1/9/2014, [*] Ismael
Hossein-Zadeh, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
No coração da
frustração ou do desapontamento dos economistas keynesianos está a percepção
não realista de que políticas econômicas seriam produtos intelectuais, e que
construir políticas seria, antes de tudo, questão de expertise técnica e de preferência pessoal. O que esses economistas
não veem é que construir políticas econômicas não é simples questão de escolha,
quer dizer, de política “boa” versus política “má”. Muito mais
importante: construir políticas econômicas é fazer política de classes. (...)
Talvez mais
importante que isso, a visão marxiana de que programas duradouros,
significativos de redes de segurança social só podem ser criados e mantidos se
houver dedicada e grande pressão das massas − e só em escala global coordenada − garante solução mais lógica e mais promissora ao problema dos
sofrimentos econômicos que sempre pesam sobre a maioria da população mundial.
Muito mais lógica e mais promissora que os pacotes “limpos”, puramente
acadêmicos e essencialmente despolitizados dos estímulos keynesianos em nível
nacional.
Muitos
economistas liberais viram uma nova aurora para o keynesianismo no desastre
financeiro de 2008. Quase seis anos depois, já é claro que as muito aguardadas
prescrições keynesianas foram e são completamente ignoradas. Por quê? Resposta
do economista keynesiano: por culpa da “ideologia neoliberal”, que [no governo
dos EUA] eles rastreiam até o governo do presidente Reagan.
Nesse artigo, ao contrário, argumento que (a) a transição da economia keynesiana para a economia neoliberal tem raízes muito mais profundas que a pura ideologia; que a transição começou muito antes de Reagan ser eleito presidente; que a confiança que os keynesianos têm em os governos serem capazes de re-regular e reviver a economia mediante polícias de gestão de demanda repousa sobre uma percepção-desejo de que o estado possa controlar o capitalismo; mas que (b), ao contrário dessas percepções-desejos, políticas públicas são mais que questões de escolha administrativa ou técnica; e que, mais importante que isso, são políticas de classe.
Nesse artigo, ao contrário, argumento que (a) a transição da economia keynesiana para a economia neoliberal tem raízes muito mais profundas que a pura ideologia; que a transição começou muito antes de Reagan ser eleito presidente; que a confiança que os keynesianos têm em os governos serem capazes de re-regular e reviver a economia mediante polícias de gestão de demanda repousa sobre uma percepção-desejo de que o estado possa controlar o capitalismo; mas que (b), ao contrário dessas percepções-desejos, políticas públicas são mais que questões de escolha administrativa ou técnica; e que, mais importante que isso, são políticas de classe.
O estudo
também argumenta que a teoria marxiana do desemprego, baseada na teoria de
Marx, do exército de reserva de mão de obra, oferece explicação muito mais
robusta para os prolongados altos níveis de desemprego, que o que dizem os
keynesianos, que atribuem a praga do desemprego “às más políticas do
neoliberalismo”. Assim também, a teoria marxiana da persistência de salários
sempre próximos à linha da miséria dá conta, com muito mais consistência, de
como ou de por quê esses salários de miséria, e a predominância em geral da
miséria, podem acompanhar e de fato acompanham altos níveis de lucros e de
riqueza concentrada, muito mais do que os keynesianos percebem, quando pregam
altos níveis de empregos e de salários como condições necessárias para um ciclo
econômico de expansão. [1]
Além das Explicações Comuns da Crise Financeira O Capital Financeiro Parasitário |
Mais profundo
que “ideologia neoliberal”
O
questionamento e o abandono gradual das estratégias keynesianas de gestão da
demanda aconteceram não simplesmente por causa de proclividades puramente
ideológicas de Republicanos “de direita” ou de preferências pessoais de Ronald
Reagan, como muitos economistas liberais e radicais argumentam, mas por causa
de mudanças estruturais reais nas condições econômicas ou de mercado, no plano
nacional e internacionalmente.
