24/12/2013, [*] MK Bhadrakumar, Strategic Culture
The
Saudi Anger Has Many Faces (I, II e III)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
I
O rei Abdullah da Arábia Saudita está furioso... |
Na última
quinzena, a Arábia Saudita elevou muito o tom de sua retórica para manifestar
fúria contra as políticas regionais dos EUA no Oriente Médio, especialmente para Síria e Irã. Semana
passada, o tom chegou a picos altíssimos, com duas figuras chaves do regime
saudita alternadamente satirizando e ameaçando o governo Obama.
O desafio
estratégico pelo regime saudita contra os EUA é sustentável, ou logo se verá
que não passa de bravado ou, até, de estratégia de defesa para encobrir
os mais obscuros medos? Há inúmeras razões para supor-se que seja a expressão
de uma ira de muitas faces. Há indicação de que os EUA enviaram luz de alerta à
Casa de Saud, de que a discrição é a melhor face da coragem, e que os sauditas
não estão em posição que lhes permita ameaçar a Casa Branca. É claro que os
sauditas entenderam, mas teremos de esperar e observar, para saber como
assimilarão a “dica”.
A retórica
dos sauditas contra o governo Obama ao longo da última quinzena foi realmente
espantosa, sem precedentes, pelo tom de desafio e forte agitar dos sabres.
Tal
discurso seria impossível durante a presidência de George W. Bush (porque a
família Bush mantém laços muito próximos com a Casa de Saud há três gerações),
mas, além disso, esse tipo de retórica jamais foi estilo saudita. Riad sempre
preferiu operar no subsolo, longe dos olhares de aves de rapina, em tudo que
tivesse a ver com as suas absolutamente importantes relações com Washington.
Analisado o
quadro pelo que se vê por fora, as duas coisas que enfureceram o regime saudita
foram o visível empenho do presidente Obama de fazer avançar o engajamento dos
EUA com o Irã e, em segundo lugar, o absolutamente claro movimento de
Washington, que se desengaja do projeto de “mudança de regime” na Síria. Obama
já fala abertamente sobre um acordo definitivo EUA-Irã sobre a questão nuclear
e vozes de peso, além de funcionários, cada vez mais se fazem ouvir, inclusive
em reunião recente dos “Amigos da Síria” em Londres, no sentido de que pode
interessar à estabilidade síria e à luta contra a al-Qaeda – bem como à segurança
regional em geral – que o presidente Bashar Al-Assad mantenha-se na liderança e
concorra às eleições presidenciais marcadas para o próximo ano.
Certo é, em
todos os casos, que longe vão os dias em que Washington falava de “todas as
opções estão sobre a mesa”, ou de “Bashar tem de sair”. Claro que Riad já viu
tudo isso, tanto quanto já viu também que pouco conseguiu com a robusta
campanha do lobby saudita em Washington, inclusive com a ameaça
implícita de que a Arábia Saudita se aproximaria de outras grandes
superpotências, como contrapeso aos EUA – lobby e ameaça que não
impressionaram o governo Obama. Dito de outro modo, os sauditas vivem hoje
experiência absolutamente nova, a saber: que já não têm poder de veto contra
políticas dos EUA para o Oriente Médio, as quais, doravante, serão construídas
e implantadas como parte das estratégias globais de Washington. Para regime que
investiu fé total no poder do dinheiro para ditar e comandar planos e navegar
livremente pelos corredores do poder em Washington, é mudança de paradigma –
que Riad não está digerindo bem.
Já era
evidente, do ataque muito forte contra o governo Obama, vindo de um importante
príncipe saudita, Turki-al-Faisal (irmão do Ministro de Relações Exteriores,
Saud al-Faisal, ele próprio ex-chefe da inteligência saudita e embaixador em
Washington) em recente conferência de segurança em Mônaco, da qual participavam
políticos importantes, árabes e europeus, além de líderes do empresariado, e,
também em entrevista que deu ao Wall Street Journal, à parte, mas
durante a realização da conferência.
