8/1/2014, [*] Peter Lee, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O Poder Absoluto Corrompe Absolutamente |
Lord Acton,
historiador e político britânico do século 19, disse, em frase que ganhou fama,
que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Quase parece
que os EUA tiveram acesso a documento actoniano
secreto que autorizaria uma ressalva: “Mas e a dominação pelo poder dos EUA?
Ah, bom! Aí, é diferente. Aí, pode!” – porque o governo em Washington parece
gostosamente cego e surdo a todos os perigos, os riscos, os custos de adquirir
e afirmar sua (de Washington) dominação global total.
“Dominar” –
ter capacidade não superada para dirigir os eventos, praticamente o contrário
de ter poder suficiente só para proteger e deter – é coisa que parece misturada
e assada na própria massa da política dos EUA.
Como o
presidente Barack Obama disse em documento intitulado “Sustaining US Global Leadership” [Sustentar a Liderança Global dos
EUA] (no qual, compreensivelmente, prefere dizer que a
liderança dos EUA é “demandada” pelo resto do mundo, em vez de dizer que é
buscada pelos EUA, porque interessa aos interesses dos EUA):
Barack Obama |
Estou decidido a conseguir que superemos com
responsabilidade os desafios desse momento e que possamos emergir ainda mais
fortes, de modo que preserve a liderança global norte-americana, [e] mantenha
nossa superioridade militar (...) superar aqueles desafios não pode ser
trabalho só dos militares, razão pela qual reforçamos as ferramentas do poder
norte-americano (...) num mundo em mudança que demanda nossa liderança, os EUA
permanecerão como a maior força pela liberdade e pela segurança, que o mundo
jamais conheceu.
Como se lê
na edição mais recente da Quadrennial
Defense Review:
Os interesses e o papel dos EUA no mundo
exigem forças armadas com capacidades não superadas e disposição da nação para
usá-las em defesa de nossos interesses e do bem comum. Os EUA continuam a ser a
única nação capaz de projetar e sustentar operações de grande escala sobre
grandes distâncias. Essa posição exclusiva gera uma obrigação de ser guardiões
do poder e da influência que recebemos da história, de nossa determinação e da
circunstância.
Como se lê,
da Agência da Defesa Para Projetos de Pesquisa Avançada [orig. DARPA,
Defense Advanced Research Projects Agency): A missão da DARPA é manter a
superioridade tecnológica dos militares norte-americanos e impedir surpresa
tecnológica que cause dano a nossa segurança nacional, mediante o financiamento
de pesquisa revolucionária, de alto resultado, que preencha a distância entre
descobertas e invenções fundamentais e seu uso militar.
E como se
lê da irmã menos afamada da DARPA, a IARPA , que serve à CIA, à Agência de Segurança
Nacional e ao resto da comunidade da espionagem:
A Atividade de Projetos de Pesquisa de
Inteligência Avançada [orig.
Intelligence Advanced Research
Projects Activity (IARPA)] investe
em programas de pesquisa de alto risco e altos resultados que têm potencial
para suprir os EUA com vantagem notável de inteligência sobre futuros
adversários.
Edward Snowden |
Deve-se
notar que o elemento que mais chama a atenção nas revelações de Edward Snowden
sobre a Agência de Segurança Nacional e na resposta do governo Obama, é que a
ASN teria a atribuição de “guardar tudo”, quer dizer, teria total dominação
sobre toda a vigilância em todas as jurisdições não norte-americanas, e parece
visceralmente e constitucionalmente incapaz de tolerar qualquer tipo de limite
teórico às suas habilidades para interceptar todas e quaisquer comunicações.
Dominação é
vício que custa caro, em termos políticos, sociais e, também financeiros. Com a
parte que cabe aos EUA no latifúndio planetário já diminuindo a olhos vistos,
não surpreende que a dominação pelos EUA esteja sendo desafiada; e mais
indiretamente, em termos de desintermediação (o surgimento de estruturas
alternativas não centradas nos EUA, de uma das quais já se ouviu falar, na
ameaça, feita pelo Brasil, de desconectar-se da internet norte-americana), que em algum tipo de confrontação mano
a mano.
O resultado
é instabilidade assustadora, em vez da ordem tranquilizadora que se espera
obter de uma hegemonia [2] não desafiada.
No Oriente
Médio, onde a força militar decisiva estava nas mãos de nossa aliada, Israel; o
nosso adversário designado, o Irã, era uma clara potência de terceira ordem; os
EUA tinham a notável, servil assistência da Organização do Tratado do Atlântico
Norte, OTAN, para organizar e liderar seus aliados; e campanhas contra cinco
potências refratárias (Iraque, Afeganistão, Irã, Síria e Líbia) produziram
vastos resultados que podem ser divulgados como Vitória”, os EUA ainda
encontraram considerável e custosa resistência, quando tentaram falar como manda-chuvas.
