Confusão (muita!) na Liga Árabe (e na “oposição” síria)
26/3/2013, [*] Jean Aziz, Al-Akhbar, Beirute [Ed. em inglês - orig. em árabe]
“What Did the Qatari Minister Tell His Saudi Counterpart?”
Traduzido da edição em inglês pelo
pessoal da Vila Vudu
Ahmed Moaz al-Khatib, chefe da delegação da "oposição" síria, em discurso na abertura da reunião de cúpula da Liga Árabe em Doha, dia 26/3/2013. (Foto Karim Sahib, AFP) |
Funcionário do governo libanês,
familiarizado com os desenvolvimentos regionais, contou que aconteceu uma
discussão – que, para ele, ficou entre briga e reprimenda –entre os ministros
do Exterior da Arábia Saudita e do Qatar, numa das reuniões que estão
acontecendo paralelas à uma conferência internacional para arregimentar apoio
armado a grupos da oposição síria.
A discussão
focou-se nas causas do fracasso na Síria; teve de tudo: de procurar desculpas a
recusar qualquer culpa pelo que aconteceu. O funcionário libanês disse que o
ministro saudita vinha adotando tom acusatório, até que ouviu pesada resposta
do ministro do Qatar.
Hamad bin Jassim bin Jabr Al Thani, 1º Ministro e Chanceler do Qatar |
Em resumo, o
ministro qatari disse que
Nós fizemos tudo na Síria durante dois
anos e conseguimos que todo o planeta abraçasse a causa da oposição síria. Você
[príncipe Bandar] assumiu, e
bastaram dois meses para que todo o planeta se transferisse para o lado de
Bashar al-Assad.
Esse
parágrafo pode resumir todos os desenvolvimentos na Síria e no Oriente Médio
nas últimas semanas ou, mais especificamente, desde que Moscou e Washington
firmaram um acordo para destruir as armas químicas da Síria, e começaram a
surgir sinais de reaproximação entre os EUA e o Irã.
Mas o curso
de todos esses eventos começou, de fato, há uma década, quando os EUA decidiram
derrubar Saddam Hussein. Os sauditas apoiaram, mas a Síria opôs-se.
Bandar bin Sultan |
Pouco depois
da queda de Bagdá, em abril de 2003, começou a tornar-se cada vez mais claro
que os sauditas, aliados do vencedor da guerra do Iraque, estavam perdendo no
campo político o que tinham suposto, erradamente, que teriam ganho graças à
força militar de outros. Simultaneamente, os sírios, que se mantiveram aliados
da parte derrotada, começaram a colher benefícios políticos, paralelos aos
ganhos geoestratégicos de seus aliados iranianos.
As primeiras
semanas do ataque contra a síria podem ser identificadas nesse paradoxo
observado naquele momento, sobretudo quando a coalizão dos derrotados começou a
aumentar, incluindo George W. Bush, Jacques Chirac e a Casa de Saud e seus
aliados no Líbano, os quais tinham muito a ganhar e muito a perder, tanto em Damasco
quanto em Beirute.
Assim
aconteceu a decisão de tirar do Líbano as forças de Assad – para destruir seus
ganhos em Bagdá. Mais
uma vez, os sauditas foram convencidos pelo comportamento de seus “delegados”
norte-americanos. Mas a coisa durou pouco. Apenas alguns meses depois que o
exército sírio saiu do Líbano, dia 26/4/2005, começou a ficar visível que os
norte-americanos estavam também se recolhendo aos limites demarcados pelo
próprio pragmatismo.
Os sauditas
exigiam que os EUA apontassem a pistola para a cabeça da Síria, mas, em vez
disso, Bush preferiu seguir uma abordagem de “porrete-e-cenoura”. Os sauditas
queriam a “des-Baath-ificação” na Síria, mas os norte-americanos queriam mudar
o comportamento do regime, não mudar o próprio regime.
Saud al-Faisal |
A violenta
resposta dos sauditas a Washington não demorou a aparecer. Como aconteceu outra
vez recentemente, dia 20/9/2005 o ministro de Relações Exteriores saudita, Saud
al-Faisal, criticou furiosamente o governo dos EUA, em discurso no Conselho de
Relações Exteriores em New York City.
Faisal disse
então que a política dos EUA no Iraque estava aprofundando divisões sectárias,
preparando a balcanização do país, o que poderia levar o Iraque a cair nas mãos
do Irã.
A briga
entre Riad e Washington por causa do Iraque continuou durante anos, até que
surgiu uma ocasião para que os dois países novamente convergissem. O primeiro
ponto de convergência entre ambos acontecera no momento de expulsar do Líbano
as forças sírias de Assad; o segundo foi o acordo para restaurar o equilíbrio
no Iraque, apoiando Iyad Allawi nas eleições de 2010.