Turki al-Faisal ex-Espião-chefe e irmão de Saud al-Faisal atual MRE da Arábia Saudita |
Turki
virtualmente acusou o governo Obama de perfídia, por ter trabalhado pelas
costas de Riad para fazer avançar a reaproximação com Teerã; disse que
Washington é culpada por “negligência criminosa”, quando a violência na Síria
já custou 130 mil vidas. “O que surpreende é que as conversas que estavam em
andamento [entre Washington e Teerã] foram mantidas escondidas de nós [Riad].
Como é possível falar em confiança, se você mantém segredos, até para os supostos
aliados mais próximos?” – disse
Turki.
Obviamente,
os sauditas ficaram lívidos ao saber que o governo Obama não só não notificou
Riad sobre as conversas secretas com o Irã até o outono (“quando as coisas
ficaram substantivas”), mas, para piorar, esfregou sal na vaidade ferida dos
sauditas ao iniciar aqueles contatos no final de março em Omã, bem no nariz dos
sauditas. Na verdade, o acordo provisório sobre a questão nuclear que foi
discutido em Genebra mês passado, passou a perna nos sauditas, e Turki
manifestou preocupação porque o acordo nada faz para garantir que Teerã não
venha a desenvolver armas atômicas. Por trás de tudo isso, é claro, está a
angústia existencial de que a détente EUA-Irã venha a erodir ainda mais
o status da Arábia Saudita como aliado destacado de Washington no Oriente
Médio.
Assim
também, as marcadas diferenças quanto à Síria isolaram a Arábia Saudita,
internacionalmente e na região. Dois dias depois da fala de Turki, o ataque
contra o governo Obama prosseguiu, dessa vez pelo embaixador saudita no Reino
Unido e membro da Casa de Saud, Mohammed bin Nawaf Abdulaziz al Saud, o qual,
em coluna
no New York Times publicada na 3ª-feira passada praticamente
ameaçou que as políticas dos EUA tanto no Irã quanto na Síria são “jogo perigoso”,
e que a Arábia Saudita “não pode permanecer calada, nem ficará de lado,
inerte”. Alegou que “as políticas dos EUA ameaçam a estabilidade do Oriente
Médio e a Segurança do mundo árabe [...]. O Reino da Arábia Saudita não tem
outra escolha além de tornar-se mais assertivo nas questões internacionais:
mais determinado que nunca em defender a genuína estabilidade de que nossa região
carece tão desesperadamente. [...] Temos de agir para responder a essas
responsabilidades, com ou sem o apoio de nossos parceiros ocidentais”.
Mais
importante, o artigo diz claramente que os sauditas manterão – e aumentarão – o
apoio que dão à Frente Islamista extremista na Síria. “A Arábia Saudita
continuará nessa sua nova trilha, por quanto tempo prove-se necessário” – escreveu
Mohammed bin Nawaf. [1]
Mas a
grande questão é até que ponto o regime saudita avançará nessa sua perigosa
“nova trilha” de desafio estratégico aberto aos EUA?
Para
responder essa pergunta, temos de viajar para bem além de questões síria e
iraniana; até, de volta, a setembro de 2001.
Inexplicavelmente,
o governo Obama permitiu há algum tempo, pela primeira vez, que dois
congressistas – Walter B. Jones (Republicano) e Stephen Lynch (Democrata) –
tivessem acesso às 28 páginas do relatório da Comissão de Investigação de
Inteligência Conjunta [orig. Joint Intelligence Committee Inquiry (JICI)]
sobre o ataque do 11/9, que as famílias das vítimas, sobreviventes mutilados e
o público em geral esperam ardentemente que tragam algumas respostas sobre
conexões sauditas, naquele ataque. Afinal de contas, 15 dos 19 sequestradores
envolvidos no ataque do 11/9 eram cidadãos sauditas e sempre houve notícias
esporádicas de que tivessem ligações com a Casa de Saud e, até, que teriam
recebido apoio financeiro do governo saudita, além do que receberam de vários
estranhos misteriosos milionários sauditas que, naquele momento, moravam em San
Diego.
Walter B. Jones (R) Stephen Lynch (D) |
Eis o que Jones escreveu, redação
dele, depois de ler as 28 páginas top-top secret do relatório da
JICI:
Fiquei absolutamente chocado com o que li. O
que me surpreendeu é que aqueles homens nos quais pensávamos que pudéssemos
confiar me desapontaram. Não posso dizer mais que isso. Tive de assinar um
termo de compromisso/juramento, de que tudo o que li tem de continuar
confidencial. Mas a informação que li ali
me desapontou enormemente.
