as defesas de Gaddafi, enquanto milícias de uma oposição
pesadamente armada marchava em direção a Trípoli, deixando pelo caminho um
rastro de sangue e destruição. Finalmente, dia 20/10/2011, imagens horrendas de
um Muamar Gaddafi linchado até a morte, por assassinos que gritavam allah-o-akbar (Deus é grande)
explodiram pelas redes globais de televisão. A narrativa dizia que estaria
tentando escapar de sua cidade natal, Sirte, quando o comboio em que viajava foi
atacado por aviões da OTAN, ataque que deu às milícias em terra a oportunidade
para capturar Gaddafi e matá-lo.
Hillary Clinton e a saideira |
A
reação da secretária de Estado Hillary Clinton, que se vê em vídeo que circulou
por todo o mundo, reflete, ao que parece, correta e eloquentemente o estado de
espírito de todo o
establishment nos EUA
ante a notícia do assassinato de Gaddafi. A gentil e boa senhora acabava de
sentar-se para uma entrevista a uma rede de televisão norte-americana em Kabul,
quando lhe deram a notícia. Ela fez um segundo de silêncio e irrompeu em sonora
gargalhada. Foi quando disse, sacudindo os braços no ar: “Viemos, vimos, ele
está morto”.
A
morte horrível de Gaddafi talvez tenha servido como alerta a outros ditadores,
sobretudo aos interessados em se opor à única superpotência mundial. Mas, com
certeza, não ajudou a fazer alguma paz na Líbia, nem a introduzir ali qualquer
democracia. Depois da queda do regime, alguns ministros renegados de vários
gabinetes de Gaddafi, que, antes, se haviam reunido para constituir o Conselho
Nacional de Transição [orig.National Transition Council (NTC)] em
Benghazi, assumiram o poder na Líbia. Mas não duraram muito.
Dia
9/8/2012, o governo da Líbia, já então fragmentado em muitos subgrupos tribais e
regionais, e já naufragado em lutas entre as milícias que matavam e torturavam,
foi entregue a outro corpo provisório – o Congresso Nacional Geral [orig. General National Congress (GNC)],
recém inventado, composto de 200 membros. Esse Congresso elegeu como presidente
Mohammed Magarief, político pró-Fraternidade Muçulmana; como presidente dos
Irmãos na Líbia, Magarief viveu muitos anos nos EUA e sempre fizera oposição ao
regime de Gaddafi. Esse Magarief continua no posto de presidente de uma Líbia
onde já não há praticamente nenhuma lei, nenhum estado e nenhuma ordem.
A
conexão al-Qaeda
Muamar Gaddafi |
Já
não é segredo para ninguém que a principal milícia ativa em campo na Líbia, que
liderou a oposição num processo violento de “mudança de regime” foi o Grupo de
Combate Islâmico Líbio [orig. Libyan
Islamic Fighting Group (LIFG)]. São velhos conhecidos do establishment nos EUA, desde que surgiram, dos
mujahideen que partiram para o
Afeganistão para combater na
jihad patrocinada pela
CIA nos anos 1980s. De volta à Líbia, depois daquela guerra santa, decidiram
derrubar o regime secularista de Gaddafi, para substituí-lo por um estado
islâmico.
Ao
mesmo tempo, o LIFG cuidou de separar-se rapidamente dos
patrocinadores norte-americanos, associando-se diretamente à al-Qaeda. Em 2004,
os EUA formalmente declararam o
LIFG “Organização
Terrorista Estrangeira” [orig.
Foreign Terrorist Organization (FTO)]. Depois do 11/9, foi banido
pelo Conselho de Segurança da ONU. E a CIA também passou a manter vigilância
ativa sobre os membros do grupo; os que fossem detidos por suspeita de
associação nas atividades terroristas da al-Qaeda eram entregues à Líbia, na
política já conhecida de “entregas especiais” [orig. special rendition].
Um
dos que foram presos (na Malásia) e entregues à Líbia, depois de ter sido
mantido durante algum tempo numa prisão secreta da CIA, foi Abdel Hakim Belhaj.
