Capa do novo livro de Jorge Lescano e algumas razões para recomendá-lo |
Resenha de um livro não lido... Por Raul Longo [*]
Putas, rufiões, malandros, ingênuos... Enganados e enganadores já faziam
parte do universo plástico, dramatúrgico e narrativo de Jorge Lescano quando
minhas preocupações não conseguiam superar o trauma do convívio familiar. No
meu mundo só havia patrões exploradores, operários explorados, capatazes e
policiais repressores, vez por outra alguns corajosos condenados à
marginalidade e, na maioria dos casos, a serem eliminados ao final das
histórias onde tentava dar consistência às existências de vizinhos e parentes,
personagens de meu cotidiano transcritos ao papel.
Invejava a existencialidade dos personagens do Lescano, muito mais rica
do que as dos meus. Até porque mais variados, mais completos. Completando o
universo humano que a mim, ainda em meus 18 anos de idade, era restrito a uma
reprimida experiência pessoal.
Uma geração anterior à minha, vindo de Buenos Aires de onde escapara de
uma feroz ditadura para se encontrar com nossa feroz ditadura brasileira, Jorge
Lescano já lera uma bibilioteca com mais do dobro de volumes do que eu ainda
pretendia ler. Afora isso, aquele índio do norte da Argentina tinha um poder
que me faltava: ele conseguia literalmente dar forma física as suas
personagens, sobretudo às femininas.
Ah! As curvas das mulheres do Jorge!... Atração realçada por lingeries,
meias de nylon e cintas ligas. Por melhor que eu imaginasse minhas prostitutas,
por mais que as vizualizasse em algumas vizinhas e primas de minha infância,
não saberia desenhá-las, dar-lhes formas palpáveis aos olhos. E Jorge desenhava
as suas.
Mas aí havia uma decepcionante mania do Jorge que me angustiava e doía,
pois ao invés de manter apenas o que há de belo e admirável no contorno da
epiderme feminina, seccionava o corpo de suas personagens desenhadas
revelhando-lhes o conteúdo como num efeito de raio-x. Expunha-lhes a anatomia
muscular subcutânea, muitas vezes revolvendo-lhes até os órgãos, as vísceras,
num insólito resultado ao erotismo de um belo seio desnudo ladeado pelas
glândulas do par, ou desfazendo a languidez de uma cintura em pâncreas, fígado,
estômago ou intestino.
Jorge Lescano |
Talvez fosse o caso de sentir-me traído pelo Lescano, mas exatamente pela
sinceridade dilacerante de sua arte concluía que, em Lescano, impossível um
traidor.
E assim o fiz meu mestre. Foi com quem aprendi a escrever. E a ler também.
Na literatura mais o admirava quando multiplicava as personalidades de
seus personagens para o teatro onde a ficção teria de ser não só o enredo e os
personagens, mas inclusive os atores e o próprio teatro como espaço físico.
Também - por que não? - o público e o autor.
No realismo do sardônico humor de Lescano encontrei algo que a princípio
me pareceu proveniente da Commedia Dell'Arte e, sim, havia uma evidente
intenção em ridicularizar absolutismos, fossem monárquicos ou ditatoriais na
conformidade e similaridade dos da época em que, então, vivíamos. No entanto,
havia uma malícia no teatro do Jorge que não arriscaria a dizer mais sutil do
que a da Commedia Dell'Arte, até porque em verdade muito mais sarcástica do que
irônica.
Aquilo decididamente não era europeu, pois estava muito mais pra Pedro
Malasartes do que pra Pantaleão, Matamoros ou Arlequim. Mas, sem dúvida, havia
mais sagacidade, mais argúcia e, como eu não fazia ideia de onde saíra aquilo,
levava em conta de ser apenas alegorias dos eruditismos e da imaginação do Lescano
mesmo.
Mas anos depois fui encontrar aquele deboche, aquela forma de rir quase
pra dentro como quem tenta disfarçar o hilário condoendo-se do ridículo, no
mais profundo de nossos sertões. E, então, lembrei que apesar de todo o
europeísmo desenvolvido ao longo de seus tempos de Buenos Aires, mais as
décadas correspondentes à São Paulo, Jorge Lescano antes de tudo é o que o
chamavam os portenhos: "un cabezita negra". Um índio.
Não li "O Traidor de Dublin", mas todas as indicações que
precedem e complementam o titulo do livro me fazem deduzir que siga a linha de
suas comédias teatrais e, salvo enorme engano em que não creio ter incorrido,
nele se poderá identificar o hipócrita cotidiano que nos sorri pela tela da TV,
na mesa de reunião, no elevador, no outro lado da cerca do vizinho ou - vá se
saber! - até no espelho quando se faz a barba.
Quantas vezes o enganador engana a si mesmo!
Seja em Dublin, Buenos Aires, Cochabamba ou Florianópolis, se trai por
motivos tão ínfímos e casuais que cada um se trai até a si próprio sem nem
mesmo perceber. Posso estar muito enganado, afinal eu e Jorge, hoje, bem pouco
sabemos da produção de um e outro, mas certamente "O Traidor de
Dublin" nos fará rir muito de gente localizada bem mais próximo de nossas
vidas distantes. Inclusive rir de nós mesmos, pois intelectuais e eruditos ou
não, "cabezitas negras" continuam sendo sempre os mesmos índios de
sempre que jamais dão gargalhadas, mas quando se põem a fazer rir é numa
enfiada de princípio a fim. Um rascar infindiável de risos contidos, mas
inevitáveis e, quando menos se espera, se está rindo até de quem jamais se
poderia imaginar tão ridículo pela própria seriedade que cada um,
inadvertidamente, se devota.
Como disse, não li o livro. Melhor assim, pois se o houvesse lido meu
comentário seria ainda mais suspeito. Mas insisto para que se pesquise e
encontre "O Traidor de Dublin" do Jorge Lescano em alguma livraria ou
através de um desses meios de aquisição por encomenda, porque estou certo de
que assim como me aconteceu há pouco tempo, todos sempre iremos nos deparar com
os personagens do Jorge Lescano em qualquer lugar do mundo.
Faz parte da tragicomédia do viver aqui, ou em Dublin.
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Raul Longo - Nascido em 1951 na cidade de São Paulo, atuou
como redator publicitário e jornalista nas seguintes capitais brasileiras: São
Paulo, Salvador, Recife, Campo Grande e Rio de Janeiro, também realizando
eventos culturais e sociais como a “Mostra de Arte Sulmatogrossense”, (Circulo
Cultural Miguel de Cervantes/SP), “Mostra de Arte Latinoamericana” (Centro
Cultural Vergueiro/SP) e o Seminário Indigenista (Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul/CG). Premiado em concursos literários nacionais promovidos pelo Unibanco,
Rede Globo e Editora Abril; pelo Circulo Cultural Miguel de Cervantes; e pelo
governo do Estado do Paraná. Publicou Filhos de Olorum – Contos e cantos de candomblé pela Cooeditora de Curitiba, e poemas
escritos durante estada no Chile: A cabeça de Pinochet, pela Editora
Metrópolis de São Paulo. Obteve montagem de duas obras teatrais: Samba/Jazz
of Gafifa, no teatro Glauce Rocha da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, em Campo
Grande; e Graças & glórias nacionais, no
Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo.Atualmente reside em Florianópolis,
Santa Catarina.
Gostei do seu texto...voce me instigou. Vou ficar no rastro de Lescano e no seu. Abraço!
ResponderExcluirnunca oí hablar de lezcano, en años de vivir en su, mi país...y vengo a enterarme aquí en florianópolis.
ResponderExcluirgracias raúl.
ana lía pujato