1/2/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving
Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar |
Para citar a linha imortal de O
Falcão Maltês de Dashiell Hammett, [1] na versão filmada por John Huston,
“Falemos sobre o pássaro preto”. Conversemos sobre a misteriosa ave feita de
ouro. Sim, sim, porque esse é film noir digno de Dashiell Hammett – que
envolve o Pentágono, Pequim, guerras clandestinas, pivoteamentos e muito, muito
ouro.
Comecemos
com a posição oficial de Pequim: “Não temos ouro que chegue”. Daí o atual
frenesi de comprar, comprar, comprar, no qual mergulhou a China – e o qual,
sobretudo em Hong Kong, qualquer um vê, ao vivo, em tempo real. A China já é
(i) o maior produtor de ouro e (ii) o maior
importador de ouro do mundo.
70%
das reservas de EUA e Alemanha são ouro; mais ou menos a mesma proporção, também
para França e Itália. A Rússia – que também entrou em frenesi de comprar,
comprar, comprar, comprar – é pouco acima de 10%. Mas a porcentagem de ouro nos
estonteantes US$3,2 trilhões das reservas chinesas é de apenas 2%.
Pequim
acompanha atentamente o bate-cabeça no New York Federal Reserve, depois que o
German Bundesbank pediu a
devolução do ouro alemão que lá estava depositado, e os americanos responderam
que demoraria no mínimo sete anos para devolverem tudo.
Lars Schall |
Lars Schall, jornalista alemão
especializado em finanças, acompanha o caso desde o início [2] e, praticamente sozinho, sem
qualquer ajuda, conseguiu unir duas pontas cruciais do movimento entre ouro,
papel moeda, recursos energéticos e o abismo dos abismos ante o qual vive hoje o
petrodólar.
Pequim diz que precisa de mais
ouro, para proteger-se contra a ameaça de desastre “nas reservas estrangeiras” –
também chamada flutuação do dólar norte-americano – mas especialmente para
“promover a globalização do Yuan”. E
também, para, suavemente, fazer o Yuan competir com o dólar dos EUA e com
o euro “com justiça” [3] no “mercado internacional”.
E
aí está o nebuloso (elusivo) xis da questão. O que Pequim realmente quer é
livrar-se do dólar norte-americano, essa canga. Para que isso aconteça, a China
precisa de ouro, ouro, imensas reservas de ouro. E eis Pequim que se pivoteia,
do dólar norte-americano para o Yuan
– e está tentando levar com ela, pelo mesmo caminho, vastas fatias da economia
global. A “regra de ouro”, o “corte de ouro” é o Falcão Maltês de Pequim: “Dessa
matéria se fazem os sonhos”.
O drone X-47B Unmanned Air System Combate (UCAS) é apresentado no convés de vôo do porta-aviões USS Harry S. Truman em 9/12/2012 |
“Drone
próprio, Aceita viajar...” [4]
O
Qatar também se pivoteia – mas pivô à moda MENA (Middle East-Northern Africa). Doha tem
financiado wahabbistas e salafistas – e até jihadistas salafistas – como os
“rebeldes” da OTAN na Líbia; as gangues do chamado Exército Sírio Livre na Síria
e a gangue panislamista que tomou o norte do Mali.
O
Departamento de Estado – e mais tarde o Pentágono – talvez até se tenham dado
conta do que acontecia; foi quando tentaram, como no acordo conduzido
conjuntamente por Doha e Washington, criar uma nova “coalizão” síria, mais
palatável.
Mas
continuam ativadas, potentes e extremamente perigosas as relações entre o
francófilo Emir do Qatar e o Quai d'Orsay em Paris – que já vinham ganhando gás
e mais gás durante o reinado do Rei Sarkô, também chamado Nicolas Sarkozy,
ex-presidente francês.
Observadores
bem informados de geopolítica já vêm seguindo, vazamento a vazamento (que pingam
semanalmente, de um ex-funcionário do serviço secreto francês, para o semanário
satírico Le Canard Enchainé), e que detalham o modus operandi do
Qatar. É simples. A política externa do Qatar atende também pelo nome
Fraternidade Muçulmana Aqui, Lá, por Toda Parte (menos dentro do emirado
neofeudal): eis o Falcão Maltês do Qatar. Ao mesmo tempo, Doha – para gozo das
elites francesas – é praticante ativo de neoliberalismo hardcore e forte
investidor na economia francesa.
