Publicado
em 31/01/2013 por Urariano Motta *
Recife
(PE) - Em 29
de janeiro, fez 10 anos a morte da advogada Mércia Albuquerque. Não sei se foi
por isso, mas nos últimos dias a sua presença voltou com uma força que eu não
imaginava. Tornou-se impossível fugir da sua pessoa em cada linha ou leitura que
eu fazia. Por isso lembro.
Rua
Sete de Setembro, 197, Edifício Ouro. Na década de 70, era para lá que
rumávamos. Entrávamos no edifício sem olhar para trás, rápido, como se ladrões
fôssemos, como se fôssemos criminosos, como se já estivéssemos no Chile de
Pinochet e ali penetrássemos para nos salvar em uma embaixada. Ali , no
apartamento 52 do Edifício Ouro, uma mulher de estatura média, de olhos
abrasantes, nos atendia.
“Advogada
Mércia Albuquerque, presente”. Não eram essas as palavras, não era bem assim que
ela nos vinha, mas era exatamente esse o ar, que a sua presença nos sugeria.
“Descansem. Eu estou presente. Sim, eu conheço esses milicos. Essa canalha do
DOPS eu já sei como age. Descansem, vocês estão em casa”. Não lembramos bem se essas
eram as palavras, se algum dia ela assim se expressou, mas sentimos que do seu
corpo frágil, agitado, andando pela sala do apartamento, sem se sentar, vinha a
insinuação delas. “Tranqüilizem-se, se fizermos a denúncia, a vida dele está
salva”. Elétrica, agitada, e no entanto nos dava uma grande calma.
Agora
que ela não mais habita no Edifício Ouro, agora que seu corpo se acha
definitivamente ausente, agora que superamos a ditadura, nesta altura em que
ficou fácil ser democrata, ah, o factual, o seu currículo de advogada de
perseguidos políticos, de presos torturados, tudo isso tende a se fundir em
versões e esquecimento. Não sabemos se é sempre assim quando a gente se ausenta,
mas de Mércia fica uma impressão íntima, uma forma de orquídea violeta que não
sabemos de onde nem por que nos vem. Agora mesmo, enquanto digito estas mal
traçadas, a voz de Bienvenido Granda me chega insistente aos ouvidos, embora em
torno só haja o tique-taque do relógio no silêncio da madrugada. “Egoísmo” é o
bolero que nos chega, não sabemos por quê.
E
no entanto sabemos a razão, ou pelo menos desconfiamos do porquê. A doutora
Mércia Albuquerque era um ser passional. É isto o que a violeta roxa, na voz de
Bienvenido Granda, quer me dizer. Mércia, mal saída da universidade, resolveu
defender Gregório Bezerra porque o viu arrastado por uma corda ao pescoço em
1964, em Casa Forte.
Mais tarde, ao se tornar advogada de Abelardo da Hora, um
comunista e escultor fundamental, ela abrigou os filhos de Abelardo no
apartamento 52 do Edifício Ouro. Ao ser sequestrada por agentes do DOPS, foi
atirada de volta na Rua da Guia, que, à época, era a última e mais miserável rua
do bairro de putas do Recife antigo. Ali, ela recordaria depois, recebeu
dinheiro e solidariedade de uma prostituta que atendia pelo nome de Biscuit. Defensora de radicais
materialistas, de jovens socialistas ou de jovens simplesmente desesperados, sem
saída, era, ela própria, católica, até meio mística, e nisso não via nada que
fosse obstáculo à defesa daqueles “terroristas”, como os difamava a propaganda
da ditadura militar.
Ninguém
passa imune pela luta e drama desses jovens, até hoje. Em 29 de janeiro de
2003 a
doutora Mércia foi ali e não voltou, vítima de um câncer que lhe devastou o
ovário. Ainda que esse câncer sintomático lhe tenha minado a vida, traiçoeira e
silenciosamente, não foi bem essa infâmia que a matou. Pois foi a esta mulher,
tantas vezes presente nas aflições dos perseguidos políticos, que tanto perigo
correu por defender “terroristas”, que presa 12 vezes sem culpa, sem inquérito,
sem acusação formal, como de resto se continua a fazer com os pobres e
miseráveis do Brasil, que conviveu com a destruição física e humana de
militantes, e também com o heroísmo imenso desses torturados, pois foi a esta
mulher que parecia ter flertado com a eternidade, porque tantas vezes esteve
perto do fim e dele se safou e o pulou como acrobata, pois foi a esta mulher que
a morte colheu numa mesa de operações! A causa mortis apontou parada
cardíaca.
Para
uma advogada passional, para uma mulher que lembrava a rara orquídea roxa, faz
sentido uma morte assim, de parada no coração. A vida da gente é estúpida, é
certo, mas ao fim sempre guarda algum sentido. Um sentido que não sabemos se
conseguimos realizar, doutora, neste espaço curto, nesta lembrança curta de quem
a viu uma vez, mas jamais esqueceu de que seus olhos queimavam na gente feito
urtiga.
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Enviado por Direto
da Redação
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