E que fim
levou o “movimento de pivô” do governo Obama rumo à Ásia, onde nosso adversário
não designado, a República Popular da China, tem população de 1,6 bilhões,
bombas atômicas, e a segunda maior economia do mundo, e nosso aliado chave, o Japão,
está emergindo como força regional independente?
Essa não é
receita para dominação confortável, nem unilateralmente, nem como líder de uma
coalizão regional.
O indicador
chave das ambições de dominação dos EUA na Ásia é a notória “Batalha Ar-Mar”
[orig. “Air Sea Battle”], peça quase pornográfica de autogratificação de
think-tank que recomenda que os EUA
construam colossal presença militar no Pacífico Ocidental para
sobreviver (e, claro, triunfar) no pior cenário possível de ataque de “pleno
espectro”, pela China, contra instalações militares dos EUA.
Batalha Ar-Mar na Ásia (clique na imagem para aumentar) |
A “Batalha
Ar-Mar” está agora em situação de hiato, não por suas premissas improváveis,
suspeito eu, mas por causa do caráter explode-orçamento daquele esforço para
enfiar, como penetra em baile, alguma absoluta dominação militar
norte-americana na equação da segurança asiática.
Mesmo que a
“Batalha Ar-Mar” esteja posta de lado, nem assim vejo qualquer indicação de que
os EUA deem-se conta da preocupante implicação, pela qual essa ambição de dominação
militar absoluta pelos EUA, nos desmesuradamente caros confins da Ásia, é sonho
inatingível; nem creio que os EUA tenham consciência – nem, tampouco, doutrina
ou estratégia – para lidar com a mais apavorante das contingências: um “mundo
multipolar”, no qual os EUA, como outras potências regionais – Índia, Brasil e
África do Sul – são forçados a definir, refinar e buscar os próprios
interesses, sempre mediante dura barganha com uma nuvem sempre mutável de
parceiros militares, econômicos e diplomáticos oportunistas.
No meu
artigo de final de ano, para Asia Times Online, (Erase that war with China 'in
2014', 23/12/ 2013), escrevi que o último ano do governo Obama
parecia reconhecer, parcialmente, a existência de uma hegemonia-charada da
Ásia; e tinha recuado da confrontação “na cara deles” que Hillary Clinton e o
tal “movimento de pivô” encarnavam.
John Kerry |
Como
sintoma – que é o contrário de “causa” – falei da migração do portfólio
“China”, para bem longe de Susan Rice, primeira escolha do presidente Obama
para sua Secretária de Estado (além de autora dos desastres líbio e sírio, e
cápsula viva a injetar vitríolo anti-Rússia e anti-China na ONU), e na direção
do secretário “sempre se dará algum jeito” (e arquiteto da reaproximação
Vietnã-EUA) John Kerry.
O governo
da República Popular da China tem esperanças, creio eu, de que esse
desenvolvimento represente uma evolução do pensamento norte-americano, de
afastar-se da estratégia da “contenção-só-que-mudou-de-nome” chamada “pivô”,
que parecia somar uma catarata estratégica e uma catarata econômica de tensões
extremadas entre as democracias asiáticas e a China, para um arranjo de poder
mais bem equilibrado, que reconhece as vantagens de os EUA ocasionalmente
aliarem-se à China para moderar as ações desestabilizadoras do Japão e de
outros países asiáticos, excessivamente reforçadas pelo “movimento de pivô”.
Por baixo
do rancor (e da cobertura negativa) gerado pelo abuso serial, pela China,
contra jornalistas de veículos ocidentais de prestígio, foi o que aconteceu em
2013, com os EUA cautelosamente colhendo alguns ganhos geopolíticos do pivô,
especialmente Mianmar, mas lutando para manter o Japão na categoria de “poodle
britânico” dos aliados úteis, sem deixar que caísse na categoria “Israel do
Pacífico” e perpétua dor de cabeça, sempre a explorar o poder dos EUA.
No longo
prazo, não estou otimista: não conto com que os EUA aceitarão um arranjo de
equilíbrio de poder na Ásia.
A irrazoabilidade
dos EUA no Pacífico em 2013 foi, com certeza, questão de conveniência e tática,
não de convicção.
Vladimir Putin |
Na Europa
Oriental, tratou-se de contenção, como sempre, com EUA e forças ocidentais
combinadas para malhar Vladimir Putin por sua política externa
desagradavelmente assertiva e independente. Aí se incluem atividades como a
inserção de apoio ocidental pró elementos europeus na crise política da
Ucrânia, e esforços infantilóides para arruinar para Putin os Jogos Olímpicos
de Putin, anunciando o envio legiões de atletas homossexuais, em lugar de
chefes de Estado, para as cerimônias de abertura em Sochi.
Espero
ansiosamente que aconteça o concerto da banda “Agito das Bucetas” (Pussy
Riot), para o presidente Obama, no Kennedy Center, com os pagãos da
empresa-imprensa ocidental em êxtase ante aquela mágica convergência de arte,
ativismo e princípios.
Seja como
for, de volta à Ásia.