Assim
sendo, os interesses de França e Qatar são complementares: interessa a ambos os
governos promover o capitalismo
de desastre – como já foi implantado com sucesso na Líbia, mas ainda não
conseguiram implantar com sucesso na Síria. O Mali, sim, é outra coisa: caso
clássico de volta do chicote no lombo do chicoteador, e é aí que os interesses
de Doha e Paris divergem (para nem falar de Doha e Washington. E, pelo menos, se
ninguém entender que o Mali serviu como perfeito pretexto para dar alma nova ao
AFRICOM dos EUA).
Na Argélia, a imprensa
manifesta-se ultrajada e questiona a agenda do Qatar. [5] Mas fato é que o pretexto – como
se previa que funcionasse – funcionou perfeitamente.
Carter Ham |
O COMANDO DOS EUA NA ÁFRICA,
AFRICOM – surpresa! – está numa roda viva, com o Pentágono ultimando os
preparativos para instalar uma base de drones no Niger. [6] Eis o resultado prático da visita
que o comandante do AFRICOM, general Carter Ham, fez a Niamey, capital do Niger,
há poucos dias.
Esqueçam
as velharias PC-12 de propulsão a jato que há anos espionam o Mali e a África
Ocidental. Agora, é tempo de Predator. Tradução: o chefe-no-aguardo, John
Brennan, planeja uma guerra-clandestina-monstro da CIA, por todo o Saara-Sahel.
Com a permissão de Mick
Jagger/Keith Richards, é hora de cantarolar aquele velho sucesso, remixado:
“Vejo um drone cor de rato/quero o bicho pintado de preto”. [7]
John Brennan |
Para
o AFRICOM norte-americano, o Niger é mais doce que mamão no açúcar. No noroeste
do Niger estão todas aquelas minas das quais sai o urânio que faz girar a
indústria nuclear francesa. Ali, pertinho das reservas de ouro do Mali. Imaginem
todo aquele ouro, em área “instável’ e caindo em mãos de... empresas chinesas?!
Pequim teria chegado ao seu momento falcão maltês, e teria ouro suficiente para
livrar-se da canga do dólar norte-americano, a coisa estaria ali, ao alcance da
mão.
O
Pentágono já conseguiu autorização até para que essa máquina infernal de
vigilância e espionagem se reabasteça – onde? Onde? – em Agadiz, crucial Agadiz.
É provável que a Legião Estrangeira francesa já esteja fazendo a parte mais dura
do trabalho de campo no Mali, mas o AFRICOM, não a França, colherá os lucros do
que lá está sendo feito, por todo o Sahara-Sahel.
Não
conhece o pássaro (asiático)?
O
que nos traz de volta àquele famoso pivoteamento na direção da Ásia – que se
supôs que fosse o principal tema geopolítico do governo Obama 2.0. Talvez até
seja. Mas aparecerá acompanhado, já ninguém duvida, pelo pivoteamento do AFRICOM
por todo o Sahara/Sahel, em modo drone – para crescente irritação em
Pequim; e também pelo pivoteamento de Doha-Washington, que pivoteiam feito
loucas em apoio a ex-“terroristas” convertidos em “combatentes da liberdade” e
vice-versa.
E ainda sequer se comentou um
pivoteamento-zero também incluído nessa trama noir: o governo Obama 2.0
não afrouxa o assustador abraço que o associa à medieval Casa de Saud cum
“estabilidade na Península Arábe” – como recomenda um dos suspeitos de sempre,
muito medíocre (embora influente) “veterano oficial da inteligência”.
[8]
Play
it again, Sam.
Naquela cena de O Falcão Maltês, no início do “caso” entre Humphrey
Bogart (digamos que represente o papel do Pentágono) e Sydney Greenstreet
(digamos que represente Pequim), o oficial é o terceiro que se vê ali. [9] O pivoteamento para a Ásia é
invenção, essencialmente de Andrew Marshall, [10] conhecido totem-Yoda [11] da segurança nacional nos EUA.