Belhaj também combatera na
Jihad afegã dos aos 1980s
patrocinada pela CIA; adiante, se uniu à al-Qaeda. Entregue à Líbia pela CIA,
Belhaj permaneceu preso; mas acabou sendo libertado, depois de algum tipo de
acordo de reconciliação, no final de 2010. Retomou então suas atividades
políticas, e assim estava quando, dia 15/2, aconteceu a primeira manifestação
pacífica em Benghazi, contra Gaddafi; seguida imediatamente pela intervenção
militar dos EUA-OTAN. Já então no comando de uma grande milícia pesadamente
armada do LIFG, Belhadj marchou
sobre Trípoli, com a cobertura dos ataques aéreos da OTAN e ocupou a capital
líbia, dia 23/8/2011. Para todos os propósitos práticos, foi o fim do longo
período de Gaddafi no governo da Líbia. Belhadj se autoinstalou como comandante
militar de Trípoli.
Abdel Hakim Belhaj |
Com
a mudança de regime consumada nos dois meses seguintes ao assassinato de
Gaddafi, Belhadj partiu para a Síria, já planejando, com o Exército Sírio Livre,
a derrubada do governo de Assad.
Mas
os negócios da al-Qaeda na Líbia ainda não estavam encerrados. Em 2012, no
aniversário do 11/9, outra milícia associada à al-Qaeda, autodenominada Ansar al
Sharia, associada a membros destacados do
LIFG, atacaram o consulado dos EUA em Benghazi e executaram o
embaixador dos EUA, Chris Stevens; três membros de sua equipe morreram na mesma
ação. De início, o governo Obama tentou apresentar a morte do embaixador como
ato espontâneo de muçulmanos enfurecidos por causa de um filme islamófobo que
circulara nos EUA. Mas, sob feroz escrutínio, em ano eleitoral, o governo de
Obama foi obrigado a admitir, pelo menos, que o embaixador fora vítima de ato
planejado por grupo terrorista.
O
pesadelo sírio
As
primeiras manifestações contra o regime de Bashar al Assad na Síria surgiram em
meados de março de 2011. Podem-se listar várias razões para os protestos, dentre
as quais um efeito de contágio da chamada “primavera árabe” contra o longo
domínio pelo Partido Baath, liderado pela família Assad, de uma seita alawita,
minoritária. Mas não se pode ignorar um importante fator: as reformas econômicas
de cunho neoliberal, que tornaram excepcionalmente difíceis as condições de
sobrevivência para os trabalhadores sírios mais pobres.
Bashar al Assad |
Nesse
contexto, é preciso lembrar que, antes das tais reformas, em meados dos anos
1990s (e reformas às quais Bashar al Assad aderiu, em passo acelerado, depois de
assumir o poder em 2000), o estado sírio tinha setor público consideravelmente
amplo e estável, que patrocinava inúmeros programas sociais básicos. As reformas
neoliberais implicaram rápida privatização das grandes empresas estatais e o
desmantelamento dos programas sociais – dentre os quais preços subsidiados para
alimentos e combustível. Assim se criaram graves dificuldades de sobrevivência
para grande maioria dos cidadãos sírios.
Os
problemas econômicos são, sem dúvida, fator subjacente que precipitou os
protestos; e potências estrangeiras, além de interesses econômicos específicos
que elas também representam, rapidamente cuidaram para converter a agitação
popular em luta mortal por dominação política. Os mesmos pactários europeus da
OTAN e as petromonarquias da Liga Árabe, liderados pelos EUA, que haviam
trabalhado para derrubar o regime de Gaddafi começaram a sabotar o governo de
Bashar na Síria. Financiaram pesadamente islamistas sírios, islamistas de outros
países e grupos armados da al-Qaeda, para matar e destruir, sob a hipótese de
que a matança e a destruição salvariam a Síria e a converteria – dependendo de
quem interprete a matança em andamento – ou numa democracia ou num califado
islâmico.