Prevejo
que, tão logo Japão e EUA alcancem um encontro das mentes (o qual incluirá
provavelmente os EUA aceitarem a completa reconstrução militar do Japão e o
abandono da Constituição pacifista, enfiando-se embaixo do tapete a certeza de
que o Japão já está no limiar, como potência nuclear; em troca de alguma
obediência pública ao princípio, se não à realidade, da liderança dos EUA na
Ásia), a República Popular da China terá pela frente uma renovada campanha de mentiras,
pressão e desprezo.
Trabalho
com a hipótese-aposta de que o ponto de virada bem pode ser Taiwan.
Se os
índices de desaprovação de Ma Ying-jeou, atual líder supremo do Kuomintang, são
indicativos de alguma coisa, é bem possível que, à altura de 2017, o governo de
Taiwan venha a estar nas mãos do Partido Democrático Progressista [orig. Democratic
Progressive Party (DPP)], tradicionalmente o partido dos taiwaneses nativos
(em oposição aos “continentais” pós-1949), que não se interessam pela
“reunificação” com o continente e têm declarada preferência por formalizar a
independência de facto de Taiwan.
Taiwan,
desde 1895, recebe os efeitos inegavelmente benéficos da atenção imperial
japonesa, e muitos taiwaneses da velha geração ainda guardam lembranças
positivas fortes de seu relacionamento com o Japão. Lee Teng-hui, o primeiro
líder taiwanês nativo da República da China e figura política ainda importante,
não tem feito segredo de que prefere o Japão à República Popular da China.
Depois que deixou o poder, visitou o Japão e visitou, até, o afamado Santuário Yasukuni,
para prestar homenagem ao seu irmão, que morreu como soldado japonês nos anos
1940s.
Os
nacionalistas japoneses de direita (em cujas hostes brilha o Primeiro-Ministro
Shinzo Abe, embora esse seja um dos fatos desconfortáveis fixados por
jornalistas ocidentais entre os males da República Popular da China, e que as
virtudes do Japão democrático não parecem capazes de engolir), cultivaram
relações com o Partido Democrático Progressista , antecipando o momento em que
um regime de um DPP hostil à República Popular da China e amigo do Japão
possa voltar ao poder.
Su Tseng-chang, Ma Ying-jeou |
Quando Su
Tseng-chang, presidente do DPP e provável candidato presidencial na
próxima eleição, visitou o Japão em fevereiro de 2013, a mídia em Taiwan
noticiou que ele tinha planos para visitar Shintaro Ishihara, nacionalista
japonês muito conhecido, que iniciou a compra nacional das três ilhas Senkaku.
(No artigo de final de ano para Asia Times Online, escrevi, talvez
incorretamente, que o encontro aconteceu; o grupo de Su declarou que não
haveria encontro; mas desconfio que não passasse de formalidade – “não há
encontros individuais formais previstos na agenda de viagem” – e que Su e
Ishihara deram jeito de reunir-se).
Ideia
popular dentro do DPP é que as Senkakus pertencem ao Japão; seja como
for, há poucos votos a obter dentro do DPP para quem se posicione a
favor da China e contra o Japão, na questão das ilhas.
Se, em
2017, o DPP estiver no poder em Taiwan e o grupo de Abe do LDP ainda
tiver votos no Japão, o cenário estará pronto para uma escalada interessante e
bastante perigosa, que talvez envolva Taiwan renunciar aos direitos que diz ter
sobre as ilhas, em favor do Japão. O pior caso, é claro, é que se anuncie um referendum
da independência de Taiwan, apoiado pelo governo japonês.
Nessa
situação, os EUA, ante essa “escolha de Hobson”
(“escolha o que quiser” – mas, de fato, você só pode escolher uma das
alternativas), entre repudiar a independência de Taiwan e a posição do
Japão-aliado, ou apoiar a tirania da República Popular da China, ficará
absolutamente sem espaço para barganhar.
E o resultado
paradoxal do vício obcecado pela dominação será os EUA já reagindo,
encurralados pelos eventos na Ásia, em vez de comandando os eventos na Ásia.
___________________
Notas dos tradutores
[1] Orig. US:
Hooked in hegemony. Decidimos que, como leitores aplicados de Gramsci,
não traduziremos “hegemony” por “hegemonia”, sempre que a palavra for usada por
não gramscianos como sinônimo de “dominação” (em Gramsci, “hegemonia” não é
“dominação”). Então aí fica “dominação”, onde o autor quis dizer “dominação” (e
diz!), mas escreveu “hegemony”. Comentários e correções são bem-vindos.
[2] Aqui se vê, clara, a diferença entre “hegemonia” e “dominação”, para
Gramsci: nenhuma “dominação” gera(ria) “ordem tranquilizadora”.
_______________________
[*] Peter Lee é
jornalista norte americano de origem chinesa que escreve sobre assuntos dos
países do sul e leste da Ásia e a intersecção de negócios entre essa região e
os EUA. Além de articulista de várias publicações anima o blog China Matters.
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