Andrew Marshall |
Marshall esteve por trás da
Revolução em Assuntos Militares [orig. Revolution in Military Affairs
(RMA)] – tudo que todos os fãs freaks de Donald Rumsfeld mais
apreciam; foi “o cérebro” da fracassada operação “Choque e Pavor” (que só serviu
para destruir o Iraque além de qualquer “reconstrução” possível, com capitalismo
de desastre & tudo); e ainda é “o cérebro”, hoje, por trás do conceito de
“Batalha Ar-Mar”. [12]
A
premissa da “Batalha Ar-Mar” é que Pequim atacará as forças dos EUA no Pacífico
– ideia ridícula, sinceramente (mesmo que se encene operação fantasticamente
imensa, em que os
EUA se autoataquem, a ser apresentada como “deflagradora” da
retaliação). Em seguida, então, os EUA retaliariam, com uma “blinding
campaign” [para cegar o inimigo] – equivalente naval da Operação Choque e
Pavor. A Força Aérea e a Marinha dos EUA, ambas, adoraram o “conceito”, porque
implica muitos negócios de equipamento pesado para mobiliar e armar muitas bases
pelo Pacífico e em outros pontos.
Assim
sendo, mesmo que a contraguerrilha à moda David Petraeus tenha-se pivoteado e
recebido ares de “guerras de sombras” da CIA de John Brennan, o grande negócio
pelo qual tantos salivam é, sim, o pivoteamento na direção da Ásia: uma
pseudoestratégica, concebida exclusivamente para manter o orçamento do Pentágono
em níveis exorbitantes, inventando e promovendo uma nova Guerra Fria, dessa vez
contra a China.
“Nunca
conseguirão juntar ouro suficiente para impor ao mundo seus projetos maléficos”
– quase se ouve a voz de Marshall, sobre a China (sem a elegância e o
aplomb de Bogart ou de Greenstreet, claro). Hammett ficaria horrorizado:
o falcão maltês de Marshall é a substância de que se fazem os sonhos (de
guerra).
Notas
de rodapé
*Sobre o verbo “pivotar”. Há no original clara referência
ao “movimento de pivô” do presidente Obama, afastando-se do Oriente Médio para
meter-se com a China, como se pensou de início, mas, como já se vê, para
meter-se também com o norte da África [NTs].
[2] 11/10/2011, Lars Schall blog, Lars Schall, em: “Germany
should end the secrecy and bring its gold home”
[3] 29/1/2013, BRIC Post, em:
“Renminbi
to compete with dollar and euro”
[4]No orig. “Have drone, Will
travel” Há aí uma alteração/atualização na expressão original “Have Gun - Will
Travel”. A expressão original foi título de seriado de
televisão lançado em 1957 nos EUA. O enredo mostra um pistoleiro
profissional (codinome “Paladino”), formado na Academia de West Point, o qual, depois da Guerra
Civil, instalou-se no Hotel Carlton, em San Francisco, à espera de respostas aos
cartões de propaganda comercial que distribuíra pela cidade. No cartão, sobre a
imagem de um cavalo do jogo de xadrez, lia-se “Arma Própria, Aceita Viajar...
Contrate Paladino, San Francisco”. “Traduzindo”
alguns subcontextos, chegamos a “Drone próprio, Aceita viajar...”
(NTs)
[5] 28/1/2013, France, Le Monde, Courrier International em: “Le
jeu trouble du Qatar”
[6] 28/1/2013, Washington
Post, Craig Whitlock, em: “U.S.
plans to add drone base in West Africa”
[7] Rolling Stones (Paint it
Black). Orig. “I see a red door and / I want to paint it
Black” [Vejo uma porta vermelha e quero pintá-la de preto].
Vídeo original a seguir: [NTs]
[8] O documento da Brookings
Research (17/1/2013) está em: “Big
Bets
and Black Swans: Foreign Policy Challenges for President Obama’s Second
Term”. O Brasil lá está anotado entre as “Big Bets”
(“Políticas nas quais o pres. Obama deve investir seu poder, tempo e prestígio”)
[NTs].
[9] Vêem-se todos no vídeo que se
segue: “The Maltese Falcon (1941) -
Humphrey Bogart - Sidney Greenstreet” [NTs].
[10] Ver “Andrew
Marshall”
[12] 1/8/2012, Washington Post, Greg Jaffe, Gene Thorp,
Bill Webster em: “What
is Air-Sea Battle?”
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