Para
resumir a missa, no início de dezembro os dois congressistas, Jones e Lynch
apresentaram projeto de resolução que exige que o presidente Obama levante o
sigilo que impede a publicação daquelas 28 páginas (que Bush tornou
absolutamente sigilosas, sob a explicação de que a divulgação daquelas páginas
“viola a segurança nacional”).
Parece que
já começou um jogo de gato-e-rato que envolve a Casa Branca, o Capitólio e a
opinião pública doméstica – além do judiciário norte-americano – e a Casa de
Saud.
II
Há muito
tempo especula-se que aquele relatório de 28 páginas do Joint Intelligence
Committee Inquiry [JICI] de 2002 demonstra que o governo saudita teve, pelo
menos, papel indireto no apoio aos terroristas responsáveis pelo ataque de
11/9.
Bob Graham |
De fato, o
ex-senador Bob Graham, que presidiu a Comissão JICI já disse à imprensa,
sem pedir sigilo, que está convencido de que:
(...) o governo saudita, sem dúvida alguma,
apoiava os sequestradores que viviam em San Diego.
Ora, tudo
persiste até hoje como simples objeto de curiosidade, ou material puramente
especulativo, para diz-que-dizem de deputados, senadores ou mídia – e até,
talvez, do judiciário...
Por
estranha coincidência, semana passada a Corte de Apelação dos EUA manteve o
direito das vítimas dos ataques do 11/9 a dar prosseguimento ao processo que
iniciaram em 2003 para julgar o Reino da Arábia Saudita, acusado de ter
assegurado apoio considerável à al-Qaeda, pouco antes do ataque terrorista. Na
essência, a Corte confirmou que é necessário incluir a Arábia Saudita no
conjunto de acusados (réus) naquele processo.
De fato,
advogados que trabalham nos processos do 11/9 várias vezes já citaram o
relatório JICI, como base para as alegações de que a Arábia Saudita foi
principal fonte de financiamento para a al-Qaeda, mas os que defendem os
sauditas sempre respondem que o relatório JICI disponível para a defesa
não mostra qualquer evidência de que nem sauditas governantes nem funcionários
do governo saudita ou cidadão saudita jamais financiaram a al-Qaeda.
Nesse
ponto, precisamente, é onde ganha importância a liberação para o público de
todo o relatório JICI, completo. É questão de timing estratégico
para o Congresso (e para o governo dos EUA), ou será simples coincidência, que
a Casa Branca tenha liberado aquelas 28 páginas do relatório JICI, para
leitura de dois congressistas, sob estritas condições de confidencialidade,
justamente nesse momento em que a Corte de Apelação se aprontava para
manifestar-se sobre o possível envolvimento (criminal) do governo saudita nos
ataques do 11/9?
Pela via
oposta, o que acontece se, à luz desses desenvolvimentos, as partes que querem
processar o governo saudita insistem em exibir, como prova, o relatório
completo da JICI? Por aí se entra diretamente centro de um labirinto
escuro.
Mas em
última análise, a bola, como dizem os norte-americanos, está na quadra de
Obama. Depende exclusivamente do governo Obama não vetar a resolução do
Congresso para que o estado levante a proibição que impede a divulgação do
relatório JICI, se for aprovada na Câmara de Deputados e no Senado.
Barack Obama |
Aqui é onde
a porca torce o rabo. É fato bem conhecido que, diferente de seus predecessores
no Salão Oval – George Herbert Walker Bush, William Jefferson Clinton e George
Walker Bush – Barack Hussein Obama não é presidente que se envolva diretamente
e pessoalmente e profundamente nas relações com a Arábia Saudita. Obama é
presidente que, como o New
York Times escreveu há alguns
meses no contexto da Síria,
(...) raramente manifestou opiniões de peso nas
reuniões do gabinete, e [cuja linguagem corporal] sempre era bem clara: Obama sempre parecia impaciente ou desinteressado
enquanto ouvia os debates, às vezes passando os olhos pelas mensagens que
chegavam ao seu Blackberry, ou de olhos distantes, mastigando chiclete.