As políticas
do New Deal/Social-Democratas foram
implantadas depois da Grande Depressão, enquanto trabalhadores e outros
movimentos de base recém acordados em termos políticos, e as condições
econômicas favoráveis do momento, tornaram efetivas aquelas políticas. Uma
daquelas condições favoráveis era a necessidade de investir e reconstruir economias
devastadas do pós-guerra por todo o mundo, a demanda quase ilimitada por
manufaturas norte-americanas, tanto em casa como no exterior, e a nenhuma
concorrência contra o capital e o trabalho norte-americanos.
Essas
condições propícias, assim como a pressão de baixo, permitiu aos trabalhadores
norte-americanos demandarem salários e benefícios respeitáveis, ao mesmo tempo
em que gozaram de taxas mais altas de emprego. Os altos salários e a forte
demanda então serviu como delicioso estímulo que precipitou o longo ciclo
expansional do período do imediato pós-guerra, na modalidade de um ciclo
virtuoso.
Mas no final
dos anos 1960s e começo dos 1970s, contudo, ambos, o capital e o trabalho
norte-americanos já não eram dominantes nos mercados globais. Mais que isso,
durante o longo ciclo da expansão no imediato pós-guerra as manufaturas
norte-americanas haviam investido tanto em capital fixo, ou construção de
capacidade [orig. capacity building], que ao final dos anos 1960s suas
taxas de lucro já começavam a declinar, quando quantidades enormes dos chamados
“custos irrecuperáveis” [orig. “sunk costs”; lit. “custos
naufragados”], principalmente sob a forma de fábricas e equipamentos,
tornaram-se altos demais. [2]
Mais que
qualquer outra coisa, foram essas importantes mudanças nas reais condições de
produção, e o concomitante realinhamento dos mercados globais, que ocasionaram
ocasionais reservas contra e, afinal, o abandono da economia keynesiana. Ao
contrário do que muito repetem os liberais e partidários do keynesianismo, não
foram as ideias ou os esquemas de Ronald Reagan que levaram aos planos para
desmantelar as reformas do New Deal;
em vez disso, foi a globalização, primeiro do capital e, depois, do trabalho,
que tornaram as economias de tipo keynesiano pouco atraentes para a
lucratividade capitalista, e geraram a economia de Ronald Reagan e a
austeridade neoliberal. [3]
Deve-se enfatizar que as políticas keynesianas
de estabilização não foram abandonadas por razões puramente ideológicas; i.e.,
por que, como insistem muitos críticos do neoliberalismo, espalhou-se a partir
de Chicago um animus de laisser-faire, que teria infectado
políticos de todos os partidos e os teria persuadido das grandes vantagens e
benefícios dos livres mercados (...).
Sistema keynesianos de regulação financeira (controle de capitais e taxas de
juro gerenciadas) não conseguiriam sustar os crescentes pools de créditos internacionais não regulados, os euromercados,
que vieram para dominar a finança internacional. [4]
Quando as
regulações financeiras, controles de capital e um novo sistema monetário
internacional foram estabelecidos na Conferência de Bretton Woods logo depois
da IIª Guerra Mundial, os mercados financeiros ou de crédito, internacionais,
eram efetivamente inexistentes. O dólar norte-americano (e em menor extensão o
ouro) foi, de longe, amplamente, o único meio internacional de comércio e de
crédito. Nessas circunstâncias, o crédito internacional aconteceu amplamente
entre o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os bancos centrais dos países
emprestadores/tomadores – daí a possibilidade, a viabilidade, de aplicarem-se
os controles.
