16/1/2013, Robert
Parry, Information Clearing
House
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Robert Parry |
A
verdadeira luta que se trava nos EUA não põe em confronto a Direita e a
Esquerda em qualquer sentido tradicional, mas os que acreditam na realidade e os
que foram sequestrados pela irrealidade. É batalha em que se testa a
determinação, de um lado, dos que pensam baseados em fatos; de outro, dos que
operam num universo sem fatos e defendem as próprias fantasias.
Essas
linhas de combate mantêm alguma relação com a divisão Esquerda/Direita, porque a
Direita norte-americana, hoje, abraçou como se fosse fato e verdade o que não
passa de ideologia e propaganda, e abraçou as próprias crenças mais
completamente e mais agressivamente que a Esquerda. Não implica dizer que a
Esquerda e o Centro sejam completamente imunes à prática de ignorar os fatos, em
busca de encaminhamento eficaz de alguma agit-prop.
Mas
os elementos chaves da Direita norte-americana estão muito firmemente fixados no
mundo de faz-de-conta, o que torna quase impossível qualquer abordagem racional,
de senso comum, que considere o mundo real, no mundo político. Os delirantes de
Direita também são imbuídos da paixão dos verdadeiros crentes, como um culto que
se vai tornando mais feroz, quanto mais se questionam suas crenças.
Assim
sendo, não importa os milhões de provas de que o aquecimento global é fenômeno
real e verificado; os negadores nunca se cansarão de repetir que não passam de
novas mentiras e conspirações do governo para impor sua “tirania”. Não importa
quantas criancinhas de jardim de infância sejam mortas a tiros de rifles
semiautomáticos de assalto – nem qual seja a verdadeira história da Segunda
Emenda. (...)
Barack Obama |
Em
questões menores, não importa que o presidente Obama tenha exibido sua Certidão
de Nascimento: alguma coisa deve ter sido falsificada no estado do Havaí, para
ocultar o nascimento no Quênia. Ah, sim, e Obama é “vagabundo”, por mais que
observadores muito próximos e objetivos falem dele como "workaholic capaz
de fazer bem várias tarefas ao mesmo tempo”.
O
distanciamento entre a Direita americana coletivamente considerada e a realidade
começou há décadas, mas foi fortemente acelerado quando o ex-ator Ronald Reagan
entrou em cena no palco nacional. Até seus admiradores reconhecem que Reagan
mantinha conturbadas relações com os fatos; sempre preferiu ilustrar seus
argumentos com historietas e citações apócrifas, quase sempre distorcidas.
Ronald Reagan |
O
abismo que, em Reagan, separava fatos e realidade ia da política externa à
economia. Seu concorrente na disputa pela indicação dos Republicanos à
presidência em 1980, George H.W. Bush, chamou as políticas de Regan que visavam
a fortalecer a oferta – cortes massivos de impostos para os mais ricos, o que,
por hipótese, faria aumentar os salários – de “economia vudu”.
Mas
Bush adiante reconsiderou e rendeu-se ao feitiço de Reagan, quando aceitou o
lugar de vice-presidente em sua chapa. Bush-pai
tornar-se-ia assim modelo que outros seguiriam dentro do Establishment,
todos pragmaticamente rendidos ao descaso e à desconsideração que Reagan
dedicava aos fatos e ao mundo real.
Gestão
das percepções
O
governo Reagan também erigiu em torno do presidente uma infraestrutura de
propaganda que sistematicamente castigava políticos, cidadãos, jornalistas,
qualquer um que se atravesse a desmentir as fantasias presidenciais. Essa
estreita rede de colaboração público-privada – pela qual se coordenavam as ações
da imprensa-empresa de direita com os especialistas governamentais em
desinformação – trouxe para dentro de casa, nos EUA, a estratégia da CIA
conhecida como “gestão das percepções”, normalmente orientada para manobras
entre populações hostis.
Mediante
operações de “gestão de percepções”, os Contra da Nicarágua, que na
realidade jamais deixaram de ser terroristas com conexões com o tráfico de
drogas e que varriam o interior da Nicarágua, assassinando, torturando e
estuprando, foram convertidos em “equivalente moral” dos Pais Fundadores dos
EUA. Discordar ou criticar ou desmascarar a “conversão” estigmatizava qualquer
um como perigoso agitador que tinha de ser “controversializado”
[orig.“controversialized”] e marginalizado.