É verdade:
pode não passar de crítica impiedosamente enviesada, de colunista do Times
dedicado a fazer a sua própria opinião pessoal soar como se fosse opinião
pública, porque é claro que Obama compreende a gravidade da crise; mas nesse
caso ele também conhece bem os limites da capacidade dos EUA para influenciar
os pontos mais quentes do Oriente Médio emergente. Como escreveu recentemente
Robert Hunter, ex-embaixador dos EUA na OTAN e diretor de Assuntos do Oriente
Médio no Conselho de Segurança Nacional dos EUA no governo de Jimmy Carter, os
EUA têm alguns interesses específicos a buscar na atual situação no Oriente
Médio e, portanto,
Robert Hunter |
(...) a estratégia dos EUA sobre parceiros e
aliados no Golfo Persa precisa ir além da fixação de instrumentos militares e
focar-se em redesenvolver o engajamento e os compromissos dos EUA em termos não
militares.
Enquanto
isso, de volta ao relatório JICI, aumenta a pressão pública das
“Famílias do 11/9 Unidas por Justiça contra o Terrorismo”, grupo ativista que
reúne as vítimas do ataque, e nem a Casa Branca nem os Congressistas podem ser
indiferentes a uma questão tão fortemente emocional como essa, que deixou marca
indelével na psique nacional norte-americana. Os veículos da imprensa-empresa
mostram o quanto as famílias das vítimas dos ataques do 11/9 apreciaram o
veredito da Corte de Apelação. O pai de um jovem de 25 anos morto na Torre
Norte do WTC disse à rede ABC News:
Esse ano, o Natal chegou antes, para as
famílias do 11/9. Vamos festejar nosso Natal no Tribunal.
Na verdade,
o processo, se efetivamente prosseguir e for bem-sucedido, pode resultar em o
governo e membros da família real saudita que contribuíam para organizações que
financiavam a al-Qaeda terem de pagar indenizações de dezenas, talvez centenas
de bilhões de dólares. Depois que o paquiderme legal se puser em movimento, ninguém
sabe até onde chegará.
O que torna
toda a questão altamente explosiva é que o embaixador saudita nos EUA, na época
dos ataques do 11/9 era ninguém menos que Bandar bin Sultan, atualmente o
espião-chefe de Riad. Além do mais, diz-se que Bandar atuou direta e
pessoalmente sobre Bush Jr., que lhe deu permissão especial, diretamente da
Casa Branca, para a decolagem de um voo fretado (num momento em que o tráfego
aéreo estava fechado sobre todo o território dos EUA), que partiu do Kentucky,
com 144 pessoas a bordo, inclusive vários membros da família bin Laden, para
que não fossem revistados, entrevistados, contatados nem de modo algum
perturbados por efeito dos ataques de 11/9. Depois do voo, funcionários do FBI
foram citados, dizendo que o pessoal que fugira dos EUA por intervenção de
Bandar (com ativa colaboração pessoal de Bush) era “gente que interessa”.
De fato, a
parte mais curiosa é que Bandar também é hoje o personagem chave que conduz
avante o projeto saudita para derrubar o governo legítimo do presidente Bashar
Al-Assad na Síria. Dito de outro modo: Bandar, que pode vir a ser intimado a
depor num tribunal criminal norte-americano que julga o processo das famílias
das vítimas do 11/9, é exatamente o mesmo Bandar que, no campo operacional,
ameaça torpedear o mais bem construído plano de todo o governo Obama para
chegar a um acordo político para a questão síria, na Conferência Genebra-2.
Elizabeth Dickinson |
Interessante
também, como digressão, que o Saban
Center for Middle East Policy do Brookings
Institute (o mesmo, cujo Fórum Obama escolheu recentemente para dar as
primeiras notícias importantes sobre o novo engajamento dos EUA com o Irã)
acaba de lançar estudo exaustivo, assinado por Elizabeth Dickinson, especialista
em Oriente Médio, sob o título “BRINCANDO COM FOGO: Por que o financiamento
privado do Golfo para extremistas na Síria pode incendiar o conflito sectário
também em casa” [orig. PLAYING
WITH FIRE: Why Private Gulf Financing for Syria’s Extremist Rebels Risks
Igniting Sectarian Conflict at Home].