Esse quadro
dos mercados internacionais de crédito/financeiros, contudo, mudou
gradualmente; e ao final dos anos 1960 e início dos 1970s, aqueles mercados já
alcançavam centenas de bilhões de dólares, permitindo portanto transações
internacionais de crédito por fora do canal FMI−bancos centrais. Os dois
maiores fatores que contribuíram significativamente para a drástica inflação
dos mercados financeiros internacionais foram (a) o crédito internacional gerado por computador; e (b) a imensa proliferação de
eurodólares, isto é, dólares norte-americanos depositados em bancos do outro
lado do Atlântico. A finança/crédito global completamente “solta” havia
crescido tanto durante as últimas várias décadas que tornara quaisquer
controles ou regulações domésticas ou nacionais já virtualmente inefetivos:
Críticos da finança internacional fizeram
várias propostas para estabilizar o sistema e torná-lo mais propício para os
objetivos do desenvolvimento econômico e social. A sugestão mais comum foi um
retorno aos controles transfronteiriços de capital que existiam nos anos 1940s
e 1950s. Esses controles, em muitos casos, não foram eliminados até os anos
1990s. Mas depósitos bancários internacionais e ativos financeiros mantidos no
exterior são hoje tão grandes, que seria difícil implantar tais controles. De
fato, a principal razão para livrar-se de tais regulações foi, exatamente, que
não havia como aplicá-las. [5]
É óbvio,
pois, que o enfraquecimento ou o depauperamento dos controles ou das
salvaguardas regulatórias foi provocado não tanto por tendências puramente
ideológicas de algum eleitos ou estrategistas políticos, mas, mais, pelos
desenvolvimentos reais nos mercados financeiros internacionais.
Começou muito
antes de Reagan
O argumento
de que o abandono de políticas keynesianas em favor de políticas neoliberais
começou com a chegada de Ronald Reagan à Casa Branca nos anos 1980 é
factualmente falso. Provas incontornáveis mostram que o prazo de validade das
receitas keynesianas haviam expirado pelo menos uma dúzia de anos antes. As
políticas keynesianas de expansão econômica mediante gerenciamento da demanda
haviam perdido o gás (vale dizer: haviam chegado ao seu limite sistêmico) ao
final dos anos 1960s e início dos 1970s; não aconteceram de repente, do nada,
no momento em que Reagan assumiu o timão.
Como o
professor Alan Nasser do Evergreen State
College anota, argumentos de que
“políticas de igualdade econômica representam redução em termos de eficiência”
já se faziam ouvir, produzidos por conselheiros econômicos de governos
Democratas muito antes de a “Reaganomics” dar solenidade àqueles argumentos.
Arthur Okun e Charles Schultze, ambos, serviram como presidente do Grupo de
Aconselhamento Econômico de presidentes Democráticos. Em seu Equality and
Efficiency: The Big Tradeoff, Okun (1975) já dizia que “o objetivo
intervencionista de maior igualdade teve custos em ineficiência, que muito
feriram a economia privada”. Schultze (1977) também dizia que “políticas de
governo que impactam os mercados em nome da justiça e da igualdade são
necessariamente ineficientes” – e essas políticas “geram desvantagens para o
mesmo povo que os políticos pensaram estar protegendo, e desestabilizam a
economia privada no processo”. [6]
Jerome Kalur
diz também que “esforços de Mesas Redondas de Câmaras do Comércio e Associações
de Empresários para conseguir controlar o sistema governamental de
tomadas de decisões regulatórias começaram pelo menos nove anos antes” de
Ronald Reagan ser eleito, “quando o advogado de corporações Lewis Powell
apresentou à Câmara de Comércio seu hoje bem-conhecido “Ataque contra o sistema
da livre empresa nos EUA”. [7] Em concerto com a ofensiva “advocatícia” de
Powel contra o trabalho e padrões regulatórios, o big business movimentou-se
firmemente para “impedir a organização sindical” e para “eliminar quaisquer
controles regulatórios mediante fluxos gigantes de propaganda produzida por think-tanks
do tipo do The American Enterprise
Institute (1972), The Heritage
Foundation (1973) e o Cato Institute
(1977)”. [8] Kalur escreve, ainda mais:
Lewis Powell |
Quando Powell
entregou seu memorando à Câmara, o business norte-americano já tinha
registradas 175 empresas de lobby a seu serviço. Em 1982, o número de “torcedores-de-braços”
pagos por empresas já subira para 2.500. O número desses “assessores” mantidos
por empresas já chegara a 400 no início dos anos 1970s, e a 1.200, em 1980. Em
resumo, o big business já estava provocando um declínio no número de
empregados sindicalizados; já influenciava fortemente legisladores e agências
federais; e controlava o quadro muito antes de começar o governo Reagan. Com
Powell nomeado afinal para a Suprema Corte, o business norte-americano já
marchava, em 1978, na direção da sua meta de acabar com toda e qualquer
restrição às contribuições para campanhas eleitorais através de veículos
clandestinos. [9]
Se a virada
teórica da economia do New Deal−keynesiana
dentro da cabeça dos luminares do Partido Democrata aconteceu antes do governo
Carter, a implementação daquelas teorias começou já sob governo do presidente
Carter. E Reagan pegou a cópia da agenda gradual de neoliberalismo dos
Democratas e a fez correr mais depressa; substituiu a retórica do
capitalismo-com-face-humana, pela retórica imperiosa, arrogante, do mais feroz
individualismo, com a cobiça, a ganância e o autointeresse como principais
virtudes a serem promovidas. Tampouco o presidente Clinton cuidou de aliviar as
políticas econômicas dos anos Reagan. E Obama, como se sabe, não hesitou em
fazer a mesma coisa.
