quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Contra insurreição urbana armada: de volta ao básico

19/2/2014, The Saker, The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

The Saker
Enquanto se desenrolam os dramáticos eventos na Ucrânia, a questão de o que o presidente Yanukovich pode, ou não pode, fazer volta com regularidade à discussão; e acho que é mais que hora de voltar ao básico e examinar o que um governo – qualquer governo, independente de orientação política – pode e mesmo deve fazer, se confrontado com uma insurreição urbana armada.

Primeiro, um Chefe de Estado, qualquer Chefe de Estado, tem obrigação de defender a Constituição e de manter a lei e a ordem, de proteger seus cidadãos contra abusos e violência contra a pessoa deles e contra as propriedades deles. Soa como frase feita? Sim, mas o conceito importante aqui é o que tudo isso é dever, não é nem direito nem opção.

Segundo, um chefe de Estado, qualquer chefe de Estado, é Comandante-em-Chefe das forças armadas do país no sentido mais geral da palavra: quer dizer, de todas aquelas forças, unidades e indivíduos aos quais são entregues os instrumentos de violência para proteger o país: militares, polícia, forças do Ministério do Interior, polícia antitumultos, guarda nacional, o que houver. Assim, e como qualquer Comandante-em-Chefe, o Chefe de Estado também carrega a responsabilidade radical pela vida e bem-estar não só dos cidadãos que essas forças existem para proteger, mas, também, das próprias forças que obedecem a suas ordens. Outra vez, não é ideia original, mas, ainda assim, tem sido repetidas vezes esquecida na atual situação (mais sobre isso, adiante).

Manifestações pró-União Europeia em Kiev -  nov/2013
Agora, consideremos com que tipo de “oposição” temos de lidar no centro da cidade de Kiev.  Segundo a maioria dos relatos, é grupo muito diversificado de pessoas:

1) Ucranianos “comuns” (“comuns”, no sentido de “não alinhados politicamente”) fartos da corrupção, da pobreza, da incompetência, arrogância e violência das elites governantes. É o tipo de gente que se via pelas ruas de Moscou ou São Petersburgo no início e meados dos anos 1990s, tentando desesperadamente ganhar a vida, ao mesmo tempo em que tentava não se deixar matar nem roubar pelas inúmeras gangues mafiosas e funcionários corruptos que os caçavam pelas ruas. Esses são manifestantes, mas, crucialmente importante, são não violentos. Para nossas finalidades, chamaremos esse grupo de “civis”.

2) Vários tipos de manifestantes que querem usar de violência contra a Polícia, contra outros manifestantes e contra prédios. A esses chamaremos “os vândalos”.

3) O passo acima são os vândalos organizados em equipes ou grupos armados com vários tipos de armas improvisadas, mas letais, incluindo não só barras de ferro e furadores de gelo, mas também coquetéis molotov, facas, porretes, pistolas, rifles e até veículos (caminhões e tratores usados como arma para atropelar policiais). São, aqui, “gangues urbanas”.

4) Por fim, há alguns poucos indivíduos bem treinados, que atuam em pequenas equipes para tarefas especiais, como fogo de atiradores postados em pontos estratégicos, demolições, sequestros, tomada de reféns e assassinatos. São “terroristas”.

Hoje, e dado que todos os lados mentem, é difícil estimar com precisão a proporção de cada um desses grupos nos confrontos em Kiev, mas pode-se afirmar com segurança que todos esses elementos estão ativos na cena.

Polícia antitumultos (Berkut) é atacada por terroristas com coquetéis Molotov
Agora, consideremos o que o governo usou, como forças suas, contra esses elementos: polícia comum, polícia antitumultos (os Berkut) e, segundo notícias recentes, cerca de 500 soldados de infantaria para proteger alguns depósitos de armas nos arredores de Kiev (que não participam nos eventos no centro de Kiev). Tanto quanto sei, as forças de polícia regulares foram mantidas na retaguarda, e os combates propriamente ditos só envolveram os policiais antitumulto, os Berkut. Outra vez, é difícil afirmar se é verdade ou não, mas funcionários ucranianos têm afirmado que os Berkut não estão usando munição real, só balas de plástico. Têm granadas de efeito moral, cassetetes e canhões de água. Todos os vídeos e imagens que examinei até agora confirmam isso, pelo menos em Kiev.