O trabalho
de análise foca em como o Kuwait “emergiu como organização guarda-chuva
financeiro e organizacional para organizações
de caridade e indivíduos que apoiam vasta variedade de grupos rebeldes na
Síria”; e diz que “doadores do Golfo contribuíram para o alinhamento ideológico
e estratégico que há hoje entre os grupos rebeldes [na Síria], com os extremistas
no comando militar das ações”.
O que se vê
– e esse talvez seja o aspecto que Bandar deve observar com máxima atenção e
seriedade – é que Washington está monitorando de perto o apoio a grupos jihadistas
extremistas que operam na Síria, apoio que lhes é assegurado pelos
petro-estados do Golfo Árabe e suas chamadas organizações de caridade. O documento diz claramente:
O Tesouro dos EUA tem conhecimento dessa
atividade e manifestou preocupação sobre esse fluxo de financiamento privado.
Nesse ponto,
pode-se acrescentar a esse caldeirão fervente mais um ingrediente: a luta
interna pelo poder dentro do regime saudita, com Bandar convertido em alvo de
críticas (raríssimas), na própria imprensa-empresa saudita.
Jamal Khashoggi |
O bem
conectado escritor e jornalista saudita Jamal Kashoggi escreveu recentemente no
jornal Al Hayat do establishment saudita, crítica velada, mas
perfeitamente inteligível, contra Bandar:
Seria erro desafiar o poder da história, com
a ilusão de que os poderosos poderiam forjar acordos e planejar o futuro
distanciados dos povos que, divididos e sem qualquer contato ou experiência com
a democracia, acabam abusados por forças locais, regionais e internacionais.
Mesmo assim, esses povos continuam em estado de liquidez e fúria. Sabem o que
querem, mas estão confusos sobre como chegar lá. O que é certo é que não
esperarão que um cavaleiro surja, montado num cavalo branco, para guiá-los a
uma nova luminosa aurora. O tempo do só-eu-posso-tudo acabou.
Kashoggi
não escreveria isso, se não tivesse firme convicção de que o que escreveu tinha
de ser escrito.
III
Bandar bin Sultan, atual Chefe da Inteligência Saudita |
A fuzilaria
de Jamal Kashoggi contra o príncipe Bandar bin Sultan é o máximo a que pode
chegar a crítica na imprensa-empresa saudita contra membro poderoso da Casa de
Saud, mas, de fato, as tensões entre os príncipes rivais já respingam para os
jornais; e as políticas que Bandar, atual chefe da inteligência saudita, já
começam a ser atacadas.
Além do
mais, a Síria não é o único front no
qual Bandar está ou esteve envolvido. Bandar também pilotou, em nome dos
sauditas, o golpe militar no Egito. De fato, em todos os teatros onde se veem
as pegadas de Bandar – Egito, Iêmen, Líbano, Síria – as coisas vão mal para a
Arábia Saudita e são teatros interconectados.
O Egito
parece ser o albatroz no pescoço dos sauditas. [2]
A expectativa saudita era que o país fosse rapidamente pacificado, mas a
agitação só fermenta, sem fim à vista. O desenvolvimento mais recente é que a
Fraternidade Muçulmana, de longe o grupo mais bem organizado e a plataforma
política mais popular no Egito, foi declarado “organização terrorista”.
Democracia e estabilidade “inclusivas” e a recuperação econômica do Egito são
hoje quimera, algo que a atual geração não conhecerá. Pois mesmo assim a Arábia
Saudita mantém e financia aquele estado paralisado e falido. Até quando poderá
continuar?
Os Emirados
Árabes Unidos já informaram ao Cairo que o apoio árabe para a junta não durará
muito. Já se comparou a mais recente dose de ajuda enviada dos Emirados ao
Egito ($3,9 bilhões) a transfusão de sangue a doente que sangra rapidamente,
incessante e incontrolavelmente. De fato, o confronto entre a deposta
Fraternidade Muçulmana no Egito teve impacto real nos alinhamentos regionais.
Levou a Turquia para os braços do Irã. Teerã já começou a falar das relações
iraniano-turcas como “de raízes profundas e fraternas”. Isso tudo considerado,
o front egípcio está dando
terrivelmente errado para Bandar. Bem claramente, as coisas chegaram a um ponto
no qual as tensões em torno de tanto aventureirismo vão-se convertendo em
disputas por poder dentro da própria Casa de Saud.
