quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Nos EUA, guerra contra a realidade


16/1/2013, Robert Parry, Information Clearing House
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Robert Parry
A verdadeira luta que se trava nos EUA não põe em confronto a Direita e a Esquerda em qualquer sentido tradicional, mas os que acreditam na realidade e os que foram sequestrados pela irrealidade. É batalha em que se testa a determinação, de um lado, dos que pensam baseados em fatos; de outro, dos que operam num universo sem fatos e defendem as próprias fantasias.

Essas linhas de combate mantêm alguma relação com a divisão Esquerda/Direita, porque a Direita norte-americana, hoje, abraçou como se fosse fato e verdade o que não passa de ideologia e propaganda, e abraçou as próprias crenças mais completamente e mais agressivamente que a Esquerda. Não implica dizer que a Esquerda e o Centro sejam completamente imunes à prática de ignorar os fatos, em busca de encaminhamento eficaz de alguma agit-prop.

Mas os elementos chaves da Direita norte-americana estão muito firmemente fixados no mundo de faz-de-conta, o que torna quase impossível qualquer abordagem racional, de senso comum, que considere o mundo real, no mundo político. Os delirantes de Direita também são imbuídos da paixão dos verdadeiros crentes, como um culto que se vai tornando mais feroz, quanto mais se questionam suas crenças.

Assim sendo, não importa os milhões de provas de que o aquecimento global é fenômeno real e verificado; os negadores nunca se cansarão de repetir que não passam de novas mentiras e conspirações do governo para impor sua “tirania”. Não importa quantas criancinhas de jardim de infância sejam mortas a tiros de rifles semiautomáticos de assalto – nem qual seja a verdadeira história da Segunda Emenda. (...)

Barack Obama
Em questões menores, não importa que o presidente Obama tenha exibido sua Certidão de Nascimento: alguma coisa deve ter sido falsificada no estado do Havaí, para ocultar o nascimento no Quênia. Ah, sim, e Obama é “vagabundo”, por mais que observadores muito próximos e objetivos falem dele como "workaholic capaz de fazer bem várias tarefas ao mesmo tempo”.

O distanciamento entre a Direita americana coletivamente considerada e a realidade começou há décadas, mas foi fortemente acelerado quando o ex-ator Ronald Reagan entrou em cena no palco nacional. Até seus admiradores reconhecem que Reagan mantinha conturbadas relações com os fatos; sempre preferiu ilustrar seus argumentos com historietas e citações apócrifas, quase sempre distorcidas.

Ronald Reagan
O abismo que, em Reagan, separava fatos e realidade ia da política externa à economia. Seu concorrente na disputa pela indicação dos Republicanos à presidência em 1980, George H.W. Bush, chamou as políticas de Regan que visavam a fortalecer a oferta – cortes massivos de impostos para os mais ricos, o que, por hipótese, faria aumentar os salários – de “economia vudu”.

Mas Bush adiante reconsiderou e rendeu-se ao feitiço de Reagan, quando aceitou o lugar de vice-presidente em sua chapa. Bush-pai tornar-se-ia assim modelo que outros seguiriam dentro do Establishment, todos pragmaticamente rendidos ao descaso e à desconsideração que Reagan dedicava aos fatos e ao mundo real.

Gestão das percepções

O governo Reagan também erigiu em torno do presidente uma infraestrutura de propaganda que sistematicamente castigava políticos, cidadãos, jornalistas, qualquer um que se atravesse a desmentir as fantasias presidenciais. Essa estreita rede de colaboração público-privada – pela qual se coordenavam as ações da imprensa-empresa de direita com os especialistas governamentais em desinformação – trouxe para dentro de casa, nos EUA, a estratégia da CIA conhecida como “gestão das percepções”, normalmente orientada para manobras entre populações hostis.

Mediante operações de “gestão de percepções”, os Contra da Nicarágua, que na realidade jamais deixaram de ser terroristas com conexões com o tráfico de drogas e que varriam o interior da Nicarágua, assassinando, torturando e estuprando, foram convertidos em “equivalente moral” dos Pais Fundadores dos EUA. Discordar ou criticar ou desmascarar a “conversão” estigmatizava qualquer um como perigoso agitador que tinha de ser “controversializado” [orig.“controversialized”] e marginalizado.

