11/12/2012, Murtaza Hussain,
Al-Jazeera
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Murtaza Hussain |
A incongruência
pareceu verdadeira traição. Depois de entrar, dançando, diretamente no coração
dos norte-americanos, e de ganhar acesso direto ao mais alto santuário do culto
às celebridades, o rapeiro coreano Psy, autor de “Gangam Style” – que
rapidamente se tornou o vídeo
mais assistido [1] de
toda a história do YouTube e fez do autor sensação da cultura pop da hora – foi
identificado como militante político muito ativo, em declarada oposição aos
principais pontos da visão de mundo norte-americana dominante, com ações em que
se opôs fortemente aos mais básicos artigos da fé
norte-americanista. [2].
O
homem acolhido como
performer nada ameaçador,
estrangeiro meio ridículo, quase cômico, dançando como cavalinho de brinquedo
para diversão dos norte-americanos, foi descoberto como o mesmo que, há poucos
anos, criticara furiosamente as políticas norte-americanas; a função global
daquelas políticas e o papel do EUA no mundo.
Numa
performance em 2004, o
rapper – hoje famoso por
sua dança “do cavalinho invisível”, denunciou os EUA em canção intitulada “Hey
American”:
"Kill those f*cking Yankees who have been torturing Iraqi
captives
[Matem
aqueles ianques fodidos que torturaram prisioneiros iraquianos]
Kill those f*cking Yankees who ordered them to torture
[Matem
aqueles ianques fodidos que os mandaram para a tortura]
Kill their daughters, mothers, daughters-in-law and
fathers
[Matem
as filhas deles, as mães deles, as enteadas deles e os pais]
Kill them all slowly and painfully”
[Matem
todos eles, lenta e dolorosamente].
Para
o público norte-americano condicionado a um culto inquestionável dos militares –
que se sintetiza na frase “Apóie os Soldados” [“Support the Troops”], os
versos de Psy são nada menos que sacrilégio. E “Hey American” não foi a única
ofensa.
Em
performance anterior, Psy subira ao palco para protestar contra a presença de 37
mil soldados dos EUA na Coréia do Sul, e destruiu uma miniatura de tanque
norte-americano, usando como porrete um suporte de microfone, para protestar
contra o assassinato de duas
meninas sul-coreanas [3], por
soldados norte-americanos.
Assim
se descobriu que o astro
pop asiático, que os
norte-americanos tão entusiasticamente (e tão rapidamente) consagraram – e que
seria, como houve quem dissesse, o primeiro
entertainer a franquear
com sucesso a fossa cultural que separa os continentes – carregava com ele, além
de um estilo culturalmente exclusivo de cantar e dançar, também toda uma visão
de mundo que é ameaçadoramente estranha à maioria dos norte-americanos.
Se
o aparentemente mais inócuo cantor
pop, oriundo de um país tido e havido como parceiro benigno e
confiável, esposa ideias e falas que qualquer norte-americano médio atribuiria
aos mais ameaçadores terroristas da
al-Qaeda, é preciso começar a perguntar sobre o antiamericanismo que já é
global, e sobre do que esse antiamericanismo se alimenta.
Um
legado de violência
Embora
a vastíssima maioria dos norte-americanos ignorem ou vivem como se ignorassem
completamente a longa história da brutalidade
dos norte-americanos [4] em
locais como a Coréia, essa história não é, de modo algum nem ignorada nem
apagada pelos cidadãos dos países que sofreram e continuam a sofrer atrocidades
horrendas nas mãos de soldados norte-americanos.
Durante
a Guerra da Coréia, acreditava-se que soldados norte-americanos teriam sido
responsáveis por centenas de casos de massacres
em massa de civis [5],
dentre os quais o infame massacre de No Gun
Ri,[6]
quando membros do 7º Regimento de Cavalaria dos EUA massacraram centenas de
civis coreanos numa passagem ferroviária, durante três dias.
Um
filme documentário de 2009, sobre o massacre, registra as palavras de um
sobrevivente coreano, que relembra como os soldados norte-americanos mataram
indiscriminadamente homens, mulheres e crianças:
“As
crianças gritavam de medo e os adultos suplicavam pela própria vida. E eles
nunca paravam de atirar”.