Acabo de assistir a um vídeo do que parece ser tentativa, por vândalos, para invadir um prédio do Serviço Ucraniano de Segurança [orig. Ukrainian Security Service (SBU)], que resultou em uma rajada de tiros de arma automática de dentro do prédio, que atingiu e possivelmente matou um ou mais vândalos. Considerado o nível dos buracos de bala na janela, parece-me que os tiros foram dados de cima para baixo, de uma posição mais alta dentro do prédio, e que os vândalos podem ter sido atingidos por balas ricochetadas. Parece-me que aconteceu na cidade de Khmelnytskyi, no oeste da Ucrânia.

Apesar de saber que as dinâmicas podem ser diferentes noutros locais, quero focar o que está acontecendo no centro de Kiev, na Praça Independência (vulgo “a Maidan”) e ruas circundantes.

O que um governo deve fazer, se posto diante do tipo de ganguesterismo e caos que se veem em Kiev?

Meu parecer é que a primeira tarefa, imediata, é conter a violência e tentar separar, o mais completamente possível, os civis, dos vândalos, gangues urbanas e terroristas. Dado que é absolutamente impossível mandar os policiais e retirar os civis um a um, muito menos pela força, o governo pode, por alto-falantes ou por panfletos lançados por helicópteros, tentar convencer os civis (não violentos) a voluntariamente deixar uma área na qual a violência está onipresente. Esses tipos de medidas em geral têm efetividade mínima, mas cumprem uma importante função legal: são indicativas dos esforços, pelas autoridades, para discriminar entre os vários grupos em cena, e da tentativa para preservar a segurança de passantes ou manifestantes inocentes.

Nazi-fascistas do Pravy Sektor armados para enfrentar os Berkut
No mínimo, esses alertas põem a responsabilidade pelas consequências de rejeitar a ordem para dispersar sobre os próprios civis que, ao se recusarem a dispersar, tomam voluntariamente a decisão de permanecer ao lado de vândalos, gangues urbanas e terroristas violentos. Em todos os casos, entendo que o governo sempre terá como argumentar a seu favor que, depois de os alertas terem sido repetidos por tempo razoável, já não se pressupõe que ainda haja civis nas áreas conflagradas. Pode soar ‘duro’ ou cruel contra os civis ingênuos ou simplesmente estúpidos que inevitavelmente ignorarão os alertas, mas é preciso não esquecer que os governos têm a obrigação de proteger não só a vida de civis envolvidos em agitação de rua, mas, também, do restante da população, e a lei e a ordem em geral.

Uma vez a área esteja em condições de ser considerada “área onde não há civis inocentes”, a questão seguinte a ser enfrentada pelo governo é a questão da proporcionalidade. Não se pode mandar a Força Aérea bombardear tudo, com napalm ou bombas de fragmentação, até reduzir a ruínas, todo o centro de Kiev, nem se pode ordenar um ataque de artilharia. Assim sendo, o que se pode fazer para tentar conter os vândalos?

Em primeiro lugar e principalmente, há meios não violentos que podem ser usados e complicarão consideravelmente a situação dos vândalos. Como?

Primeiro, o centro da cidade pode ser completamente cercado e isolado do resto da cidade. Pode-se criar um cordão de forças policiais, bloqueios de rua, barreiras de rolos de arame farpado, veículos blindados, pontos de passagem, etc. que isolarão completamente a área de combate, do resto do planeta.

Unidades de ciberguerra têm de ser usadas para cortar todas as comunicações, inclusive celulares, Internet e conexões por satélite. Todos os sinais das mídias de massa têm de ser localmente derrubados. Devem-se mobilizar todos os esforços para estabelecer uma barreira impenetrável entre a zona de combates e o resto do mundo.

Por último, mas não menos importante, absolutamente nada, nada, entra na área cercada: nada de comida, nada de remédios, nada de água, nada de suprimentos de nenhum tipo. Nada.  Seja qual for o número real de pessoas que estão reunidas atualmente na Praça Maidan, a situação de falta d’água e acúmulo de detritos só se tornará absolutamente inadministrável depois de passadas 24 horas.

Na preparação para a saída de vândalos e gangues urbanas da área conflagrada, devem-se montar quatro pontos de triagem, fortemente protegidos, a serem implantados em torno da área: norte, leste, sul e oeste. Os vândalos que se rendam e decidam abandonar a área só poderão sair por um desses pontos.

Observe-se que, agora, já não se fala de “dispersar civis”: trata-se de “render vândalos”.

Todos os que deixem a praça por um daqueles pontos devem ser imediatamente presos, desarmados, revistados, registrados e conduzidos a locais de detenção temporária, até que a Polícia possa examinar cada caso e, sendo o caso, possam ser levados a julgamento.