O notável sucesso da propaganda reaganista foi lição bem aprendida por uma jovem geração de operadores Republicanos e de neoconservadores que começavam a surgir e que, então, estavam empregados nos postos-chave da política para a América Central e em operações de “diplomacia pública” de Reagan (como, dentre outros assemelhados, Elliott Abrams e Robert Kagan). A devoção dos neoconservadores ao imperialismo global serviu bem como motivo-pretexto para agir contra a realidade no plano interno. Nenhum fato interessa; só resultados contam [Ver Lost History, Robert Parry]  
Mas essa estratégia jamais teria funcionado sem a contribuição de legiões de direitistas manipuláveis que foram manipulados por séries infindáveis de falsas narrativas. Os politicamente pró-Republicanos manipularam o ressentimento racista dos neo-Confederados, o fervor religioso de cristãos fundamentalistas e o culto heróico do livre mercado dos apóstolos e fiéis que seguem Ayn Rand.

Que essas técnicas de “gestão de percepções” tenham sido tão bem-sucedidas num sistema político que garantia a liberdade de manifestação e de imprensa não foi prova, apenas, da competência dos operadores da propaganda dos Republicanos, gente como Lee Atwater e Karl Rove. Foi e ainda é prova, também, de que o Centro, nos EUA é tímido e assustadiço. E de que a Esquerda é inútil, como operadora, dentro da realidade. Dito em termos simples, a Direita combateu com mais fervor e mais empenho na defesa de suas fantasias e crenças, do que o resto dos EUA combatemos na defesa do mundo real.

Propaganda pró-contras! 
Houve vários pontos de virada nessa “infoguerra”. Por exemplo, o relacionamento secreto entre Reagan e os mulás iranianos, que foi parcialmente revelado no escândalo “Irã-Contras”. Mas as origens, visíveis na atividade dos Republicanos durante a campanha de 1980 – os quais fizeram contato com o Irã, pelas costas do presidente Jimmy Carter – foram varridas para baixo do tapete por Democratas hegemônicos e pela corporação “de mídia” de Washington.

Assim também, provas de que os Contra faziam tráfico de drogas – e, inclusive, declarações em que a CIA admite ter trabalhado para acobertar aqueles crimes – desapareceram das páginas dos grandes jornais, entre os quais o Washington Post e o New York Times. Assim também, o trabalho das comissões da verdade em quase toda a América Central, que expuseram as violações massivas de direitos humanos que Reagan aprovou e ajudou a cometer.

O medo de atacar fortemente e com determinação a máquina de propaganda de Reagan era tão grande que praticamente todos optaram por só considerar ou o futuro das próprias carreiras ou os próprios prazeres pessoais. Um lado orientou-se para a guerra política; o outro, não raras vezes, concentraram-se em viagens aos paraísos vinícolas.

Descrer de jornais e jornalistas da imprensa-empresa dominante [1]  

À medida que o fantasismo, o irrealismo e o apagamento dos fatos foram-se aprofundando ao longo das décadas, as camadas mais lúcidas e letradas do povo dos EUA passou a descrer, até descrer completamente, de jornais e jornalistas da imprensa-empresa dominante.

As próprias expressões “mídia dominante” ou “imprensa-empresa dominante” converteram-se em expressões de desprezo e de desqualificação – bem merecidos, dado que a tal imprensa-empresa dominante nada fazia para encontrar e distribuir informação verdadeira [trabalho sem o qual a imprensa-empresa nada é além de empresa como qualquer outra, sem direito a nenhum privilégio e, sim, bem merecedora de rédeas e freios (NTs)].

Os Democratas nacionais tampouco manifestaram grande interesse por estabelecer e divulgar fatos verdadeiros, nem pela correspondente luta pela verdade. Quando havia provas disponíveis de crimes cometidos por Republicanos – como nas investigações, no início dos anos 1990s, no caso Irã-Contras, no caso Iraque-gate e no caso Surpresa de Outubro – os Democratas trataram logo de acomodar as coisas. Democratas acomodatícios, como o deputado Lee Hamilton e o senador David Boren preferiram olhar para o outro lado.

Al Gore
Os Democratas submeteram-se, de vez, quando a Direita e os Republicanos roubaram as eleições de 2000, quando os eleitores votaram para um lado, e a Suprema Corte votou para outro e elegeu George W. Bush na Flórida, o que lhe deu a Casa Branca, roubada de Al Gore.

Ao longo das décadas depois da guerra do Vietnã, a Esquerda norte-americana também andou célere rumo à irrelevância. De fato, ouve-se até em alguns círculos da Esquerda que “os EUA não têm Esquerda”. Mas o que sobrou da Esquerda não raras vezes agiu como fanáticos escabelados, no processo de exigir aos berros “purezas” imaculadas, sobreumanas, jogando num mesmo saco de degola tanto os bandidos que faziam coisas terríveis como os quase-bons que fizessem o quase-impossível, o melhor possível, sob condições de fato impossíveis.

