30/10/2013, [*] MK Bhadrakumar, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ler antes:
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A Arábia Saudita e a ONU |
Algumas
questões, como Irã ou Síria, vão-se convertendo em grandes pontos de
discordância, enquanto em outros já há marcadas diferenças, como, por
exemplo, nos tumultos no Bahrain ou na questão da democratização do
Egito. Os sauditas sentem-se abandonados em mar alto e anteveem
tempestades que se formam no horizonte...
Riad
enfrenta hoje uma experiência absolutamente nova nas estratégias
regionais dos EUA para o Oriente Médio. Há setenta anos, aquelas
estratégias usaram como eixo os laços com a Arábia Saudita, sem parar,
desde quando o então presidente dos EUA Franklin Roosevelt deixou a
reunião histórica de Yalta, com Joseph Stalin e Winston Churchill, e
partiu para um rendez-vous secreto, no cruzador USS Quincy,
no Grande Lago Salgado do Canal de Suez em fevereiro de 1945, com o rei
Abdul Aziz (lbn Saud). Ali, os dois firmaram acordo não escrito, pelo
qual Washington daria segurança militar à Arábia Saudita e concordava
com fixar uma base militar em Dhahran, em troca de acesso ao suprimento
de petróleo.
O
governo Obama está assumindo visão mais estratégica dos interesses dos
EUA no Oriente Médio, que qualquer governo antes dele. Em termos amplos,
pode-se dizer que os interesses dos EUA na segurança e estabilidade da
região não mudaram, essas preocupações gêmeas ainda tem tudo a ver com o
fluxo sustentado de petróleo e gás para o mercado mundial, e com a
segurança de Israel. Mas os meios para alcançar o mesmo fim estão
mudando. As forças que foram libertadas pela guerra do Iraque de 2003
transformaram a região; e a Primavera Árabe trouxe para a cena a
realidade de que não se inclui entre os interesses de longo prazo dos
EUA serem vistos como protetores de regimes autoritários decadentes.
O
não superado poder militar dos EUA revelou-se sem efeito, na modelagem
das tendências regionais. Assim sendo, a ênfase na presença militar
direta, ou a propensão a intervir militarmente, está mudando. Ao mesmo
tempo, vai-se fixando a percepção de que excessiva interferência, e a
ênfase na presença militar, tornaram-se contraproducentes e implicam
insustentáveis custos humanos e econômicos.
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Barack Obama na AG da ONU em setembro de 2013 |
Essa
linha de pensamento é ainda nascente e incoerente; a primeira tentativa
de dar-lhe forma coerente pode ter sido a fala do presidente Barack
Obama na Assembleia Geral da ONU, mês passado. Na verdade, talvez ainda
seja prematuro prever como se desenvolverá, especialmente sob o próximo
presidente dos EUA. Nem a situação está sequer próxima de os EUA
abandonarem seus aliados regionais ou seus relacionamentos especiais no
Oriente Médio ou de darem as costas a muito duradouros compromissos
regionais, como o seu “colar” de bases militares. Mas a tendência já é
discernível – e pode-se conceber que assim permanecerá nesses tempos
finais do governo de Obama e que, talvez, ganhe força.
Seja
como for, os sauditas foram gravemente abalados quando viram a
tendência começar a surgir, há dois anos, no Egito, quando o governo
Obama retirou-se da linha de frente, apesar dos clamores dos aliados
regionais e recusou-se a garantir uma linha de salvação a Hosni Mubarak.
Ainda mais enfurecedor para os sauditas, foi ver o governo dos EUA a
estabelecer laços de comunicação com a Fraternidade Muçulmana. Isso,
sim, causou terrível incômodo em Riad. Como o conhecido autor e professor Vali Nasr escreveu essa semana no New York Times Riad vê a Fraternidade como representando
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Vali Nasr |
(...) o
mesmo grau de ameaça à inamovível monarquia saudita que foi o populismo
secular de Nasser (...) [E] o islamismo populista da Fraternidade, que
promete justiça e igualdade, e empoderamento do indivíduo na religião e
na política, ressoa profundamente entre os muitos jovens sauditas
desempregados e inquietos.
Nasr concluiu que:
(...) nos anos vindouros, o maior desafio estratégico para a Arábia Saudita pode não ser o Irã, como foi, mas a Fraternidade.
O nó egípcio
Por
outro lado, os EUA não podem deixar de considerar que a Fraternidade
tornou-se uma força regional já no Maghreb e por todo o Oriente Médio
cujo momento pode ter chegado. Isso interessou Washington, e negociar
com a Fraternidade como entidade legítima na paisagem política do
Oriente Médio é provavelmente a melhor garantia contra o movimento
tornar-se mais extremado e vir a ameaçar a “legitimidade islâmica de
todas as monarquias árabes”. Isso posto, os sauditas, por sua parte,
estão furiosos, porque Washington até agora continua a recusar-se a
aceitar o golpe militar no Egito, que eles apoiaram, nem apóia a
repressão militar à Fraternidade.