Outro
sobrevivente da Guerra da Coréia fala da tática sempre utilizada pelos
norte-americanos, de atacar
as vilas com bombas de napalm, [7] em
campanha de terra arrasada que matou número incontável de civis:
“Quando
o napalm atingiu nossa vila, a maioria ainda dormia (...). Os que sobreviveram
aos incêndios, corriam (...). Tentávamos mostrar aos pilotos norte-americanos
que éramos civis. Mas eles matavam sem nem olhar, qualquer um, mulheres,
crianças”.
A
completa indiferença pela vida dos coreanos durante a campanha global dos EUA
contra o comunismo continua até nossos dias, sob
a forma de estupro e assassinato, [8]
dirigida contra civis coreanos por soldados norte-americanos alocados nas bases
distribuídas pelo país.
Em
incidente em 2011, caso típico de uma longa prática fartamente documentada dos
soldados norte-americanos no país, um soldado de 21 anos, Kevin Flippin, invadiu o quarto de
hotel onde estava hospedada uma mulher coreana e violentou-a e
torturou-a por várias horas, [9] antes
de roubar-lhe o equivalente a apenas 5 dólares e voltar à base.
Assassinato
e violência sexual têm acontecido com alta frequência ao longo das décadas de
presença militar dos EUA na Coréia, e refletem
comportamento que se constata [10]
também em incontáveis outros países, em todo o mundo, onde há ocupação militar e
bases militares dos EUA.
Rejeição
disseminada contra os EUA
Apesar
de o virulento antiamericanismo que se vislumbra nas revelações sobre a história
da militância política de Psy ter base em incidentes como esses, a Coréia
absolutamente não é o país mais antiamericano do mundo.
Pesquisas
realizadas na América Latina têm mostrado a presença,
também ali, de claro antiamericanismo; [11] um
legado do intervencionismo militar norte-americano no continente, bem vivamente
manifesto sob a forma
de tortura e assassinatos [12] além
da subversão e derrubada de regimes e governantes
democraticamente eleitos [13] ao
longo de muitas da últimas décadas.
Mas,
apesar dessas evidências, pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto
de Pesquisas Pew [14] [No
Brasil, segundo essa pesquisa, 61% da população manifesta opinião favorável aos EUA (NTs)] mostrou
que é no mundo árabe e no mundo muçulmano onde se encontram as impressões menos
favoráveis aos EUA; essas visões negativas foram sensivelmente atenuadas, por
curto período, imediatamente depois da primeira eleição de Barack Obama; mas,
hoje, já estão novamente ativas, no sentido mais negativo possível, nos níveis
que havia na era Bush, quando os índices
de rejeição aos norte-americanos explodiram. [15]
Dentre
todos os países pesquisados, os países nos quais se manifesta mais alta
incidência de antiamericanismo são os de população majoritariamente muçulmana.
Mesmo na Turquia e na Jordânia, cujos governos são aliados tradicionais dos EUA,
as populações são predominantemente antiamericanas: na Jordânia, apenas 12% da
população manifestou opinião favorável aos EUA.
Não
por acaso, a Jordânia é, também, país onde vive grande população de refugiados da
invasão dos EUA ao Iraque [16],
vítimas civis de uma guerra que já não preocupa os cidadãos dos EUA, mas que
ainda é causa de desespero e miséria em muitos países em todo o Oriente Médio.
Apesar
da quantidade inacreditável de pesquisa que resultou em várias
complexas teorias [17] para
explicar o desprezo que os EUA inspiram a tantos, o princípio da “Navalha de
Ocam” – princípio lógico que determina que a explicação mais simples é quase
sempre a mais acertada – sugere que a causa da antipatia crescente é o
militarismo norte-americano que deixou pegadas muito fundas na Coréia e que,
hoje, devasta o mundo muçulmano.
No
Paquistão, onde apenas 9% da população manifestou opinião favorável aos EUA,
segundo pesquisa feita pela BBC em 2010,
[18]
houve
vibrante simpatia pelos EUA, em tempos em que Jacqueline
Kennedy
era recebida por multidões em festa e guirlandas de flores pelas ruas,
em visita oficial que fez ao país;[19]e onde
a cultura pop
norte-americana foi muito ativamente difundida.[20]
Mas
tudo isso mudou nas décadas recentes. O que os paquistaneses veem hoje é o custo
descomunal da guerra, em termos de vidas ceifadas no vizinho Afeganistão e milhões
de refugiados [21] que o
conflito faz jorrar sobre o Paquistão.