O notável
sucesso da propaganda reaganista foi
lição bem aprendida por uma jovem geração de operadores Republicanos e de
neoconservadores que começavam a surgir e que, então, estavam empregados nos
postos-chave da política para a América Central e em operações de “diplomacia
pública” de Reagan (como, dentre outros assemelhados, Elliott Abrams e Robert
Kagan). A devoção dos neoconservadores ao imperialismo global serviu bem como
motivo-pretexto para agir contra a realidade no plano interno. Nenhum fato
interessa; só resultados contam [Ver Lost
History, Robert Parry]
Mas
essa estratégia jamais teria funcionado sem a contribuição de legiões de
direitistas manipuláveis que foram manipulados por séries infindáveis de falsas
narrativas. Os politicamente pró-Republicanos manipularam o ressentimento
racista dos neo-Confederados, o fervor religioso de cristãos fundamentalistas e
o culto heróico do livre mercado dos apóstolos e fiéis que seguem Ayn Rand.
Que
essas técnicas de “gestão de percepções” tenham sido tão bem-sucedidas num
sistema político que garantia a liberdade de manifestação e de imprensa não foi
prova, apenas, da competência dos operadores da propaganda dos Republicanos,
gente como Lee Atwater e Karl Rove. Foi e ainda é prova, também, de que o
Centro, nos EUA é tímido e assustadiço. E de que a Esquerda é inútil, como
operadora, dentro da realidade. Dito em termos simples, a Direita combateu com
mais fervor e mais empenho na defesa de suas fantasias e crenças, do que o resto
dos EUA combatemos na defesa do mundo real.
Propaganda pró-contras! |
Houve
vários pontos de virada nessa “infoguerra”. Por exemplo, o relacionamento
secreto entre Reagan e os mulás iranianos, que foi parcialmente revelado no
escândalo “Irã-Contras”. Mas as origens, visíveis na atividade dos
Republicanos durante a campanha de 1980 – os quais fizeram contato com o Irã,
pelas costas do presidente Jimmy Carter – foram varridas para baixo do tapete
por Democratas hegemônicos e pela corporação “de mídia” de Washington.
Assim
também, provas de que os Contra faziam tráfico de drogas – e, inclusive,
declarações em que a
CIA admite ter trabalhado para acobertar aqueles crimes –
desapareceram das páginas dos grandes jornais, entre os quais o Washington
Post e o New York Times. Assim também, o trabalho das comissões da
verdade em quase toda a América Central, que expuseram as violações massivas de
direitos humanos que Reagan aprovou e ajudou a cometer.
O
medo de atacar fortemente e com determinação a máquina de propaganda de Reagan
era tão grande que praticamente todos optaram por só considerar ou o futuro das
próprias carreiras ou os próprios prazeres pessoais. Um lado orientou-se para a
guerra política; o outro, não raras vezes, concentraram-se em viagens aos
paraísos vinícolas.
À
medida que o fantasismo, o irrealismo
e o apagamento dos fatos foram-se aprofundando ao longo das décadas, as camadas
mais lúcidas e letradas do povo dos EUA passou a descrer, até descrer
completamente, de jornais e jornalistas da imprensa-empresa dominante.
As
próprias expressões “mídia dominante” ou “imprensa-empresa dominante”
converteram-se em expressões de desprezo e de desqualificação – bem merecidos,
dado que a tal imprensa-empresa dominante nada fazia para encontrar e distribuir
informação verdadeira [trabalho sem o
qual a imprensa-empresa nada é além de empresa como qualquer outra, sem direito
a nenhum privilégio e, sim, bem merecedora de rédeas e freios (NTs)].
Os
Democratas nacionais tampouco manifestaram grande interesse por estabelecer e
divulgar fatos verdadeiros, nem pela correspondente luta pela verdade. Quando
havia provas disponíveis de crimes cometidos por Republicanos – como nas
investigações, no início dos anos 1990s, no caso Irã-Contras, no caso
Iraque-gate e no caso Surpresa de Outubro – os Democratas trataram logo
de acomodar as coisas. Democratas acomodatícios, como o deputado Lee Hamilton e
o senador David Boren preferiram olhar para o outro lado.
Al Gore |
Os
Democratas submeteram-se, de vez, quando a Direita e os Republicanos roubaram as
eleições de 2000, quando os eleitores votaram para um lado, e a Suprema Corte
votou para outro e elegeu George W. Bush na Flórida, o que lhe deu a Casa
Branca, roubada de Al Gore.
Ao
longo das décadas depois da guerra do Vietnã, a Esquerda norte-americana também
andou célere rumo à irrelevância. De fato, ouve-se até em alguns círculos da
Esquerda que “os EUA não têm Esquerda”. Mas o que sobrou da Esquerda não raras
vezes agiu como fanáticos escabelados, no processo de exigir aos berros
“purezas” imaculadas, sobreumanas, jogando num mesmo saco de degola tanto os
bandidos que faziam coisas terríveis como os quase-bons que fizessem o
quase-impossível, o melhor possível, sob condições de fato impossíveis.