Vai-se
tornando difícil desfazer esse “nó egípcio” nas relações EUA-sauditas.
Os sauditas desafiaram os EUA e estão bancando o governo provisório no
Cairo, mas não impressionaram o governo Obama, o qual, ao contrário,
suspendeu a ajuda militar que dava ao Egito e insiste na exigência de
que o Egito volte a uma democracia “inclusiva” que admita a participação
da Fraternidade. Os sauditas supuseram que o medo de levar os militares
egípcios a diversificar suas fontes de armamentos forçaria Washington a
voltar atrás, mas o governo Obama não parece intimidado – pelo menos
até agora – e parece avaliar que, no longo prazo, estabelecer progresso
econômico e estabilidade política na região será o melhor modo de
assegurar segurança e estabilidade regionais, e que isso será bom também
para os interesses estratégicos dos EUA.
Além
de tudo mais, o atrito que surgiu nas relações da Arábia Saudita com o
governo Obama tem tudo a ver com a situação interna no reino saudita. Em
resumo, a paranoia em Riad está relacionada ao fantasma de o torvelinho
regional chegar, em algum momento, a respingar na própria Arábia
Saudita. É aflição que tem caráter existencial. Christopher Davidson,
autor, professor e arabista britânico, escreveu recentemente que o
“contrato social [da monarquia saudita] com seu povo está agora se
rompendo publicamente, em escala significativa”. Seus dois argumentos
chaves são que, em primeiro lugar, o tempo está acabando para a
estratégia de subornar os manifestantes com petrodólares; e, em segundo
lugar, que o nível atual de subsídios sociais – impressionante recorde
de $500 bilhões – é insustentável, porque já é alto demais até para as
economias do Golfo do petróleo árabe, inclusive a da Arábia Saudita.
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Christopher Davidson |
Davidson lembra que o break-even price [1] do petróleo é agora de mais de $115 no Bahrain, enquanto está chegando a $102 em Omã. O Fundo Monetário
Internacional (FMI) alertou o Kuwait para que contenha os gastos em
bem-estar e nos salários do setor público. Assim, Davidson concluiu, as
medidas longamente testadas de dividir para governar, como estimular
tensões sectárias e culpar a interferência externa, já não estão
funcionando; e estão tendo “impacto demonstrável” na legitimidade do
regime saudita, que “pode ruir antes do que muitos creem”.
De fato, documento recente do Carnegie Endowment for International Peace destaca
que o governo dos EUA bem fará se previr tumulto social e político na
Arábia Saudita. Os sauditas sentem-se amargurados ao constatar que a
disposição do governo Obama para manter-se “do lado certo da história”
no novo Oriente Médio que emerge só tem feito estimular populações
inquietas em todo o mundo árabe, o que, por sua vez, incitará à agitação
na vizinhança.
Porém,
o corte mais doloroso de todos é a crescente evidência de que, com o
governo Obama sem comprar a tese saudita na Síria e no Bahrain, Riad
está lutando contra aliados de um Irã expansionista. Assim como na
jogada com o Irã é importante para Israel manter
o processo de paz no Oriente Médio em fogo lento, também é importante
para o regime saudita insistir no ataque contra os xiitas no Bahrain e
leste da Arábia Saudita – os quais são as reais vítimas de uma
estratégia sectária viciosa fundamentada no wahhabismo.
A
liderança saudita lastimou que o governo Obama não tenha lançado ataque
militar contra a Síria mês passado; que tenha dado as costas à promessa
de armar os rebeldes sírios com armamento pesado para derrubar o
governo de Assad; e que, em vez disso, esteja trabalhando com a Rússia,
para abrir a trilha diplomática via Genebra-2. Os sauditas estão fazendo
horas extras para garantir que Genebra-2 não decole, e estão empenhados
em nova tentativa para arregimentar os aliados árabes regionais, como
se viu no mais recente movimento para organizar uma nova reunião em
nível de ministros de Relações Exteriores da Liga Árabe, no Cairo, na
próxima 2ª-feira (4/12/2013).
E
tudo isso, enquanto melhora no ocidente a percepção sobre o regime
sírio, graças à excelente cooperação que tem dado à ONU para a
destruição das armas químicas e graças também à evidência, mais clara a
cada dia, de que as forças do governo sírio são o único obstáculo
importante que há contra o crescimento da al-Qaeda naquela parte da
região.
Águas desconhecidas
Tudo
isso considerado, as relações EUA-sauditas estão entrando em águas
desconhecidas. Houve relatos de que a liderança saudita considera uma
“ampla mudança” que a afastará da cooperação de décadas com os EUA. E de
que a decisão de “desistir” do assento no Conselho de Segurança da ONU
marcaria o tom de uma política externa saudita radicalmente diferente.
Esses relatos dizem que Riad tem intenção de afastar-se dos EUA,
explorando, dentre outras coisas, relações militares que dariam mais
alta prioridade à defesa e a outros interesses sauditas. A mudança de
que se fala aconteceria na direção de uma política externa mais
proativa.