Esses EUA pós-modernos parecem ter atingido o fundo do poço na presidência de George W. Bush. Em 2002-03, circularam notícias sobre armas de destruição em massa que haveria no Iraque. Eram notícias que logo se comprovaram falsas. Mas já praticamente não havia ninguém, pessoa ou grupo, em posição de poder para, ou com coragem suficiente para declarar mentiras as mentiras. Enganada, fraudada por Bush e os neoconservadores – com a ajuda dos centristas e dos jornalistas-editores do Washington Post – a nação atirou-se numa furiosa guerra de agressão.

George W. Bush
Vez ou outra, a Direita manifesta abertamente o desprezo que sente pelos fatos da realidade. Quando o escritor Ron Suskind entrevistou membros do governo Bush em 2004, recolheu inúmeros depoimentos carregados do mais profundo desprezo por quem se recusasse a ajustar-se ao neomundo dos neocrentes da neofé.

Citando fonte não identificada, alto assessor de George W. Bush, Suskind escreveu:

“O assessor disse que gente como eu não passa do que “nós chamamos de comunidade dos dependentes da realidade”, que o entrevistado definiu como “gente que crê que as soluções brotem de estudo atento da realidade circundante”. E o tal assessor continuou: “O mundo já não funciona assim. Os EUA agora somos um império. Quando agimos, criamos nossa própria realidade. E enquanto você estuda essa realidade – e estude muito atentamente, se quiser –, agiremos novamente criando novas realidades, que você também pode estudar o quanto quiser. E as coisas serão assim, daqui por diante. Somos atores da história (...). Você, todos vocês, ficarão para trás, para estudar o que fazemos”.

A realidade volta e morde

Apesar dessa imperial arrogância, a realidade, aos poucos, volta e mostra seus poderes, seja no pântano de sangue sem solução à vista em que está convertido o Iraque, seja nas crises econômicas que as políticas antirregulação e de baixos impostos geraram nos EUA contra os próprios norte-americanos. Nas eleições de 2008, o povo americano estava acordando com terrível ressaca, de uma farra-orgia antirrealidade que durara 30 anos.

Nesse sentido, a eleição de Barack Obama foi, potencialmente, um ponto de virada. Mas a Direita furiosa que Ronald Reagan construíra – com efeitos debilitantes, paralisantes também no Centro e na Esquerda – teimou em não desaparecer.

A Direita contra-atacou ferozmente, contra o primeiro presidente negro dos EUA, ameaçando revolução violenta se Obama agisse logo no primeiro mandato eleitoral; Obama várias vezes agiu como um daqueles Democratas acomodatícios (por exemplo, quando não demitiu grande parte da equipe de segurança nacional de Bush); a imprensa-empresa dominante manteve-se oportunista-carreirista; e a Esquerda pôs-se a exigir perfeições perfeitíssimas nas situações de mais extrema dificuldade política.

Tea Party no Capitólio
Essa combinação de grupos disfuncionais contribuiu para o crescimento do Tea Party e para as vitórias dos Republicanos no Congresso em 2010. Mas a eleição de 2012, com Obama reeleito e rejeição ampla, geral e irrestrita ao fanatismo do Tea Party, criou a oportunidade para que os que pensam nos EUA se recompusessem.

Afinal, os EUA continuam a ver as consequências de três décadas de fantasias direitistas – alto desemprego; déficits massivos; crises financeiras autoinfligidas; classe média degradada; nada de saúde pública, nem qualquer assistência pública à saúde para milhões de cidadãos; infraestrutura em ruínas; planeta em franco aquecimento; guerras cada vez mais caras em terras cada vez mais distantes; o orçamento do Pentágono manchado de sangue; e crianças assassinadas por um adolescente perturbado, que nada e ninguém impediu que pusesse as mãos em rifles semiautomáticos de assalto carregados.

Mas, se se espera que soluções racionais e pragmáticas sejam algum dia aplicadas aos nossos problemas, não bastará que se exija apenas mais espinha dorsal do presidente Obama. O país precisa de que os norte-americanos que ainda habitem o mundo real levantem-se e lutem, no mínimo com a mesma determinação com que lutam os doidos que habitam o mundo do faz-de-conta.

Claro que será luta feia e desagradável. Exigirá recursos, paciência, firmeza. Mas não há outra resposta possível. Temos de recuperar e preservar a realidade – se ainda queremos salvar o planeta e as crianças dos jardins de infância dos EUA.


Nota dos tradutores
[1]  No orig. Distrusting the MSM (mainstream media)  

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