sábado, 18 de setembro de 2010

À espera de novos vazamentos em WikiLeaks

16/9/2010, Nick Turse, “Death to America, death to Obama” , Asia Times Online

Traduzido por Vila Vudu


Em julho, a página WikiLeaks publicou arquivo com dezenas de milhares de documentos militares secretos dos EUA, de seis anos da guerra no Afeganistão.
Parte destes documentos foram traduzidos e pubicados pela redecastorphoto e podem ser encontrados a partir da seguinte sequência de postagens:


Os documentos foram enviados pelos responsáveis pela página Wikileaks a dois grandes jornais (New York Times dos EUA, e Guardian, britânico). Na cobertura inicial, o Times noticiou, primeiro, que, a partir do que se lia nos documentos vazados, o Paquistão, aliado dos EUA, favorecia os contatos entre membros de seu serviço secreto e membros dos Talibãs.


A cobertura do Guardian, por sua vez, começou focada no alto número de civis afegãos mortos não relatados. Abriu a matéria com: “Imensos arquivos militares secretos dos EUA oferecem retrato devastador da falência da guerra no Afeganistão e revelam como as forças da coalizão EUA-OTAN mataram centenas de civis em incidentes não oficialmente relatados.”


Nos primeiros dias depois de divulgados os arquivos secretos, tornou-se praticamente impossível navegar na página de Wikileaks, porque milhões de internautas voaram para lá para saber de que documentos, afinal, se tratava. A rede foi sacudida por análises de todos os tipos e, semanas depois, ainda se ignoravam as análises em profundidade, poucas, de fato, como se jornais e blogs estivessem à espera de uma segunda onda de vazamentos que Wikileaks anunciou para os dias ou semanas seguintes – cerca de 15 mil novos arquivos.


De fato, ainda há muito a explorar e extrair do primeiro conjunto de arquivos, chamados “Diários Wikileaks da Guerra do Afeganistão” – além do fato de que os militares paquistaneses teriam presenciado incidente ocorrido numa base militar no Afeganistão, em que se registraram atos de preconceito racista e cultural, descritos como “lamentáveis” por um militar dos EUA, até os efeitos da guerra sobre a população civil afegã, e além de informes impressionantes sobre o que pensam os oficiais que comandam os soldados norte-americanos naquele país devastado pela guerra. O que aqui se lerá são apenas quatro exemplos do tipo de material que, já plenamente acessível na página WikiLeaks, ainda não recebeu qualquer atenção da imprensa mundial.


“Morra Obama!”


Exame superficial dos arquivos Wikileaks basta para evidenciar que há no Afeganistão um vibrante movimento de protesto civil – muito mais extenso e ativo do que os protestos noticiados contra a queima de livros do Corão nos EUA. Há movimentos de rua, manifestações contra vários níveis do governo afegão e contra, também, os EUA e seus aliados.


Dia 4/12/2009 – último mês coberto pelos documentos já distribuídos por Wikileaks –, por exemplo, um grupo de soldados do COP Michigan (Posto Avançado de Combate, ing. Combat Outpost , COP), no centro do vale do rio Pech e próximo do desfiladeiro do vale Korengal Valley, dispararam um míssil antitanque (ing. TOW) contra cinco afegãos encontrados em local que havia sido posto de combate inimigo.


Os documentos referem-se a “dois homens LN [ing. Local Nationals] e “forças AAFs” [ing. Anti-Afghan Forces] e menciona que se viram armas no local, mas nenhum sinal de ação hostil foi tentado ou suspeitado. Imediatamente depois do ataque, um homem afegão ferido pelo míssil foi trazido para tratamento no COP Michigan, mas morreu. Depois, o cadáver de outra vítima também chegou ao COP.


No mesmo dia, mais tarde, 100 cidadãos afegãos “LN” reuniram-se e “bloquearam completamente a estrada próxima do bazaar Kandigal” com uma escavadeira, arame e pneus em barricada. Um documento narra: “Os manifestantes estão organizados e caminham na direção do COP Michigan. A multidão aumentou pelo caminho e agora carregam uma bandeira dos Talibãs.”


