6/2/2013, Gamal Nkrumah,
Al-Arham Weekly, Cairo
Traduzido pelo pessoal da
Vila Vudu
Gamal Nkrumah |
À caça
da alma do Saara: As
expressões de júbilo eram palpáveis quando o avião que trazia o presidente
François Hollande da França pousou na pista em Timbuktu. O infiel vencedor
emergiu triunfante do jato presidencial, para ser saudado à tradicional moda
africana, com muita festa, exaltação, danças, cantos. Era o herói do dia. Os
ignóbeis militantes islamistas, eles, em plena retirada.
Hollande foi entusiasticamente elogiado no Mali por seus
talentos de navegador em quadro de crise. Os malianos, a esmagadora maioria dos
quais são muçulmanos, vivem cada vez mais desconfiados de islamistas de todos os
naipes.
Meninas
pequenas arrastavam os odiados hijabs pelo chão poeirento. Medo e
frustração fervilhavam sob o chão arenoso daquela cidade milenar. O nível de ira
e desespero entre os islâmicos aproximava-se perigosamente do ponto de ebulição.
Ironia, mesmo, que os infiéis franceses ali estivessem, tratados como
salvadores. Meninas de menos de 10 anos obrigadas a cobrir-se dos pés à cabeça
com o traje tradicional da modéstia obrigatória.
É
jogo bem aberto, muito às claras, no desolado Saara maliano. Comandar um oceano
de cidadãos indignados provou-se impossível nas legendárias cidades medievais de
Timbuktu e Gao, no Mali. Esses bastiões da civilização islâmica na Ásia
Ocidental rejeitaram as rígidas estruturas do islamismo militante contemporâneo.
Simpatizantes se reúnem para
saudar Hollande durante sua curta visita de duas horas |
Hollande
desfilou para as câmeras, inspecionando os destroços de uma herança cultural
desonrada. Os anfitriões malianos assistiam a tudo, com ar de horror e medo. Os
ataques dos jatos franceses começados dia 11 de janeiro salvaram aqueles
governantes e seus círculo de amigos-do-rei, dos salafistas e de uma linhagem de
islamistas wahhabistas avessa a qualquer concessão. O povo do Mali é muçulmano,
mas não são doidos fanáticos. A carnificina no norte do Mali, que irrompeu no
momento em que os salafistas tomaram o poder, e a perspectiva de constituir-se
ali um estado islamista, forçaram um reposicionamento ideológico e político em
toda a África Ocidental.
Conspiração
neocolonialista: Os
malianos foram informados, em termos absolutamente claros, de que valeria a pena
ouvir o que dizia Paris.
Caberá
a nós, africanos, por um lado, unir os pontos entre o genuíno júbilo da
população maliana ante a presença francesa em seu país predominantemente
muçulmano e, por outro, a assertividade sempre crescente das antigas potências
colonialistas como franceses e britânicos na região do oeste da África? Os
líderes africanos saberão o que fazem e o farão seriamente, quando admitem a
implantação de soldados franceses como poder militar dominante no Mali? Afinal
de contas, os franceses não se cansam de repetir que sua presença no Mali é
temporária.
Nas
declarações públicas, políticos franceses só falam das vantagens de o Mali
contar com a potência militar francesa. O presidente Hollande da França, saudado
como redentor, ganhou de presente um camelo recém-nascido, dádiva de gratidão do
povo do Mali, ao exército francês de intervenção. Mas Hollande cuidou de lembrar
aos anfitriões que “os terroristas foram abalados, mas não desapareceram”.
Paris
joga sua cartada de longo prazo, a sempre mesma velha visão da grandeur
francesa. “Não podemos tolerar o que aconteceu em Timbuktu” – Hollande insistiu
na referência ao inferno criado pelos islamistas armados do grupo Ansar al-Dine,
que incineraram cerca de 2.000 manuscritos de valor histórico incalculável, em
Timbuktu.
A
França passa agora a usar força militar, além da diplomacia, como instrumento de
política externa para a África. Claro: essa estratégia beligerante será levada a
efeito em conjunção com potências regionais, como a Argélia, e grupamentos
regionais, como a Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental
[orig.Economic Community of West African States (ECOWAS)] e seu braço
armado, ECOMOG, o grupo de monitoramento da ECOWAS. Um candente
ressentimento contra salafistas e todos os tipos de militantes islamistas
armados irradia-se de todas as esquinas da África Ocidental.
Salafistas
versus secularistas: Um dos solipsismos dos secularistas consiste em
atribuir salafismo a todo o Golfo Árabe, especialmente à Arábia Saudita, como
uma espécie de “dano colateral” da diplomacia dos petrodólares. Mas em tempos de
ódios incontrolados, desemprego e juventude sem qualquer perspectiva de futuro
político, nada mais fácil para os grupos salafistas da África Ocidental, que
arregimentar seguidores.
