sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

“Me and Janis”





Zoroastro Sant’Anna - Jornalista e cineasta
Ilustrações e “links”– redecastorphoto




Janis me ligou no meio da noite, na Tribuna da Bahia, em Salvador.

Janis Joplin
Quem é? - perguntei. Is Janis, Janis Joplin. Rigth, I'm Jesus, and so? É verdade, meu nome é Janis Joplin. Estou ligando para você por indicação de um músico baiano que conheci em Ipanema, no Rio, o nome dele é Piti. Quase refeito perguntei o que ela queria. Disse ela que estava vindo para a Bahia e que precisava de apoio e que não queria a mídia envolvida. Dissera que viria de carona de caminhão.

Marcamos num posto de gasolina antes da rodoviária, na Avenida Barros Reis. Eu tinha um fusca 68, azul calcinha. Liguei para o Hotel da Bahia e fiz uma reserva em nome do Mr. David Newhouse e senhora. David era um australiano, namorado de Janis, na época. Eu tinha 23, Janis 27 e David 29 anos. Quando cheguei no posto de gasolina eles já estavam lá. Ele imenso, de camiseta regata, malhadão, ela de saia indiana e blusa de crochê verde, sandálias. Nos beijamos, todos.

Seguimos até o Campo Grande, no Hotel da Bahia. O recepcionista disse que o hotel estava lotado. Pedi para chamar o gerente, um carequinha empertigado. Expliquei que eu havia feito uma reserva, pessoalmente e que agora o funcionário disse que estava lotado. O careca, rei do mundo, numa cidade fim do mundo, disse: “Meu hotel não hospeda hippies!”.  Janis, que já estava impaciente, entendeu quando ele disse a palavra... hippies, bateu a mão no mármore vagabundo da recepção e gritou: “Seu merda, eu sou Janis Joplin, eu compro esse hotel e lhe boto na rua!”. Pedi calma a ela, ela esperneou, David não estava nem aí.

Hippies
As duas mochilas deles eram imensas, Janis ia na frente e David atrás com os dois volumões. Meu fusca queimava uma fumaça azul, parecia desenho animado. Seguimos em direção à orla. Chegamos na Pituba e encontramos o Hotel Universo, que não existe mais. Em frente ao Jardim dos Namorados. Entramos sem o menor problema. Chegamos no quarto, deitamos na cama larga, relaxados, David acendeu um charo quilométrico, fumaça azul, como a do meu fusca. Janis pediu heroína ou pó. Eu não tinha, não havia nada disso na Bahia em 1970. Eu tinha notícias do que era, mas nunca tinha nem visto. Janis ficou nervosa e inquieta, não dormimos, só David cochilou. Janis pediu cachaça, saí e trouxe uma garrafa de Jacaré, cachaça da terra; “Jacaré taí? Positivo”, era o slogan. Ela tomou metade da garrafa.

O que tem do outro lado do mar? Perguntou Little Lyn, olhando pela janela aberta para aquela imensidão verde esmeralda do mar da Pituba. A terra dos seus avós, respondi. Are you jokking? Reclamou ela, que brincadeira é essa? Sou do Texas, e me deu dois tiros com os dedos engatilhados. Rimos muito, porque respondi que era cangaceiro e as coisas não ficariam assim, revidei os tiros e corríamos bêbados do quarto para o banheiro, do banheiro para o quarto. Belo tiroteio. Baleados e exaustos, expliquei que no do outro lado mar ficava Luanda, em Angola. Onde vivia a nação negra da qual era roubara a voz. Eu nasci assim, eu não roubei nada, disse ela tentando arrumar os cabelos revoltos. Eu sei, tranquilizei. Só queria que você soubesse que é crioula, mais nada. Eu sei, disse ela, eu sempre soube. Nos abraçamos e ficamos olhando aquela calmaria turquesa do mar. David peidou.


À noite levei Little Lyn e David na casa de Luiz Fernando, um amigo, artista plástico que vivia num casarão na foz direita do fedorento Rio Vermelho que estranhamente não cheirava nesta noite. Havia manequins de gesso pela sala, envoltos em panos coloridos, tudo iluminado  a luz de velas. No centro, almofadas confortáveis, mais velas e um toca-discos daqueles que você desmonta e as tampas viram duas caixas de som. Little Lyn pedira que eu comprasse dois LPs. Um era o “Big Brother and the Holding Company”, sua ante-penúltima banda, onde rolava tudo que havia de psicodélico, de drogas às ideias. O outro disco que ela queria ouvir era o “Kozmic Blues Band”, estranhei que não pedisse o “Cheap Trills”, que ficava no meio de um e do outro. Foi difícil achar o “Kozmic”, tinha acabado de sair, mas achei!