Enquanto a multidão de “LNs” andava na direção do posto de combate, soldados afegãos aliados dos EUA atiraram tiros de alerta para dispersá-los. Os soldados dos EUA que estavam nas torres de vigia desceram, enquanto alguns anciãos locais eram chamados para tentar acalmar os manifestantes.


E enquanto se tomavam essas medidas, segundo documentos que se leem na página Wikileaks, cerca de 100 LNs cantavam “Morram os EUA” e “Morra Obama”. Mais tarde, soldados afegãos informaram aos comandantes norte-americanos que o protesto nada tinha a ver com o míssil que matara afegãos, mas, sim, com duas crianças afegãs da vila de Ahmar na província de Konar que haviam sido mortas na véspera em ataque de aviões-robôs atirando de longa distância. Os soldados norte-americanos alegaram que seriam mentiras; que as crianças haviam sido massacradas pelos Talibãs e que tudo não passava de efeito da propaganda pró-Talibã.


O incidente de “Morra Obama” em dezembro de 2009 – último mês coberto pelos documentos já distribuídos – é apenas um, das centenas de protestos de cidadãos, manifestações e tumultos urbanos que são relatados nos documentos de Wikileaks. Exame rápido dos protestos anotados naquele mesmo mês – indicam que há movimento popular de resistência contra os EUA e que a população afegã está mobilizada também nas ruas.


Dia 8 do mesmo dezembro, por exemplo, os afegãos organizaram, nos termos dos documentos militares dos EUA “protestos contra a proibição que impedia a viagem, para Cabul, do deputado local eleito para representá-los. Como o deputado eleito fora proibido de viajar, escolheu-se, para a viagem, outro representante local que não concorrera às eleições.” Nesse caso, os eleitores afegãos enganados bloquearam o tráfego.


Dia 10, sempre daquele dezembro, cerca de 400-500 afegãos reuniram-se em Cabul em manifestação pela paz, e em apoio às vítimas da guerra e contra “o desrespeito aos direitos humanos no Afeganistão” – como se lê noutro documento vazado. Ninguém noticiou o movimento pacífico de cidadãos na província de Nanghahar; naquele caso, os cidadãos suspeitavam de que seus votos não tivessem sido contabilizados na eleição para o conselho provincial; essa manifestação aconteceu dia 21 de dezembro.


Dia 23 de dezembro, próximo do COP Zormat na província de Paktia, cidadãos afegãos organizaram protesto contra recente operação das forças militares da coalizão naquela área. Dia 27, segundo outro relato vazado pela página WikiLeaks, cerca de 400 afegãos marcharam até a residência do governador provincial, aos gritos de “Morra o governador”.


Os manifestantes – que os EUA descrevem como “meio doidos” [ing. cranky] mas “não-violentos” – estariam incomodados porque seus “votos não foram computados” nas eleições provinciais. Em relato posterior, a manifestação é descrita nos documentos vazados por WikiLeaks como tendo sido provocada “por camelôs proibidos de comerciar que querem empregos ou que seu negócio seja legalizado”. Enquanto, dia 30 de dezembro, civis afegãos organizaram manifestações em Jalalabad para protestar contra mortes de civis, na província de Konar, por soldados das forças da coalizão EUA-OTAN.


“Fumando haxixe”


Apesar de o cultivo massivo de papoulas para produção de ópio no Afeganistão ter aparecido como tema de inúmeras reportagens e análises sobre o curso da ocupação norte-americana no Afeganistão, a cobertura do consumo de drogas por afegãos tem-se mantido limitada a artigos generalistas sobre o problema dito “das drogas”. (Divulgaram-se estimativas de que haja aproximadamente um milhão de afegãos dependentes de ópio, heroína e outras drogas.)