Pode-se
dizer que tal política proativa já está em andamento há algum tempo,
como se viu na intervenção saudita no Iêmen e no Bahrain e nos
movimentos unilaterais para manter em andamento o projeto de mudança de
regime na Síria, apesar dos crescentes sinais de desagrado ocidental. Se
se considera o sucesso relativo dos planos sauditas no Bahrain e Iêmen,
é perfeitamente concebível que os sauditas deixem de lado a proposta de
Genebra-2 e trabalhem a favor de uma iniciativa regional contra a
Síria, dando cobertura econômica, política e militar e arregimentando
seus aliados do Conselho de Cooperação do Golfo e a Jordânia e o Egito,
no quadro de alguma espécie de acordo de segurança coletiva.
Poderia
ser uma iniciativa na direção de intervencionismo local, mediante uma
aliança árabe revitalizada, o que significará afastamento da dependência
histórica da presença militar dos EUA. A raison d’être, nesse
caso, seria que só mediante tal aliança regional o regime saudita e os
regimes do Golfo poderão priorizar a própria sobrevivência – tornando-se
assertivos, menos dependentes do apoio ocidental e isolando-se dos
efeitos da reaproximação EUA-Irã.
Mas,
na essência, não passará de um gambito, de cercar a caravana em vez de
entrar em desafio estratégico contra os EUA. Os sauditas certamente
sabem que um quadro de segurança árabe coletiva não é realista e sempre
será artificial, e que o continuado apoio dos EUA sempre será fator
criticamente decisivo.
Enquanto isso, as perguntas não param de brotar.
Por
um lado, ainda não se viu até que ponto a intervenção do CCG no Iêmen
ou Bahrain será sucesso duradouro. No Bahrain, a repressão é ordem do
dia; e no Iêmen os sauditas apenas trocaram um governante impopular pelo
respectivo vice. Todos esses são paliativos, temporários, que os
sauditas impuseram sem ouvir o povo desses países. Mais uma vez, a
abordagem saudita implicará militarizar os conflitos (como no Bahrain ou
na Síria); essa abordagem com certeza atrairá o opróbrio internacional e
talvez se comprove inadequada para empurrar a maré mudancista.
A
única real vantagem do regime saudita é que possui inigualável
capacidade financeira, mas, por outro lado, não se vê a Arábia Saudita
aceita em papel de liderança na região. Há ressentimentos entre os
estados do CCG sobre o intervencionismo saudita no Bahrain. Na verdade, o
regime saudita nem é modelo que inspire nações árabes – os sauditas tem
péssima imagem na região – nem anda ao ritmo do espírito do tempo. O
regime faz papel ridículo, sempre que grupos de mulheres educadas zombam
dele e insistem no direito de dirigir seus próprios carros.
Em última análise, o grande trunfo da Arábia Saudita é sua capacidade para patrocinar uma “jihad”
em outros países. Tem capacidade comprovada para produzir quadros
militantes para suas intervenções clandestinas em outros países. Até
agora, os sauditas têm-se dado bem na estratégia de empurrar o islamismo
militante para além das próprias fronteiras. A estratégia tem
funcionado, mas, a cada dia mais, a comunidade internacional vai-se
fartando disso. É onde a Síria torna-se caso-teste.
Seja
como for, o que finalmente fez entornar a taça foi, provavelmente, a
visão do contato direto entre EUA e Irã, especialmente a conversa
telefônica entre Obama e o presidente Hassan Rouhani do Irã. Um ministro
saudita de Relações Exteriores em estado de choque, o príncipe Saud Al
Faisal, saiu às pressas de New York,
sem sequer fazer o discurso programado e rotineiro à Assembleia Geral
da ONU. Desde então, o secretário de Estado dos EUA John Kerry não parou
de telefonar-lhe, para sua Villa privada
em Paris, tentando amolecê-lo e pedindo que Riad reconsidere a atitude
da ONU. Kerry, na sequência armou cara de valente, sobre a briga
EUA-sauditas, e disse que tem “grande confiança” de que os dois países
“continuarão a ser os amigos e aliados próximos e importantes que nós
sempre fomos”.
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Conselho de Segurança da ONU |
De
fato, até aqui, a vantagem de Kerry está em que há posições
conflitantes entre os próprios sauditas, que refletem profundas divisões
internas no interior do regime. E absolutamente não se entende que, até
agora, Riad ainda não tenha notificado formalmente a ONU sobre sua
decisão de recusar o assento ao qual foi eleito, para o Conselho de
Segurança. Mas há tempo. Só em janeiro, afinal de contas, será
necessário aparecer fisicamente, para tomar posse (ou não) da cadeira na
famosa mesa em formato de ferradura do Conselho de Segurança. Ainda não
se ouviu a palavra final desse surto temperamental dos sauditas.
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Nota dos tradutores
[1] Break-Even Price: “A quantidade de dinheiro pela qual um produto ou serviço tem de ser vendido, para cobrir os custos de produzi-lo ou provê-lo”.
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[*] MK Bhadrakumar foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na
União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão,
Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do
Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança
para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online, Strategic Culture, Global Research e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.