Leopold Senghor |
Os
militantes islamistas armados supuseram que teriam desmontado todo o
establishment político secularista na África Ocidental, ou que, no
mínimo, estariam a um passo de desmontá-lo. Digam e pensem o que disserem ou
pensarem os apressados arrogantes, o secularismo é tradição perfeitamente
respeitável na África Ocidental. O primeiro presidente do Senegal, o falecido
Leopold Senghor, foi católico romano devoto e secularista; apesar disso,
governou nação predominantemente muçulmana. O Senegal e o Mali já foram
governados como nação única. E Senghor era conhecido por consultar e ouvir
intelectuais muçulmanos e autoridades religiosas muçulmanas.
Para
Senghor era normal e lógico cultivar a amizade de clérigos muçulmanos da África
Ocidental e os líderes venerados de diversas ordens sufis. Foi traço que redimiu
o secularismo aos olhos dos locais – o talento para acomodar-se ao Outro. Essas
são as políticas ainda corretas e adequadas, de fato, são políticas imperativas,
ainda hoje e aqui, no mundo contemporâneo.
Faz
sentido, pois, para Hollande e seus contrapartes da África Ocidental, perseguir
políticas de acomodação. Mas o problema é que esse ideal de viver-e-deixar-viver
é anátema, no que tenha a ver com militantes islamistas armados. Os salafistas
da África Ocidental têm seus campos de caça entre massas assoladas pela miséria
em estados falidos, com medidas que interferem na vida diária, como códigos de
conduta e vestuário, tanto quanto nos valores culturais e nas práticas sociais,
que são parte fundante de seu discurso de proselitismo.
O
ocidente ganha terreno: Os
muçulmanos moderados da África Ocidental sonham com manter terreno no campo
intermediário. Os militantes islamistas armados, em agudo contraste,
demonstraram o quanto são falhadas as suas estratégias de engenharia e controle
sociais. No Mali, é indispensável uma autoridade centralizada na capital Bamako,
que se encarregue de buscar solução para os problemas de subdesenvolvimento,
analfabetismo, miséria e periferialização das massas empobrecidas.
Mas
Bamako carece desesperadamente de dinheiro para operar como deve operar, se
ainda resta esperança de evitar o futuro trágico de converter-se em mais um
estado falhado. Os pobres são em larga medida ignorados pela opinião pública
ocidental, sobretudo nos corredores do poder em Paris e nas novas cortes
francesas que se vão instalando na África Ocidental.
Hollande junta as mãos com
Traore do Mali na Independence Plaza,
|
Mobutu Sese Seko |
O ocidente pode facilmente isolar
líderes da África Ocidental e mantê-los distantes do que acontece em seus
próprios países. Caso exemplar de homem forte da África neocolonizada nos anos
1970s e 1980s foi Mobutu Sese
Seko, do
Zaire. Dioncounda Traore é ator muitíssimo menos importante do que foi Mobutu em
seus dias de glória.
O
presidente do Mali dá-se por muito satisfeito se puder andar à sombra do
presidente francês. A França e a Europa padecem sob a húbris econômica, mas a
África vive sob desespero sem limites. Os anos de ouro da diplomacia árabe do
petrodólar na África já são passado. O último prego do caixão foi o assassinato
de Muammar Gaddafi, da Líbia. A pergunta mais óbvia que os africanos se fazem é
se os árabes ainda poderiam promover qualquer mínima prosperidade. A resposta é
um simples “não”.
Apesar
do quase sempre descrédito que os árabes geram na África, ainda há os que se
arrastam sob a noção nostálgica e surreal de um estado salafista no Saara. O
ocidente não tolerará tal ultraje. As potências ocidentais não cederão o urânio
do Níger, país que fornece 40% do combustível nuclear que faz funcionar as
usinas nucleares francesas. Nem o ocidente sequer considera a possibilidade de
vir a perder o controle sobre a fabulosa riqueza, em petróleo, que há na Argélia
e na Líbia.
O
primeiro-ministro britânico David Cameron fez a jogada do policial “bonzinho”,
ao fazer uma visita surpresa à Líbia, depois de rápida visita a Argel. “O povo
britânico quer estar com vocês e ajudar a suprir a maior segurança de que a
Líbia carece” – disse Cameron aos seus anfitriões líbios. “Por isso oferecemos
treinamento e apoio da nossa polícia e dos nossos exércitos. Esperamos trabalhar
juntos nos anos que virão” – Cameron lançou a isca, para relacionamento de longo
prazo.