Os documentos de Wikileaks, contudo, oferecem informação mais aproximada do que melhor se descreve como esforços da população afegã, destroçada pela guerra, na direção da automedicação, sobre quem de fato está envolvido com drogas e as atitudes dos EUA em relação ao consumo de drogas pela população local.


Um dos documentos de dezembro de 2009, por exemplo, observa que buscas anteriores feitas nos quartéis das forças afegãs na Base Avançada de Operações [ing. Forward Operating Base] Costell “encontrou drogas”. E não foi incidente isolado. Em documento de dezembro de 2006, lê-se que “Durante inspeção no velho centro distrital, a Equipe de Reconstrução Provincial [ing. Provincial Reconstruction Team, PRT] passou por uma sala cheia de guardas da Polícia Nacional Afegã [ing. Afghan National Police, ANP] que fumavam haxixe”.


E o documento prossegue: “Uniformes da ANP foram encontrados naquele local jogados em pilhas de lixo ou metidos em contêineres. Os policiais declararam que usar uniforme é como sentença de morte.”


Quando uma patrulha de combate dos EUA entrou na cidade de Bashikheyl em outubro de 2007, “o comandante da patrulha viu várias (5 ou 6) seringas hipodérmicas espalhadas pelo chão.” Comentário inserido nesse ponto do relatório diz:


“Tudo indica que as agulhas foram usadas para ‘se injetar heroína’ (sic). Os habitantes pobres dessa região só fumam haxixe ou cigarros de fumo misturado com ópio. As seringas de heroína (sic) podem indicar a presença de ACM [ing. anti-coalition militia (milícias anticoalizão)], porque os locais não têm dinheiro para comprar heroína.”


Outro documento traz uma anotação sobre um oficial local “que está sempre chapado (sic) e não trabalha bem com a comunidade.”


“Não têm coragem de enfrentar os EUA e escondem-se como mulherzinhas”


Documentos vazados pela página Wikileaks também expõem os modos pelos quais os militares norte-americanos tentam influenciar civis estrangeiros mediante propaganda, informações falsas e palavreado que algumas vezes não passa de troca de palavrões, como em discussão de adolescentes, com piadas machistas e total misoginia.


Soldados norte-americanos encarregados de dar apoio às forças afegãs aliadas na “tomada e ocupação” da cidade de Musa Qaleh lá chegaram com uma lista de “tópicos de conversa”. Rápida leitura desses "tópicos” permite avaliar os métodos de persuasão e influência adotados pelo exército dos EUA.


A lista manda começar por declarar que os soldados norte-americanos chegaram lá a pedido do governo afegão; e o governo afegão deve ser apresentado – em avaliação muito questionável – como “forte e comprometido com o comando, a reconstrução e o bem-estar dos afegãos”. Também muito questionável é outro item dessa lista de “tópicos de conversa” que manda os soldados dos EUA informarem aos cidadãos locais que as forças de segurança afegãs “são forças bem treinadas e aqui estão para proteger os direitos de vocês e aplicar as leis do Afeganistão”.


Outro dos “tópicos de conversa” parece visar a diminuir a importância de os militares norte-americanos obedecerem à lei internacional no que tenha a ver com respeitar a vida e o bem-estar dos civis, como que se autoabsolvendo, pelo menos parcialmente, mas antecipadamente, dos deveres de proteger a vida de civis, e apresentando como normais as mortes de civis.


Ali se lê que “os guerrilheiros Talibãs são covardes e escondem-se atrás de afegãos inocentes para atacar os soldados do exército afegão e os soldados do exército dos EUA-OTAN. Incontáveis afegãos inocentes são mortos todas as semanas nesses atos de violência inexplicáveis.”