Praça Maidan ocupada. Foto realizada do alto de um edifício (nov/2013)
No plano político, o presidente deve parar completamente qualquer tipo de discussão, consultas ou outros “contatos por telefone” com diplomatas estrangeiros que estão garantindo apoio às gangues urbanas. “Desculpe, mas estou ocupado restabelecendo a lei e a ordem. Deixe seu número, que telefonarei quando puder” – isso, e nada além disso, será a única resposta que “negociadores” estrangeiros ouvirão de um chefe de Estado, nessas circunstâncias.

Internamente, o chamado “líder da oposição” que deseje render-se deve receber tratamento idêntico ao de qualquer outro vândalo ou membro de gangues urbanas. Nada mais, nada menos.

Negociar oficialmente com gangues urbanas é atitude absolutamente irresponsável e só faz induzir a escalada da violência.

Observem que nenhuma das medidas acima listadas implica uso de violência, contra pessoa alguma. Mas alguma violência terá, inevitavelmente, de ser mobilizada.

As polícias antitumulto não são a força correta a usar contra gangues urbanas e terroristas. Nesse caso, têm de ser usadas exclusivamente forças especialmente treinadas.

Contra gangues urbanas é preciso usar forças especiais anti-insurgência; contra terroristas é preciso usar forças antiterroristas. Parece óbvio? Bem, talvez pareça a você e a mim, mas não é o que se está vendo acontecer na Ucrânia. Até aqui, Yanukovich só enviou policiais antitumulto para enfrentar todo o espectro das ameaças.

É. Por natureza não sou muito simpático a policiais antitumulto. Sempre me parecem “cães-de-guarda” humanos, que mordem qualquer um que sejam mandados morder. 

Francamente, não consigo pensar em pior escolha profissional.

Mas tenho de admitir duas coisas: todos os países têm de ter esse tipo de força; e os Berkut ucranianos estão sendo submetidos a situações absolutamente inadmissíveis: receberam ordens para não se mover, sob um dilúvio de pedradas e coquetéis Molotov; estão sendo atropelados por caminhões e tratores; receberam ordens para atacar agitadores pesadamente armados e bem organizados, sem sequer uma pistola para defender a própria vida. Estão sendo batidos, dia após dia, e todos os dias o próprio Comandante-em-Chefe deles, o presidente Yanukovich, culpou os próprios policiais pela violência. É comportamento desprezível. Muito me surpreende que aqueles policiais ainda não se tenham levantado contra o próprio Yanukovich.

Não tenho qualquer comprovação, mas suspeito fortemente que as forças especiais e as forças de segurança da Ucrânia estejam hoje como estavam as correspondentes forças russas no início, até meados, dos anos 1990s: absolutamente em frangalhos. E talvez – talvez! – aí esteja o motivo pelo qual Yanukovich não pode usá-las: porque estão imprestáveis. É possível, mas num país do tamanho da Ucrânia, custo a acreditar que não se encontre sequer uma pequena força, suficiente para enfrentar a crise nas ruas do centro de Kiev.  Será que os SBU realmente não têm esse tipo força? Se for assim, então o governo deve ser condenado por crime de negligência.

Tropa ODON (Rússia) especializada e desbaratar gangues urbanas tipo "Black Bloc"
Na Rússia, pode-se dizer que situação como a que se vê em Kiev seria praticamente impossível por muitas razões; mas, imaginando-se que acontecesse lá algo semelhante, o governo poderia usar a força OMON para o caso dos vândalos “comuns”; a força ODON para o caso das gangues urbanas; e os Spetsnaz FSB para o caso dos terroristas. Em nenhum caso e sob nenhuma circunstância os militares devem ser diretamente envolvidos nessas operações (mas, sim, podem ser usados nas áreas de ciberguerra e bloqueio das comunicações).

Outra vez: ou Yanukovich têm forças equivalentes àquelas russas e, nesse caso, está sendo criminosamente negligente por não as usar; ou não as tem e, nesse caso, é criminosamente negligente por não as ter organizado e treinado. Seja como for, há aí responsabilidade direta do governo.

Supondo-se que Yanukovich tenha à sua disposição forças similares, o que poderia fazer? Equipes de atiradores especiais contra-atiradores (convocados das unidades especiais antiterroristas) podem ser distribuídas na área para neutralizar o fogo de atiradores que estejam atacando as forças de segurança.