Charo rolando pela sala, cachaça Jacaré aberta no espaço, Little Lyn sentada, balançando o corpo do ritmo de “Bye, Bye Baby”, “Blindman”, “Call on Me” e outras  genialidades. Me pediu que colocasse o “Kozmic”, ninguém ainda conhecia direito aquele LP. Ela deu um gole profundo na Jacaré e cantou em cima do disco, em cima da própria voz, “Summertime”. O mundo deveria ter acabado naquele instante. Depois daquele momento, nada mais importa, é um encontro definitivo com Deus. Virei santo. E haja o que houver, direi sempre com a boca cheia, plagiando Pablo Neruda “confesso que vivi”.


Não sei como descobriram, mas a revista Veja, através de seu editor regional, Edgar Gantoira, me ofereceu um fusca caramelo zero quilômetro, um monte de dinheiro e um fotógrafo, Roberto Duarte, para documentar a estada de Janis em Salvador e me vi diante do dilema em ser fiel ao pedido de Little Lyn e granjear a fama e o dinheiro através do furo de reportagem. Eu traí Janis ao revelar ao fotógrafo Roberto Duarte que no dia seguinte eu a levaria à feira de Água de Meninos, na Cidade Baixa. Ele fez a foto com uma tele 125 mm e a Tribuna estampou em manchete de meia página: “Janis Joplin na Bahia”. Quando abri o jornal pela manhã tive vontade de morrer. Chamei Janis e mostrei. Ela me odiou. Chorei. Ela ficou puta. Passados uns minutos ela me beijou. Forget it, disse ela, don’t worry. O resto jamais contarei. “Summertime...

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Comentário enviado por e-mail e postado por Castor

    Happy birthday

    Bom dia, Little Lyn! Hoje - 19/1/2013 - você faria 69 anos! Uma garota fantástica! Que não tem nada a ver com essas garotinhas algodões-doces do Fantástico. Certamente eu a levaria novamente ao Abaeté, a lagoa escura de areia branca que encantou seus olhinhos amendoados. Nunca entendi porque uma garota de Port Arthur, no Texas, tinha olhos rasgadinhos. Pode ser que seu pai Seth ou dona Dorothy tivesse um pezinho numa tribo daquelas que a cavalaria americana gostava de dizimar. Você tiraria sua saia indiana, seu coletinho de crochê verde, desamarraria a bandana colorida e banharia de novo esse corpo cor de rosa, de seios pequeninos, naquela água negra, enquanto David enrolaria outro baseado, tipo Cohiba.

    Depois, desceríamos até a praia de Itapoan, você rodaria em volta da estátua da sereiazinha cantarolando alguma faixa do "Cheap Trills", em frente ao antigo barracão dos pescadores. Então correríamos pela areia até chegarmos exaustos e sorridentes ao pé do Farol, na Pedra do Sal. Uma barraca de côco, uma cerveja gelada, uma negona do acarajé dourado e outro mergulho no mar esverdeado de Itapoan. Secaríamos sobre as pedras quentes da praia, acariciados pelo vento que movia as palhas daqueles coqueiros que viajavam em dançar embalados pela sua voz rouca "...try, try baby".

    Nosso almoço de aniversário seria na Cabana do Pedro, na Manoel Dias da Silva, na Pituba. Um aperitivo de alambique de Santo Amaro da Purificação, terra de Dona Canô. Uns camarãozinhos fritos no dendê, um caldinho de sururu, ostras frescas de Itaparica e então uma nutrida muqueca de vermelho, com bem pimenta e muito coentro. Mais uns aperitivinhos e mais cerveja gelada. Minha casa em frente, uma rede do Ceará, um ventinho do mar e David com mais um Cohiba para arrematar. Um sono tranquilo de uns olhinhos fechados que nunca mais vi abrir.


    Zoroastro Sant’ Anna - jornalista e cineasta

    ResponderExcluir

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.