Mais
uma vez, o governo Obama “liderou o esforço”, dessa vez por trás das cortinas,
para arrancar do Conselho de Segurança da ONU uma resolução contra o regime de
Bashar al Assad, depois da qual o embuste líbio poderia ser reencenado na
Síria.
A
partir de junho de 2011, várias propostas de resoluções foram encaminhadas às
reuniões do Conselho de Segurança, sempre em condenação contra o regime sírio,
ou criando sanções internacionais contra o país; todas aquelas propostas foram
rejeitadas. Não só porque Rússia e China vetaram, mas, também, porque estados
importantes com longa tradição de governos democráticos, como Índia, Brasil e
África do Sul, opuseram consistentemente contra aqueles movimentos.
Todos que se opuseram a resoluções antirregime pensavam,
sobretudo, por algo que a imprensa-empresa nos EUA e em vários países ocidentais
fizeram de tudo para meter por baixo do tapete: a flagrante manipulação, pelos
EUA e seus aliados, do Conselho de Segurança da ONU – até arrancar dali a
resolução que criou a zona aérea de exclusão que viabilizou o assassinato de
Gaddafi e a derrubada violenta do governo líbio. Como disse um membro de uma
missão da ONU: “O fantasma da Líbia assombra a questão Síria”. [3]
Mas nem as repetidas derrotas no Conselho de Segurança
da ONU conseguiu deter os EUA e seus aliados, que se mantêm agarrados ao
objetivo de derrubar Bashar al Assad do governo, não importa por quanto tempo o
povo sírio tenha de sofrer. Servindo-se dos aliados árabes, em particular da
Arábia Saudita e do Qatar, os EUA conseguiram garantir suprimento constante de
petrodólares e armamento pesado, incluindo mísseis antiaéreos portáteis, que se
disparam do ombro, às milícias sírias; assim, os EUA conseguem manter ativa a
guerra por procuração que faz na Síria, como mantêm sempre alto o número de
sírios mortos. [4]
De
fato, o centro de atividade anti-Síria liderado pelos EUA mudou, das salas da
ONU em New York , para Doha, no
Qatar. Ali, no conforto de hotéis de luxo, houve uma reunião, no início de
novembro de 2012, para planejar a estratégia para obter mudança violenta de
regime e para ocultar a ação de milícias islamistas, armadas e violentas, da
al-Qaeda, na Síria. Ao final daquela conferência, amplamente divulgada pela
imprensa-empresa global dominante, foi anunciada a formação de um corpo
unificado para derrubar Assad, sob a denominação, muito pretensiosa, de
“Coalizão Nacional das Forças Revolucionárias Sírias de Oposição” [orig. National Coalition for Syrian
Revolutionary Opposition Forces]. Ao mesmo tempo, continuam a morrer civis
sírios, outros são arrancados de casa por explosões de suicidas-bombas e de
carros, explosões que, todas, levam a impressão digital da Frente Al-Nusra e da
al-Qaeda.
Hafez al-Assad |
Desde
a conferência de Doha a imprensa-empresa global tem sido inundada de noticiário
sobre os sucessos dos combatentes das milícias, que já teriam chegado aos
subúrbios da capital síria, Damasco. A BBC tem noticiado explosões também nos
subúrbios de Damasco, com alto número de vítimas; o responsável seria, sempre,
Bashar, pela fúria com que se recusaria a abandonar o poder. E, caso nenhum
desses atos de guerra e ações terroristas conseguir derrubar o governo sírio,
sempre algum novo pretexto está em produção, a favor de intervenção do tipo que
se viu na Líbia, também na Síria...
Dia 3/9/2012, vários gigantes da imprensa-empresa
mundial, o New York Times, a
rede CNN e outros grupos passaram a divulgar novos
relatos “de inteligência”, segundo os quais Bashar al Assad estaria planejando
usar armas químicas contra a oposição; na sequência, surgiram imediatamente
ameaças de retaliação, partidas do presidente Obama e de sua secretária de
Estado, Hillary Clinton. Dia 3/12. a BBC dos EUA até apimentou a narrativa:
disse aos telespectadores que Hafez al Assad [pai de Bashar] haveria, sim, usado
armas químicas contra a oposição; dia seguinte, teve de desmentir-se, quando,
afinal, surgiu informação correta sobre o tal “evento”. [5]
Análise
Os
EUA são a principal potência hoje engajada em guerra longa e caríssima contra a
al-Qaeda no Afeganistão. No contexto dessa guerra em curso, não parece razoável
que os mesmos EUA estejam hoje em colusão com a al-Qaeda na Líbia e na Síria.