Batalhões contrainsurgência do tipo ODON russo podem ser usados para dar combate aos “grupos combatentes” (por falta de melhor designação) nacionalistas e de extrema direita. Essas forças têm de poder contar com meios e com o direito de usar força letal, mas há muitas coisas que podem fazer para intimidar vândalos e gangues urbanas (fogo de 30 ou 50mm contra a parede de um prédio fará milagres no sentido de convencer gangues urbanas neonazistas de que é hora de voltarem para o oeste da Ucrânia). Podem-se usar APCs e AIVs para desmontar rapidamente qualquer barricada e neutralizar qualquer “veículo de assalto improvisado” (caminhões, tratores, ônibus, escavadeiras) usado contra os policiais. Basicamente, uma praça como a Maidan pode ser esvaziada em bem poucas horas e com número relativamente baixo de feridos ou mortos. Claro, pode haver vítimas, mas não será um banho de sangue.

Veículo Blindado tipo APC para transporte de pessoal 
Tendo demonstrado que existem todos esses instrumentos de poder de Estado, quero voltar a um ponto que já referi acima: conter a violência e restaurar a lei e a ordem não é opção, é obrigação para qualquer chefe de estado responsável. E se Yanukovich não tem coragem para fazer o que a lei o obriga a fazer, deve renunciar.

Mas o quê Yanukovich faz? Negocia ad nauseam com diplomatas ocidentais e os chamados “líderes da oposição”; fez concessões absolutamente irresponsáveis; tentou mandar os infelizes policiais antitumultos para restaurar a ordem, apesar de eles não poderem, por definição, fazer tal coisa; e, na sequência, culpou os policiais pela violência resultante. Em cada um desses passos, só fez mostrar e mostrar sempre a mesma coisa: fraqueza, fraqueza, fraqueza. E o resultado?

Não só a violência aumentou dramaticamente, a zona conflagrada já espalhou-se para além da praça Maidan e da rua Gruchevski. Nessa imagem fotografada de um mapa de TV russa, vê-se a área dos combates: 

"Screen shot"do centro de Kiev. A áream hachurada em vermelho é o local dos combates
Agora que a violência espalhou-se para parte muito maior do centro de Kiev, será preciso força muito maior para controlá-la?

Só posso esperar que as gangues urbanas não tenham pessoal suficiente para se infiltrar e fixar-se em áreas maiores que antes, porque, se isso acontecer, aumentará muito o custo humano de conter a violência.

Em conclusão, quero dizer o seguinte: não posso aceitar o argumento de que Yanukovich não pode lidar com a violência por questões políticas. Nenhuma sabedoria política é desculpa para que um chefe de governo não cumpra o juramento de proteger as pessoas comuns, defender a Constituição e manter a lei e a ordem. Rejeito categoricamente a noção de que mandar policiais desarmados, ou armados só com armas não letais, seria o modo correto de enfrentar o tipo de situação que está criada em Kiev. Entendo que as “negociações” e “consultas” sem fim, sempre com inimigos jurados do povo ucraniano, como diplomatas da União Europeia e os chamados “líderes da oposição”, são, não apenas inúteis, mas, pior que isso, altamente contraproducentes; e só induzem à escalada da violência.

Viktor Yanukovich, atual Presidente da Ucrânia
Assim sendo, não só Yanukovich fez tudo errado no passado, como continua a fazer tudo absolutamente errado. Vejo-o como culpado número 1 pela situação atual e temo pelo muito que ele ainda pode fazer para danar totalmente com tudo, antes que seja varrido para fora do poder.

Tudo isso é muito trágico e triste, e a única coisa boa que vejo como fruto desse caos, dessa miséria e dessa violência é a possibilidade de que o leste e o sul da Ucrânia finalmente percebam que não têm futuro num mesmo país com os Zapatentsy doidos, as milícias neonazistas e outros nacionalistas; e que têm de retomar para eles a própria soberania, unidos à Rússia, que seja, ou, pelo menos, que rompam completamente os laços que ainda os ligam ao oeste da Ucrânia.

Quanto a Yanukovich, já tem lugar garantido nos livros de história ao lado de gente como Kerensky e Ieltsin; e nada de bom acontecerá na Ucrânia, enquanto esse patético fantoche oligárquico permanecer no poder.

The Saker

PS: A única boa notícia dessa manhã é a seguinte: Dmitry Peskov, porta-voz de Vladimir Putin, confirmou que a Rússia de modo algum se envolverá no atual conflito na Ucrânia. Graças a Deus!


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.