Os
próprios paquistaneses já se veem, cada dia mais, como alvo
direto da violência dos EUA; são mortos a tiros nas ruas, [22] por
agentes da CIA; são assassinados por aviões-robôs,
os drones, operados à distância
[23] e são
sequestrados e entregues para serem torturados em “buracos negros” clandestinos
da CIA [24]
espalhados pelo mundo.
Ao
fazer guerra massiva contra o Afeganistão e ao ocupar o país, o que
desestabilizou e gerou caos social no Paquistão, país cuja população tem
profundos laços étnicos e religiosos com o Afeganistão, os EUA contribuíram para
converter um relacionamento estável em confronto cada dia mais perigoso, que incendiou os
mais ferozes sentimentos antiamericanos, inclusive, hoje, também entre
os paquistaneses liberais e seculares. [25]
A
degeneração da popularidade dos EUA no Paquistão, contudo, é só uma ilustração
de tendência muito mais ampla, de percepção geral extremamente negativa contra
os EUA, em vasta região do planeta, reforçada pelo militarismo rampante.
Arrogância
e atrocidade
A
população dos EUA, que ouve incansavelmente a propaganda interna que promove a
versão segundo a qual o país teria papel benevolente no mundo, talvez se
surpreenda com a informação de que mais da metade de todos os refugiados que há
hoje no planeta fogem,
em 2012-3, de guerras feitas pelos EUA.[26]
A
guerra em escala rampante, guerra em ritmo industrial, que os EUA movem contra
civis em países como o Iraque, o Afeganistão, o Paquistão, o Iêmen e a Somália
gerou nesses países, como consequência imediata, uma onda de sentimentos
negativos, ainda ignorados por grande parte dos norte-americanos.
Episódios
como o estupro
de uma menina iraquiana de 14 anos, seguido do assassinato de toda a família,
por uma gangue de soldados norte-americanos [27] são
atos emblemáticos do sadismo sempre presente nos contatos entre militares e
policiais norte-americanos e os povos locais. Mas, num espécie de comédia
bizarra de humor negro, os políticos eleitos nos EUA ainda falam sobre “a
ingratidão” [28] das
populações locais, contra as quais as tropas dos EUA atiçam todos os cães da
violência e do horror.
Parece
haver aí, além de ignorância e do egoísmo mais cego, que se manifestam nas
políticas principais dos governos dos EUA, também uma espécie de miopia. Ao
mesmo tempo em que os EUA
lançam guerra total, invadem e ocupam nações soberanas empurrados pelos
mais falsos pretextos [29], assassinam
centenas de milhares de civis [30] e
geram milhões
de refugiados,[31] ainda
há, nos EUA, quem pergunte “Por que nos odeiam tanto?”.
Ao
mesmo tempo em que militares norte-americanos – que a opinião pública nos EUA é
adestrada para ver como heróis inquestionáveis e como orgulhosos símbolos do
melhor que a sociedade norte-americana produz – descobrem em inventam novos
modos de impor violência sempre crescente contra civis em países árabes e
muçulmanos – incluídos aí os ilegais “assassinatos
de alvos predefinidos”[32]
e,
como se viu recentemente, também o assassinato
de “crianças hostis” [33] no
Afeganistão, a reputação dos EUA, como país, despenca em todas as pesquisas de
opinião pública que se façam no Oriente Médio e por todo o mundo.
O
Afeganistão é exemplo ilustrativo da arrogância essencialmente autodestrutiva
das políticas norte-americanas na região. Em 2001, os EUA recusaram-se
categoricamente a negociar
com os Talibã [34] que
haviam manifestado desejo de cooperar para que os EUA alcançassem todos os seus
objetivos; ofereceram-se, inclusive, para entregar Osama bin Laden aos
norte-americanos. Os EUA recusaram a oferta, sob o argumento puramente retórico
segundo o qual os EUA recusar-se-iam a “negociar com o mal”.