Saad al-Hariri |
Quando Assad
aceitou o projeto Allawi em Bagdá, a coordenação Síria-sauditas começou em Beirute. Todas as
questões que envolviam os sauditas no Líbano foram postas na gaveta, inclusive
o cargo de primeiro-ministro para Saad al-Hariri, o Tribunal Especial para o
Líbano, as armas do Hezbollah e a presença síria – como se dispôs num famoso
“documento de concessões” do movimento “14 de Março”, que Walid Jumblatt
divulgou dia 21/1/2011, poucas semanas depois de o projeto Allawi estatelar-se
contra o muro, em Bagdá.
O timing não foi simples coincidência. De fato, nas
últimas semanas de 2010, o eixo Síria-Irã conseguiu, mais uma vez, abortar o
sonho saudita. Allawi venceu as eleições no Iraque, mas foi Nouri al-Maliki
quem, afinal, constituiu o governo. O eixo Síria-sauditas teve morte súbita em Beirute. E pouco depois
começou o “levante” em Damasco.
Esses são os
elementos de uma equação bem ampla que afinal se pôde ver: em 2003, os sauditas
perderam o Iraque; os EUA então decidiram garantir-lhes compensação no Líbano e
na Síria, pelas perdas sauditas no Iraque. Em 2005, os EUA recuaram em Damasco. Pela
terceira vez, sauditas e EUA perdiam: no Líbano, na Síria e no Iraque. Então
decidiram virar a mesa toda, de vez, na cadeia central, e derrubar o governo de
Assad em Damasco.
Os EUA são
lacaios do Reino Saudita, ou é exatamente o contrário?
Mas os
cálculos no Oriente são seguidamente muito complexos e, talvez, difíceis demais
para que os compreendam um cowboy distante ou um beduíno próximo. Os EUA
então voltaram à região, com um projeto inspirado, agora, na Primavera Árabe.
Recep Tayyip Erdogan |
O projeto,
de fato, era ideia bem simples, com roteiro assinado por Recep Tayyip Erdogan
da Turquia e dirigido pelos arquitetos dos “levantes coloridos”: entregamos o
poder em toda a Região à Fraternidade Muçulmana, e os Irmãos, em troca, atendem
três demandas – garantem a segurança de Israel, os interesses dos EUA e a
estabilidade dos governos, sem que Washington tenha de pagar a conta.
O trem até
que andou bem por esses trilhos nos primeiros tempos, na Tunísia, no Egito e na
Líbia, mas a hostilidade dos sauditas contra a Fraternidade Muçulmana os levava
a temer que os Irmãos, mais dia menos dia, tomassem o poder nas “cidades de
sal” no Golfo.
Os sauditas,
contudo, mantiveram-se em silêncio por quase um ano e meio. Opor-se a projeto
bem-sucedido é sempre tática não recomendável, e eles se mantiveram recolhidos,
até que, afinal, amadureceram as condições para o fracasso do projeto dos EUA.
Dia
11/9/2012, a promessa de proteger os interesses de Washington entrou em colapso
em Benghazi, com o assassinato do embaixador dos EUA. Em novembro, a demanda de
que a segurança de Israel seria preservada também fracassou, quando irromperam
confrontos em Gaza, e o Hamás não conseguiu fazer valer o compromisso firmado
entre a Fraternidade Muçulmana e Israel. E, no início de 2013, já era
absolutamente evidente que a promessa de estabilidade nos países da Primavera
Árabe estava reduzida a simples piada.
Tudo estava
maduro para que os sauditas retomassem a iniciativa. Tinham tudo preparado para
um contra-ataque, pelo menos desde meados de julho de 2012, quando o príncipe
Bandar foi nomeado espião-chefe do reino.
Mohamed Mursi |
Por muitos
meses, os sauditas haviam feito todo tipo de pressão contra os EUA e os países
árabes, persuadindo Washington pela quarta, ou centésima-milionésima vez, a
fazer o jogo: Mohamed Mursi fora derrubado. O Qatar fora pacificado. A Turquia
fora marginalizada. E Riad assumiu para ela todos os dossiês.
Até aí,
parecia que os sauditas teriam triunfado completamente, e só eles, pela
primeira vez em décadas.
Mas naquele momento, surgiu o acordo das armas químicas,
construído por Moscou. O sorriso nuclear de Hassan Rouhani surgiu em New
York. E tudo veio abaixo.
É esperável
e normal que Riad perca completamente a compostura, a sobriedade e até a razão.
Todas as arenas converteram-se em caixas de mensagens a transmitir as objeções
e rejeições dos sauditas, de Maaloula a Trípoli; e do Tribunal Especial para o
Líbano ao Conselho de Segurança da ONU, com Bandar a esbravejar e berrar, e todos
confusos, sem entender o relacionamento com os sauditas: os EUA são lacaios do
Reino Saudita, ou é exatamente o contrário?
(...)
______________________
[*] Jean Aziz é jornalista do Al-Monitor e colunista
do jornal Al-Akhbar em Beirute; apresentador de um talk show semanal político na OTV,
estação de TV libanesa; professor de comunicação social na American
University of Technology e na Université Saint-Esprit em Kaslik no Líbano
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