Esses
EUA pós-modernos parecem ter atingido o fundo do poço na presidência de George
W. Bush. Em 2002-03, circularam notícias sobre armas de destruição em massa que
haveria no Iraque. Eram notícias que logo se comprovaram falsas. Mas já
praticamente não havia ninguém, pessoa ou grupo, em posição de poder para, ou
com coragem suficiente para declarar mentiras as mentiras. Enganada, fraudada
por Bush e os neoconservadores – com a ajuda dos centristas e dos
jornalistas-editores do Washington Post – a nação atirou-se numa furiosa
guerra de agressão.
George W. Bush |
Vez
ou outra, a Direita manifesta abertamente o desprezo que sente pelos fatos da
realidade. Quando o escritor Ron Suskind entrevistou membros do governo Bush em
2004, recolheu inúmeros depoimentos carregados do mais profundo desprezo por
quem se recusasse a ajustar-se ao neomundo dos neocrentes da neofé.
Citando
fonte não identificada, alto assessor de George W. Bush, Suskind escreveu:
“O
assessor disse que gente como eu não passa do que “nós chamamos de comunidade
dos dependentes da realidade”, que o entrevistado definiu como “gente que crê
que as soluções brotem de estudo atento da realidade circundante”. E o tal
assessor continuou: “O mundo já não funciona assim. Os EUA agora somos um
império. Quando agimos, criamos nossa própria realidade. E enquanto você estuda
essa realidade – e estude muito atentamente, se quiser –, agiremos novamente
criando novas realidades, que você também pode estudar o quanto quiser. E as
coisas serão assim, daqui por diante. Somos atores da história (...). Você,
todos vocês, ficarão para trás, para estudar o que fazemos”.
A
realidade volta e morde
Apesar
dessa imperial arrogância, a realidade, aos poucos, volta e mostra seus poderes,
seja no pântano de sangue sem solução à vista em que está convertido o Iraque,
seja nas crises econômicas que as políticas antirregulação e de baixos impostos
geraram nos EUA contra os próprios norte-americanos. Nas eleições de 2008, o
povo americano estava acordando com terrível ressaca, de uma farra-orgia
antirrealidade que durara 30 anos.
Nesse
sentido, a eleição de Barack Obama foi, potencialmente, um ponto de virada. Mas
a Direita furiosa que Ronald Reagan construíra – com efeitos debilitantes,
paralisantes também no Centro e na Esquerda – teimou em não desaparecer.
A
Direita contra-atacou ferozmente, contra o primeiro presidente negro dos EUA,
ameaçando revolução violenta se Obama agisse logo no primeiro mandato eleitoral;
Obama várias vezes agiu como um daqueles Democratas acomodatícios (por exemplo,
quando não demitiu grande parte da equipe de segurança nacional de Bush); a
imprensa-empresa dominante manteve-se oportunista-carreirista; e a Esquerda
pôs-se a exigir perfeições perfeitíssimas nas situações de mais extrema
dificuldade política.
Tea Party no Capitólio |
Essa
combinação de grupos disfuncionais contribuiu para o crescimento do Tea Party e para as vitórias dos
Republicanos no Congresso em 2010. Mas a eleição de 2012, com Obama reeleito e
rejeição ampla, geral e irrestrita ao fanatismo do Tea Party, criou a oportunidade para que
os que pensam nos EUA se recompusessem.
Afinal,
os EUA continuam a ver as consequências de três décadas de fantasias direitistas
– alto desemprego; déficits massivos; crises financeiras autoinfligidas; classe
média degradada; nada de saúde pública, nem qualquer assistência pública à saúde
para milhões de cidadãos; infraestrutura em ruínas; planeta em franco
aquecimento; guerras cada vez mais caras em terras cada vez mais distantes; o
orçamento do Pentágono manchado de sangue; e crianças assassinadas por um
adolescente perturbado, que nada e ninguém impediu que pusesse as mãos em rifles
semiautomáticos de assalto carregados.
Mas,
se se espera que soluções racionais e pragmáticas sejam algum dia aplicadas aos
nossos problemas, não bastará que se exija apenas mais espinha dorsal do
presidente Obama. O país precisa de que os norte-americanos que ainda habitem o
mundo real levantem-se e lutem, no mínimo com a mesma determinação com que lutam
os doidos que habitam o mundo do faz-de-conta.
Claro
que será luta feia e desagradável. Exigirá recursos, paciência, firmeza. Mas não
há outra resposta possível. Temos de recuperar e preservar a realidade – se
ainda queremos salvar o planeta e as crianças dos jardins de infância dos
EUA.
Nota dos
tradutores
[1] No orig. Distrusting the MSM (mainstream media)
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