Avance
o filme para hoje, 11 anos adiante daquele momento. Hoje, depois de dezenas de
milhares de mortos e trilhões de dólares desperdiçados, os EUA estão fazendo
exatamente isso: estão
negociando com os Talibã, exatamente como já poderiam ter feito há uma
década [35] – não
fossem as políticas de Estado flagrantemente irracionais, construídas por uma
mistura de arrogância e sede de sangue.
Se
se vê a autoproclamada potência global dominante agir como age, de modo
chocantemente estúpido e destrutivo, e ainda surpreender-se por tantos
manifestarem tão firme rejeição ao país e suas políticas, a conclusão é clara:
os EUA cultivam uma consciência nacional delirante, que compromete gravemente
qualquer projeto que o país ainda cultive de vir, algum dia, a conseguir operar
com sucesso qualquer política exterior efetiva.
Relação
cada dia mais envenenada
Mesmo
dentro dos mundos árabe e muçulmano, como além deles, para os que admiram
valores apresentados como se fossem norte-americanos, como o secularismo, o
direito à livre manifestação de ideias e o direito ao livre empreendimento, a
década que passou, de violência sem contenção ou limites, já comprometeu
permanentemente a reputação de uma nação que, antes, gozou da mais
alta estima entre as elites sociais. [36]
As
políticas norte-americanas para o Oriente Médio já são vistas pelas massas e,
também, cada vez mais, por porções consideráveis das elites locais, como
manifestação de visão de mundo cruel, arrogante
e fundamentalmente racista, [37]
segundo a qual as populações-alvo de agressão e guerras são consideradas
inferiores, gente cujo sofrimento não passa de externalidade desprezível, se se
consideram os objetivos das políticas de implantação do poder.
O
tipo de brutalidade que os norte-americanos impuseram à Coréia, há décadas,
ainda se manifesta num veio de fúria subterrânea que, volta e meia, aflora nos
discursos sociais de muitos coreanos. Se se considera essa evidência, vale a
pena perguntar quanto tempo ainda falta, até que se disperse a percepção
negativa a respeito dos EUA que se vê hoje no mundo muçulmano.
Enquanto
perdurar em toda a Região o militarismo norte-americano sem contenção ou
limites, a percepção negativa sobre os EUA só aumentará; e o sentimento de
antiamericanismo continuará a crescer, minando a capacidade dos EUA para
encontrar os aliados que tanto lhes faltam nessa parte tão estrategicamente
importante do mundo.
Nada
muda, ainda que todas as provas que saltam aos olhos de tantos em todo o mundo
sejam sublimadas ou “apagadas” em nome de algum pragmatismo. Nem por isso as
provas somem. Quando tiverem de escrever a própria história, os EUA terão de
enfrentar o legado do desprezo global, da desconfiança, do ressentimento, frutos
amargos do tempo em que o país tanto fez para se autopromover como única
superpotência mundial.
Façam o que fizerem, a história dos EUA não poupará a
imagem fictícia que tantos americanos ainda cultivam deles mesmos e de seu
país.
REFERÊNCIAS
[1] http://news.yahoo.com/blogs/sideshow/gangnam-style-most-viewed-youtube-video-time-134533498.html
[2] http://newsfeed.time.com/2012/12/08/gangnam-rile-psys-past-anti-american-performances-stir-controversy/
[8] http://latimesblogs.latimes.com/world_now/2011/10/us-military-south-korea-status-of-forces-agreement-sofa-rapes-intenational-diplomacy.html
[9] http://www.nytimes.com/2011/11/02/world/asia/american-soldier-sentenced-for-raping-a-south-korean-woman.html
[20] http://www.npr.org/blogs/pictureshow/2012/08/20/159338659/picturing-pakistans-past-the-beatles-booze-and-bikinis
[21] http://www.opendemocracy.net/opensecurity/zahid-shahab-ahmed/future-of-afghan-refugees-in-pakistan
[22] http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/asia/pakistan/8295780/Raymond-Davis-incident-What-sort-of-diplomat-carries-a-loaded-gun.html
[26] http://thinkprogress.org/security/2011/06/24/253135/half-of-worlds-refugees-are-running-from-u-s-wars/?mobile=nc
[27] http://www.thestar.com/opinion/editorialopinion/article/910678--mallick-remembering-a-very-good-iraqi-girl
[29] http://www.theatlanticwire.com/global/2012/07/bush-administrations-worst-excuses-invading-iraq/54800/
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