Em suma, a
retórica estridente que cerca hoje as políticas externas sauditas, que sempre,
tradicionalmente, foram discretas e cautelosas e conduzidas sem oposição, tem
muitas faces. Tem de ser vista como a irrupção de várias tensões que se
sobrepõem na matriz complexa que cerca a Casa de Saud, onde grupos rivais
disputam as atenções do velho rei e as rivalidades já contaminam o rumo que o
grupo de Bandar está dando às políticas externas sauditas. Elaborando sobre
esse tópico recentemente, David Hearst, do The
Guardian (UK), resumiu
bem:
David Hearst |
Intrigas de corte podem explicar por que a
política externa saudita, que sempre foi discreta e cautelosa e conduzida quase
sempre na coxias, está hoje tão exposta. Pode ser efeito de uma obsessão
antiga, que sempre abala as monarquias absolutas: a luta pela sucessão.
Mesmo
assim, a grande pergunta permanece sem resposta: até que ponto a Arábia Saudita
empurrará o envelope e desafiará as estratégias dos EUA na Síria e no Irã?
Chegará ao ponto de realmente comprometê-las? A intervenção saudita no Bahrain
mostra que, onde seus principais interesses estejam envolvidos, Riad é capaz de
agir com força extrema. Não há dúvidas de que Riad temia muitíssimo que o
levante xiita no Bahrain viesse a ter ressonâncias nas províncias leste da
Arábia Saudita, dominadas pelos xiitas, e um empoderamento de xiitas dessa
magnitude teria efeitos em vários teatros da política regional. Não
surpreendentemente, os sauditas patrocinaram a violenta repressão dos xiitas no
Bahrain. Não havia crítica ocidental, por mais ampla ou forte que fosse, capaz
de levar os sauditas a repensar sua política para o Bahrain.
Por tudo
isso, devem-se acrescentar muitos pontos de interrogação no pedido-monstro que
os sauditas encaminharam, para compra de 15 mil unidades de mísseis antitanques
–, a serem comprados da empresa Raytheon, ao preço de mais de $1 bilhão. Não é
concebível que a Arábia Saudita esteja sob risco de invasão por tanques, e,
seja como for, o país já tem estoques gigantes, de mais de 4 mil mísseis
antitanques. Como seria de esperar, os especialistas perguntam-se: mas... e de
onde virá a ameaça?
Não há nem
a mais remota chance de a Arábia Saudita envolver-se em guerra de solo, de
contato, com o Irã. Qualquer contato entre os dois adversários, se houver, será
naval ou aéreo. Sofisticados mísseis antitanques não têm utilidade nas
operações sauditas no Bahrain ou no Iêmen. E a Arábia Saudita tampouco se vê
ameaçada pelo Iraque.
Charles Freeman |
A única
explicação plausível a que chegaram os especialistas é que essa recente compra
saudita pode estar conectada à guerra de Bandar na Síria. É possível que os
sauditas tenham mandado para longe suas armas antitanques, servindo-se de
outras fontes (não de fontes norte-americanas, porque os EUA monitoram de perto
todos os deslocamentos de armas enviados a terceiros) e estejam substituindo as
peças de seu próprio arsenal, com material recém-chegado dos EUA. Como disse o
ex-embaixador os EUA na Arábia Saudita, Charles Freeman:
Eu diria, especulativamente, que, com um
pedido desse tamanho ($1 bilhão), os sauditas estão descarregando seus atuais
arsenais na direção da oposição, e substituindo-os por novos itens.
Se for
isso, e Bandar estiver realmente pressionando à frente rumo à guerra saudita
contra o regime sírio, inobstantes os recentes sinais emitidos pelas potências
ocidentais, as conversas de Genebra-2, mês que vem, podem não levar à remoção
do presidente Bashar Al-Assad; e não só sua minoria alawita permanecerá como
presença chave em qualquer governo de transição: o presidente Bashar Al-Assad
pode também concorrer outra vez à eleição presidencial.