O papel do
estado
A ideia
keynesiana de que o governo poder fazer a sintonia econômica fina mediante
políticas fiscais e monetárias, para manter crescimento contínuo, baseia-se na
ideia de que o capitalismo pode ser controlado ou manipulado pelo estado e
gerido por economistas profissionais de departamentos governamentais com vistas
a preservar o interesse de todos. A efetividade do modelo keynesiano portanto
depende, em vasta medida, de uma esperança, ou de uma ilusão; porque, na
realidade, a relação de poder entre o estado e o mercado/capitalismo é, quase
sempre, exatamente o contrário disso. Ao contrário da percepção keynesiana,
fazer política econômica é mais do que simplesmente questão administrativa ou
de tomadas de decisões técnicas; muito mais importante que isso, fazer política
econômica é questão profundamente sociopolítica, organicamente entrelaçada com
a natureza de classe do governo e do aparelho de produzir políticas.
A ilusão
keynesiana foi alimentada, ou mascarada, por dois grandes mitos
John Maynard Keynes |
O primeiro
mito brota da percepção que atribui a implementação do New Deal e das reformas Social-Democratas que se seguiram à Grande
Depressão e à IIª Guerra Mundial, ao gênio de Keynes. Provas mostram contudo
que a implementação daquelas reformas e, portanto, a ascensão de Keynes ao “estrelato”
foram, mais, produto de ferozes lutas de classes e das fortíssimas pressões dos
movimentos de base, que “recompensa” pelo “brilho” dos neurônios de
especialistas como Keynes. De fato, fora dos estreitos círculos acadêmicos,
Keynes não era absolutamente conhecido nos EUA, quando as principais reformas
do New Deal foram postas em prática.
O segundo
mito brota da visão que atribuiu a longa expansão econômica do período 1948-68
nos EUA à eficácia ou ao sucesso das políticas keynesianas de gestão da
demanda. Embora seja com certeza certo que as políticas de governo
expansionistas do tempo tiveram grande papel nos fantásticos desenvolvimentos
econômicos daquele período, outras condições ou fatores favoráveis também
contribuíram para o sucesso daquela expansão. Dentre essas, a necessidade de
investir e reconstruir as economias devastadas do pós-guerra em todo o mundo; a
necessidade de suprir a vasta demanda global dos consumidores; por bens de
capital; e a falta de concorrentes para os produtos e capitais norte-americanos
nos mercados globais – em resumo, o fato de que havia espaço gigantesco para
crescimento e expansão no período imediatamente depois da guerra.
Acolhendo
esses mitos e ilusões, os economistas keynesianos anteviram para eles mesmos a
moldura de ouro ideal, na quebradeira e no período que se seguiu à Grande
Recessão: uma oportunidade para uma nova alvorada de economia keynesiana. Quase
seis anos depois, é muito claro que as prescrições de políticas keynesianas
estão caindo em ouvidos surdos.