A
tentação do paganismo: Hoje,
o alto establishment religioso islâmico na África ocidental veste cinto e
suspensórios. As regras dos jogos religiosos mudaram radicalmente. Os malianos
são muçulmanos, mas atraí-los para as mesquitas só se os militantes islâmicos
forem impedidos de usar o púlpito para arregimentar novos seguidores. Muitos
malianos, e não só da elite, veem a intervenção militar francesa como primeiro
passo forte para reformar a cultura islâmica no país.
O
resultado das incursões de militantes islamistas armados no Mali foi o pior
possível. Por mais de mil anos, o Mali viveu sob um robusto código islâmico de
conduta. Relações entre diferentes grupos étnicos baseavam-se em valores
tradicionais de confiança mútua. O povo do Mali não precisou de muito tempo para
compreender como funcionam os militantes islamistas armados. Mas o problema não
começa e termina com os salafistas. As ideias que os militantes islamistas
armados promovem perderam o apoio e a confiança populares.
A
presença militar dos franceses no Mali levou a visível aumento do otimismo entre
a população. Não raras vezes, é muito difícil definir o que seja “cultura”. Mas
o retorno a modos culturais de vida pré-islâmica é perceptível. O cristianismo
jamais deitou raízes no Mali, em boa parte porque os colonizadores franceses,
eles mesmos, eram indiferentes à religião. Mesmo assim, que os franceses
neocolonialistas não contem com vitória fácil sobre os salafistas do Saara.
Iyad Ag Ghaly |
Os
grupos salafistas no Mali são absolutamente todos eles desmembramentos do Grupo
de Salafistas da Argélia Para Pregação e Combate [orig. Algerian Salafist
Group for Preaching and Combat (GSPC)], a organização que lançou a guerra
civil da Argélia na “Década Perdida” dos anos 1990s, que levou à morte 250 mil
argelinos. Outros grupos malianos de islamistas militantes armados emergiram
daquelas cinzas, inclusive o violentíssimo “Batalhão Assinado em Sangue”
[orig.Signed-in-Blood Battalion]. Outros são o Movimento por Unidade e
Jihad na África Ocidental (MUJAO) e o Movimento Islâmico pela Libertação do
Azawad, uma milícia tuaregue salafista. Evidentemente, Iyad Ag Ghaly, o líder
tuaregue étnico do temido grupo Ansar al-Dine – milícia responsável por muitas
das atrocidades cometidas durante a ocupação salafista do norte do Mali – só
fez, infelizmente, endurecer o comportamento de muçulmanos malianos não
tuaregues e não árabes contra esses dois grupos étnicos, facilmente
identificáveis pelo tom de pele acentuadamente mais claro. Malianos de pele mais
escura já ameaçam com retaliações.
Ninguém
sabe com razoável certeza a extensão do poder desses grupos dentro do Mali. No
momento, dispersaram-se pelo deserto. Os malianos dizem hoje aos militantes
islamistas armados: “Se não apreciam nossos valores culturais, sumam daqui”. Foi
o que eles fizeram. Ou, pelo menos, é o que dizem os franceses e a neocorte
francesa local.
Retaliações
racistas: A
bem visível tensão racial no Mali, hoje, é sinal alarmante de uma espiral
descendente rumo ao caos político e social no país, em escala jamais vista. Há
luta racial latente desde a independência do Mali, da França, em 1960. Os
tuaregues, de tempos em tempos, tentaram declarar-se independentes e criar um
estado exclusivamente Azawad no norte do Mali. Nos vizinhos Mauritânia e
Senegal, houve confronto racial nos anos 1990s. Infelizmente, talvez seja,
agora, a vez do Mali.
Mas
Bamako tem fracassado repetidamente na tentativa, se houve, de articular alguma
alternativa, e há sinais de que alguns políticos no sul do Mali já tentam
beneficiar-se do revide contra árabes e tuaregues, apadrinhados pela França.
O
que esperar depois da partida dos franceses? As tensões aumentam em torno de
territórios disputados no deserto, onde se escondem imensas reservas minerais;
deve-se esperar que militantes islamistas armados ressurjam de seus esconderijos
nas montanhas, com força militar para lutar contra o governo central do Mali em
Bamako?
Em
vez de todos se concentrarem na fragilidade psicológica pressuposta nos
adversários que hoje se espalham pelas vastidões desérticas do Mali na parte
norte do país, a sociedade civil maliana teria de ser fortalecida e capacitada
para implantar, ela mesma, a democracia no país, de tal modo que nem os
tuaregues secularistas nem os islamistas armados tenham espaço para, novamente,
levantar-se contra o governo central em Bamako.
O
que emergiu bem claramente, como guia e eixo para o futuro político do Mali é
que, se os dois campos – árabes e tuaregues, por um lado; e africanos nativos,
por outro – não conseguirem construir algum consenso, não apenas mergulharão
todos, sem dúvida, num mesmo poço sem fundo, como, também, o Mali se condenará
ao destino de ser mais um estado falhado, na cena política
africana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.