Mas, sim,
há outro modo de olhar para tudo isso. Para citar David Kenner,
editor-associado da revista Foreign Policy:
Mas a intenção dos sauditas pode ser comprar
as armas, mais que qualquer outra coisa. Num momento em que estão às turras com
Washington por causa da diplomacia do governo Obama para o Irã e a não
intervenção na Síria, os bolsos fundos do reino podem, pelo menos, providenciar
para que seus laços com o Pentágono permaneçam tão fortes e firmes como sempre.
De fato. Há
motivos para crer que grossas camadas de mentiras e enganação ofuscam as reais
intenções que há por trás da retórica saudita.
Considerem,
por exemplo, as reuniões supostamente secretas entre sauditas e israelenses. De
repente, a cortina inexplicavelmente se abriu sobre essas reuniões, por mais
que as cogitações sauditas-israelenses fossem segredo conhecido há anos, também
em nível de inteligência, e um dos fios sempre entretecidos na complicada
tapeçaria política do Oriente Médio. Bem claramente, os recentes vazamentos são
parte da “guerra psicológica”. E, na realidade, tudo pode bem ser, só, uma
limitada coincidência de interesses sauditas e israelenses.
Bernard Haykel |
O que
realmente importa é que Israel e Arábia Saudita operam em níveis enormemente
diferentes em Washington. As conexões de Israel nos EUA são profundas e cobrem
os padrões políticos, culturais e religiosos da sociedade norte-americana,
enquanto o lobby saudita só opera em nível superficial. No coração da
diferença está a realidade objetiva de que Israel tem a capacidade para agir
para salvaguardar seus interesses de segurança, e por mais que vez ou outra
faça pesar a atmosfera sobre os laços com a Casa Branca, esse sempre será traço
transitório, e as relações em geral sempre se recuperam, sem grande dano. A
Casa de Saud, por sua vez, depende completamente da proteção militar dos EUA.
Em
interessante artigo recente, escrito em conjunto por Bernard Haykel, o
conhecido professor de Estudos do Oriente Próximo em Princeton, e Daniel
Kurtzer, ex-embaixador dos EUA em Israel e no Egito, eles
resumem:
Diferente de Israel, a Arábia Saudita tem
pequena influência na política doméstica dos EUA, além do apoio de alguns
homens do petróleo e fabricantes de armas. Os reis sauditas sequer mantêm
relação pessoal calorosa com o presidente Barack Obama, como mantiveram com os
presidentes H. W. George Bush, George W. Bush e Bill Clinton, que geriam pessoalmente
as relações bilaterais. Assim como não é provável que sauditas e israelenses
rebaixem suas relações com os EUA, menos provável ainda é que se aproximem entre si.
Daniel Kurtzer |
Haykel e
Kurtzer estimam que qualquer “coordenação diplomática e militar entre israelenses
e sauditas pode até gerar manchetes, mas, muito provavelmente, sempre será
ficção”.
Por tudo
isso, a que se resume o borbulhante descontentamento dos sauditas? A questão é
que Riad está cada dia mais desesperada. Considera a Síria uma guerra por
procuração contra o Irã e quer que os EUA apoiem o esforço saudita. Não está
acontecendo. Em vez disso, Washington engaja o Irã e no processo está dando a
Teerã uma nova legitimidade, o que é anátema para Riad. Essa é uma charada que
não se deixará resolver facilmente e a Arábia Saudita terá de aprender a viver
com ela – pelo menos durante o governo Obama...
Notas dos tradutores
[1] Ver também 22/12/2013, The Saker, Blog The Vineyard of the Saker, redecastorphoto
em: “A
Casa de Saud ameaça: verdade ou encenação?” (traduzido).
[2] É metáfora albatross
frequente em inglês, a partir de versos de Coleridge, sobre um marinheiro que
vê um albatroz a seguir seu navio (o que todos os marinheiros entendem como
sinal de sorte), mas mata o albatroz (o que converte o bom presságio em mau
presságio). Para tentar impedir as desgraças provocadas pelo assassinato do
albatroz, o marinheiro que o matou é condenado a andar com o corpo do albatroz
morto enrolado no pescoço, o que ele faz, até a morte. A metáfora, ligeiramente
modificada, também ocorre em francês, pelo L'Albatros de Charles
Baudelaire, em Les Fleurs du Mal .
___________________
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior
da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka,
Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em
questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e
segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia
Times Online, Strategic Culture, Global Research e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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