Ignoradas e
deixadas de lado, as esperanças e ilusões keynesiana converteram-se em
amargura, desapontamento e ira. Por exemplo, servindo-se de sua coluna no New
York Times [que O Estado de S.Paulo reproduz caninamente, porque esse
pensamento liberal à Keynes de Paul Krugman é o máximo que a UDN admite nas
suas páginas de jornalismo econômico (e qualquer outro) imprestável (NTs)], o
professor Paul Krugman frequentemente ataca o governo Obama por ignorar
políticas keynesianas de expansão econômica e geração de empregos:
Paul Krugman |
A verdade é que criar empregos em economia em
depressão é coisa que o governo pode e deve fazer (...) Pensem bem: onde estão
os grandes projetos de obras públicas? Onde estão os exércitos de trabalhadores
do estado? Há hoje de fato meio milhão de empregados do governo a menos, do que
quando o Sr. Obama assumiu a Casa Branca. [10]
No coração da
frustração ou do desapontamento dos economistas keynesianos está a percepção
não realista de que políticas econômicas seriam produtos intelectuais, e que
construir políticas seria, antes de tudo, questão de expertise técnica e de preferência pessoal. O que esses economistas
não veem é que construir políticas econômicas não é simples questão de escolha,
quer dizer, de política “boa” versus política “má”. Muito mais
importante: construir políticas é fazer política de classes.
Não basta ter
coração ou alma compassiva; também é preciso não perder de vista o modo como se
faz política pública sob o capitalismo. Não basta espancar repetidamente Ronald
Reagan como o rei mau, e elogiar Franklin Delano Roosevelt como rei bom. A
tarefa realmente importante é explicar por que a classe dominante expulsou o
rei bom, nos EUA, e pôs no trono o rei mau.
Como diz o
professor Peter Gowan da London
Metropolitan University, “keynesianos fazem uma discussão essencialmente
falsa a favor da re-regulação, quando absolutamente não veem que o Estado e
Wall Street são uma e a mesma entidade”. [11]
Desemprego |
Crescimento e
emprego: Keynes versus Marx
Não foi só o
modo como economistas liberais veem os desenvolvimentos reais, que levaram ao
abandono do keynesianismo e ao aparecimentos dos vícios neoliberais; também o
modo como explicam os problemas correntes de desemprego e de estagnação
econômica. Ao persistentemente culpar o “capitalismo neoliberal” – em vez de
culpar o próprio e total capitalismo – pelas altas taxas de desemprego, os
propositores de economias keynesianas tendem a perder de vista as causas
estruturais ou sistêmicas do desemprego: a tendência secular e/ou sistêmica da
produção capitalista para constantemente substituir o trabalho humano por
máquinas, e, assim, criar massa considerável de desempregados, um “exército de
reserva de mão de obra”, nas palavras de Karl Marx.
As leis
fundamentais da oferta e demanda de mão de obra no capitalismo são pesadamente
influenciadas, ensina Marx, pela capacidade do mercado para produzir
regularmente um exército de reserva do mão de obra, um “superávit
populacional”. Esse exército de reserva de mão de obra é portanto tão
importante para a produção capitalista quanto o exército ativo (realmente já
empregado) de mão de obra. Assim como um ajuste regular e na hora devida, do
nível do corpo de água de uma represa usada para irrigação é crucial para o
aproveitamento estável da água, assim também o tamanho “adequado” de um corpo
de desempregados é criticamente importante para a rentabilidade da produção
capitalista:
Karl Marx |
O exército industrial de reserva, durante os
períodos de estagnação e prosperidade média, derruba todo o exército de
trabalho ativo; durante os períodos de superprodução e paroxismo, mantém em
xeque suas pretensões. Populações em relativo superávit são, pois, o pivô sobre
o qual opera a lei de oferta e demanda de trabalho. Assim se limita o campo de
ação dessa lei, dentro dos limites absolutamente convenientes para a atividade
de exploração e para a dominação pelo capital. [12]
Na era da
globalização da produção e do emprego, o exército de reserva de mão de obra foi
drasticamente expandido para fora das fronteiras nacionais. Segundo pesquisa
recente da Organização Mundial do Trabalho (OMT), entre 1980 e 2007 a força de trabalho
global cresceu cerca de 63%. O relatório também mostra que, dada a urbanização
em todo o planeta e/ou a saída dos camponeses dos campos, a razão entre
exército ativo de exército de reserva de trabalho é hoje de menos que 50%, quer
dizer, mais da metade da mão de obra global está hoje desempregada. [13]
Esse vasto e
rapidamente acessível bolsão de desempregados, além da facilidade relativa para
mudar a produção para qualquer ponto do mundo – e não alguma “intenção malévola
de Republicanos direitistas ou de neoliberais safados” – é que obrigaram a
classe trabalhadora, principalmente nos países capitalistas centrais, a baixar
a cabeça: e a submeter-se aos brutais esquemas de austeridade nos salários e
cortes de benefícios, às demissões, ao esvaziamento dos sindicatos, aos
empregos de meio período, ao trabalho precário e a tudo mais que se vê.