Mas a guerra do Afeganistão tem de ser vista na perspectiva da política externa
geral dos EUA, nos termos em que evoluiu desde meados dos anos 1940s. No final
da IIa. Guerra Mundial, os EUA emergiram como superpotência que entendeu
oportuno lançar programa imperial mais ambicioso de dominar o mundo
politicamente e economicamente, política que imediatamente pôs os EUA em
contexto de intensa rivalidade com a segunda superpotência, a União Soviética.
Essa rivalidade produziu a Guerra Fria, cujas repercussões globais de longo
alcance são bem conhecidas hoje.
O
que não parece ser muito bem conhecido no ocidente é que, nos interstícios da
Guerra Fria, emergiu também outro obstáculo que se opunha às forças do
imperialismo, obstáculo regional, mas nem por isso insignificante ou
desimportante: o movimento conhecido como nacionalismo panárabe, que floresceu
nos anos 1950s e 60s.
Gamal Abdel Nasser |
O
nacionalismo panárabe foi dominado, no campo político, pela personalidade de
Gamal Abdel Nasser; e visava a unificar a vasta região do Oriente Médio e Norte
da África de língua árabe, que se estende do Mar da Arábia ao Oceano Atlântico –
povos que, além da língua comum, tem história, ancestrais e até religião comuns.
Em termos ideológicos, o nacionalismo panárabe foi secular e anti-imperialista,
com ênfase na modernização, no progresso, na igualdade social socialista e na
propriedade nacional dos recursos naturais da região, para que beneficiassem o
povo árabe. Além de Nasser do Egito, outros chefes de Estado também se
identificaram com o movimento, em graus diferentes; o projeto nacionalista
panárabe reuniu Ben Bella da Argélia; Houari Boumediene da Tunísia; Gaafar
Nimeiry do Sudão; Hafez al-Assad e Bashar al-Assad da Síria; Saddam Hussein do
Iraque; e Muammar Gaddafi da Líbia.
Para
todos os objetivos práticos, o movimento do nacionalismo panárabe dos anos 1950s
e 60s entrou em colapso, confrontado com a incansável oposição de grupos
islamistas, como a Fraternidade Muçulmana; e sob o impacto da devastadora Guerra
Israel-árabes de 1967.
Mas
a memória vestigial daquele movimento e o temor de que renasça sob uma ou outra
forma, por iniciativa e sob a liderança de uma geração de políticos árabes
cosmopolitas, mais jovens e mais letrados, continua a aterrorizar dois grandes
grupos: todos os islamistas que se reúnem no projeto guarda-chuva chamado
al-Qaeda; e o establishment nos EUA. Por isso, precisamente, os EUA e a
al-Qaeda, embora estejam em guerra no Afeganistão, consideram oportuno e
recomendável unirem-se e formarem gangue unificada – uma espécie de derradeira
trincheira, a partir da qual entendem que podem continuar a combater os inimigos
de ambos, que ainda haja na Líbia e na Síria.
_________________________
Notas
de rodapé
[*]
Epígrafe
acrescentada pelos tradutores, para explicar um título que inclui comentário/
citação ao qual estão habituados os leitores de inglês, mas não os leitores
brasileiros (NTs).
[1]
Zbigniew Brzezinski, entrevista a Le
Nouvel Observateur, 15-21/1/1998.
[2] Citado em The
Atlantic , 28/9/2012
[3] 2/2/2012, The
Huffington Post.
[4]
14/10/2012, The New York Times.
[5]
Sobre isso, ver 8/12/2012, Robert
Fisk, “Bashar al-Assad, Síria e a verdade sobre armas químicas” (em
português) [NTs].
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