Isso também
explica por que repetidas convocações, feitas pelos keynesianos, para que se
embarque em pacotes de estímulo de tipo keynesiano, para ajudar a pôr fim à
recessão e aliviar o desemprego, continuam a soar como propostas ocas. Sob as
novas condições de produção, que deixaram o nível nacional e ganharam níveis
globais, e na ausência de fortes pressões políticas que os trabalhadores e
movimentos de base em geral possam exercer, simplesmente não há refills para
as receitas do Dr. Keynes – as quais foram pensadas para condições
socioeconômicas radicalmente diferentes das que há hoje, e para circunstâncias
nacionais, não globais.
Teoricamente,
a estratégia keynesiana de um “ciclo virtuoso” de altas taxas de crescimento e
emprego é ao mesmo tempo simples e racional: gastos governamentais massivos em
períodos de sério revés econômico fazem aumentar empregos e salários, injetam
poder de compra na economia, o que, por sua vez, empurra os produtores a
produzir e contratar, o que, por sua vez, faz subir emprego, salários, demanda,
oferta... ad infinitum. Mas, por mais que a estratégia soe relativamente
simples e satisfatoriamente racional, ela está cheia de falhas.
Para começar,
ela implicitamente assume que empregadores e fazedores de políticas
governamentais estejam genuinamente interessados em gerar pleno emprego, mas,
apenas, ‘não sabem’ como alcançar essa boa meta comum. Mas produção de pleno
emprego pode não ser necessariamente o nível ideal ou nível de máximos lucros,
da produção capitalista; significa que pode não ser o objetivo real dos
empresários, empregadores e ou políticos encarregados de conceber políticas
públicas.
Como já
anotamos aqui, um bolsão considerável de desempregados é essencial para manter
a lucratividade capitalista, tanto quanto o número de empregados a ser
realmente posto a trabalhar. Em sua ânsia para manter o custo do trabalho o
mais baixo possível, mantendo a classe trabalhadora o mais dócil possível, o
capitalismo tende sempre a preferir altas taxas de desemprego e salários
baixos, a baixas taxas de desemprego e salários altos.
Isso também
explica por que, por exemplo, o mercado de ações sempre tende a subir, quando
há relatos de desemprego crescente, e vice-versa. Também explica por que,
colhendo vantagens do longo (e ainda em andamento) ciclo de recessão, os
empresários/políticos criadores de políticas públicas nos países capitalistas
centrais, embarcaram em programa de austeridade sem precedentes, com cortes de
gastos e redução do setor público, movimentos cujo objetivo é enfraquecer o
trabalho e baixar os salários (“reduzir o custo do trabalho”).
Em segundo
lugar, o argumento keynesiano, de que um “ciclo virtuoso” de alto emprego,
altos salários e alto crescimento seria facilmente alcançável, não fossem as
“más” políticas do neoliberalismo ou a oposição dos empresários empregadores,
baseia-se no pressuposto de que empregadores/produtores estariam “deixando de
lado” os seus próprios interesses. Se prestassem atenção aos benefícios proverbiais
dos “salários fordistas” sobre as vendas, prossegue o argumento keynesiano,
eles conseguiriam ajudar-se simultaneamente a eles próprios e aos
trabalhadores... e teríamos crescimento econômico e prosperidade para todos.
A visão do
conhecido professor liberal (e ex-secretário do Trabalho no governo Clinton)
Robert Reich sobre esse tema é típica do que dizem e pensam os keynesianos:
Robert Reich |
Durante a maior parte do século passado, a
barganha básica no coração da economia norte-americana foi que empregadores
pagassem o suficiente aos seus empregados, de modo a que empregados pudessem
comprar o que os empregadores estivessem vendendo (...) Essa barganha básica
criou um ciclo virtuoso de alto padrão de vida, mais empregos e melhores
salários (...) A barganha básica acabou-se (...) Os lucros das empresas estão
no alto, em vasta medida porque o salário está no muito baixo e as empresas não
estão contratando. Mas esse é jogo de perde-perde para as empresas, no longo
prazo. Sem número suficiente de consumidores norte-americanos, seus dias de
lucros estão contados. Afinal, há um limite para o máximo de lucros que podem
obter cortando na folha de pagamento dos norte-americanos. [14]
Há duas
grandes falhas nesse argumento. O primeiro problema é que o argumento assume
(implicitamente) que os produtores norte-americanos dependem dos trabalhadores
que vivam nos EUA, não só como mão de obra, mas também como consumidores – como
aconteceria numa economia fechada. Na realidade porém, os empresários
norte-americanos estão-se tornando cada dia menos e menos dependentes seja da
mão-de-obra doméstica seja para vendas, dado que vão expandindo sempre a
produção e as vendas para mercados externos:
Nas duas pontas, na oferta [de empregos] e na
demanda, o trabalhador/ consumidor norte-americano já é visto como cada dia mais
inessencial. [15]
O segundo
problema com o argumento é que salários e benefícios são categorias micro (ou
de nível empresarial) decididas por empregados individuais e/ou gerentes de
corporações, não por algum tipo de planejador macro (ou estatal/nacional) de
demanda agregada (numa economia centralmente planejada). Produtores individuais
(pequenos ou grandes) veem salários e benefícios primeiro, e sobretudo, como
altos custos de produção que sempre têm de ser minimizados o mais possível; e
só em segundo lugar (quando acontece!) é que os veem como parte da demanda
nacional agregada que pode (por vias complexas e não garantidas) contribuir
para a venda de seus produtos.
Marx
caracterizou a capacidade e a disposição do capitalismo para criar grandes
bolsões de desempregados (para criar uma classe trabalhadora cada vez maior e
mais pobre), como capacidade e disposição para “miserificar” [é a
“miserificação”, orig. ing. “immiseration”] e para submeter a força de
trabalho – um mecanismo inserido no capitalismo, essencial para a “lei geral”
da acumulação capitalista:
O Capital |
Decorre daí portanto que na proporção em que o
capital acumula, a parte do trabalhador, seu pagamento, alto ou baixo, vai
piorando. Essa, afinal, é a lei que equilibra o superávit de população, ou o
exército industrial de reserva, conforme a extensão e a energia da acumulação,
a lei que solda o trabalhador ao capital, mais firmemente do que as correntes
de Vulcano prenderam Prometeu àquela montanha. Ela estabelece a acumulação da
miséria, correspondente à acumulação do capital. Acumulação de riqueza num
polo; e, portanto, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, agonia do
trabalho sem fim, escravidão, ignorância, brutalidade, degradação mental, no
polo oposto, quer dizer, no lado oposto da classe que produz seu próprio
produto na forma de capital. [16]
Conclusão
A teoria
marxiana do desemprego, baseada na teoria do exército industrial de mão de obra
de reserva, oferece explicação muito mais potente para os altos e prolongados
níveis de desemprego, que a ideia keynesiana que atribui a praga do desemprego
a políticas “malévolas” ou “mal orientadas” do neoliberalismo. Assim também, a
teoria marxiana da subsistência dos salários de miséria oferece explicação
muito mais cogente de como ou por que esses níveis de salários de miséria, além
de uma predominância generalizada ou nacional da miséria, podem sempre andar de
mãos dadas com altos níveis de lucros de empresas e do mercado de ações, do que
as ideias keynesianas; para essas, altos níveis salariais seriam condição
necessária para ciclo econômico de expansão.
Franklin Delano Roosevelt e o New Deal |
Talvez mais
importante que isso, a visão marxiana de que programas duradouros,
significativos de redes de segurança social só podem ser criados e mantidos se
houver dedicada e grande pressão das massas – e só em escala global coordenada −
garantindo solução mais lógica e mais promissora ao problema dos sofrimentos
econômicos que sempre pesam sobre a maioria da população mundial. Muito mais
lógica e mais promissora que os pacotes “limpos”, puramente acadêmicos e
essencialmente despolitizados dos estímulos keynesianos em nível nacional.
Não importa
por quanto tempo ou com quanto entusiasmo os keynesianos de bom coração
supliquem por empregos e por outras reformas de tipo New Deal; as suas súplicas para implantação desses programas serão
sistematicamente ignoradas por governos que são eleitos e controlados por
poderosos interesses do dinheiro.
A falha
fundamental nas prescrições keynesianas de demanda administrada é que não passa
de um conjunto de propostas populistas que atropelam a política de classes,
quer dizer, que ignoram as condições necessárias para pôr em execução aquelas
propostas.
Só com
mobilizações de massas de trabalhadores (e outros movimentos de base) e com
luta, em vez de só suplicar, por fatia justa do que, de fato, é produto do
trabalho da maioria que trabalha, essa maioria poderá alcançar segurança
econômica e dignidade humana.
Notas de rodapé
[1] Esse artigo é versão muito reduzida do Cap. 2 de meu livro Beyond
Mainstream Explanations of the Financial Crisis: Parasitic Finance Capital (Routledge
2014).
[2] Anwar Shaikh, “The Falling Rate of Profit and the
Economic Crisis in the US”, in The Imperiled Economy, Book I, New
York, NY: Union for Radical Political Economy (1987).
[3] Harry Shutt, The Trouble with Capitalism: An
Enquiry into the Causes of Global Economic Failure, London: Zed Books
(1998).
[4] Jan Toporowski, Why the World Economy Needs a
Financial Crash and Other Critical Essays on Finance and Financial Economics,
London: Anthem Press, 2010, p. 18.
[5] Jan Toporowski, Why the World Economy Needs a
Financial Crash and Other Critical Essays on Finance and Financial Economics,
London: Anthem Press, 2010, p 25.
[6] Citado em Alan Nasser, New Deal Liberalism Writes Its
Obituary.
[7] Jerome S Kalur, Review of Andrew Kliman's:
The Failure of
Capitalist Production.
[8] Ibid.
[9] Ibid.
[10] Paul Krugman, No, We Can't? Or
Won't?.
[11] Peter Gowan, “The Crisis in the Heartland,” in M.
Konings (ed.) The Great Credit Crash, London and New York: Verso, 2010.
[12] Karl Marx, Capital, vol. 1, New York:
International Publishers, 1967, p 639.
[13] International Labor Organization (ILO), The
Global Employment Challenge, Geneva, 2008; as cited in John Bellamy Foster,
Robert W McChesney and R Jamil Jonna, The Global
Reserve Army of Labor and the New Imperialism.
[14] Robert Reich, Restore the Basic Bargain.
[16] Karl Marx, Capital, vol. 1, New York:
International Publishers, 1967, p 645.
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[*] Ismael Hossein-Zadeh é Professor Emérito de Economia (Drake
University). É autor de Beyond Mainstream Explanations of the Financial Crisis (Routledge 2014), The Political Economy of U.S. Militarism (Palgrave- Macmillan 2007) e Soviet Non-capitalist Development: The Case of Nasser's Egypt (Praeger Publishers 1989). É um
dos autores-contribuidores que publicaram Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (AK Press 2012).
Estamos vivendo um tempo de mudanças, não estou dizendo isto baseando-me em minhas crenças. Vejo que todo sistema esgota-se e seja qual for a "alternativa" que sucedê-lo um dia também cairá. Não espero nada muito agradável a curto prazo para solucionar nossas questões econômicas e sociais. O homem é mesmo o animal predador de si mesmo. O sistema é esmagador de pequenos, os pequenos são "descartáveis" servem apenas para servir.
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