O tenente Jonathan Brostrom, jovem oficial do exército, foi ainda mais violentamente claro, ao se dirigir a anciãos afegãos numa assembléia no Posto Avançado de Bella, na província do Nuristão, como se lê nos documentos de WikiLeaks. “Disse que eles têm de expulsar da cidade deles as milícias inimigas das Forças da Coalizão (...) Eles têm de denunciar os Talibãs, porque é a única opção para livrar-se deles. Ou [os Talibãs] saem da cidade, ou combatem contra os EUA como homens e morrem” – escreveu Brostrum, que foi morto num ataque dos Talibãs contra outro posto avançado, poucos meses depois.


Os anciãos naquela assembleia responderam que gostariam de ajudar as forças da coalizão, mas que os guerrilheiros eram muito numerosos e os habitantes da cidade não tinham armas para enfrentar um exército de guerrilheiros. Mesmo tendo ouvido esse argumento, Brostrom continuou a insistir em que os locais arriscassem a própria vida e a vida de suas famílias e denunciassem os Talibãs para ajudar os soldados dos EUA.


O mesmo Brostrum, apesar de seu comandante e do seu chefe de pelotão insistirem, nos cursos preparatórios, que as mulheres teriam de ser respeitadas, e que esse seria traço importante da ocupação norte-americana, não deixou de reproduzir, em seu contato com a assembleia de anciãos afegãos, um vasto repertório de preconceitos machistas. “Disse a eles que os Talibã se aproveitam da hospitalidade deles para esconder-se na vila. Que são fracos e não tem coragem de enfrentar os EUA em campo aberto e que se escondem como mulherzinhas."


“... e faziam gestos obscenos”


Tendo insistido muito em temas da “contraguerrilha” nos últimos vários anos, seria de esperar que os militares norte-americanos tivessem investido muito para demonstrar maior sensibilidade cultural nos contatos com os afegãos. Documentos de 2009, contudo, sugerem que tantos esforços têm levado a poucos resultados. Em meados do mês de dezembro, uma militar norte-americana, mulher, da Força Aérea dos EUA, revistou uma mesquita usando cachorros, em área próxima de uma base de operações dos EUA e do exército afegão.


“Depois da revista, a Polícia de Fronteira Afegã [ing. Afghan Border Police, ABP], o Corpo de Guardas de Segurança Afegãos [ing. Afghan Security Guards, ASG] e os intérpretes afegãos protestaram, furiosos, por uma mulher e cachorros terem profanado a mesquita” – lê-se no relatório dessa revista na mesquita, na página de Wikileaks. Naquela situação, com todos os aliados revoltados contra os soldados dos EUA, o comando dos EUA foi obrigado a adotar, em situação de emergência, providências para controlar os danos; reuniram-se não só com representantes das forças de segurança do Afeganistão mas também, segundo o mesmo relato, com membros do exército paquistanês presentes na base, para apresentar desculpas “e compraram uma vaca a ser sacrificada para purificar a mesquita”.


Simultaneamente, o pessoal mais antigo do comando local dos EUA começou a providenciar para impedir que notícias sobre o ocorrido se disseminassem para as vilas próximas. A militar e seu cachorro foram rapidamente mandadas para longe da base, e o pessoal norte-americano recebeu treinamento extra, com ordens para que “respeitassem a dignidade da população local, suas práticas, seus costumes e sua religião; e que mantivessem comportamento aceitável em áreas de mesquitas (sic).”


E os soldados afegãos aliados não são os únicos enfurecidos por ações de soldados norte-americanos. Um líder de assembleia local, segundo os documentos da página Wikileaks, “informou que sempre, depois de cada operação da Coalizão, os resultados são negativos”. Chega a dizer que “as pessoas sentem-se ofendidas pelo que [os soldados da Coalizão] fazem aqui”. Muitos outros se manifestaram. Em um resumo de vários relatórios do que acontece nessas reuniões entre militares e as assembleias locais, lê-se:


“Os líderes da assembleia local disseram que melhor seria se os estrangeiros usassem o dinheiro que gastam para fazer guerra, em obras que beneficiassem o povo. Um dos líderes disse que, em três meses de operação, ninguém viu uma parede construída. Perguntado sobre a presença de guerrilheiros Talibã na área, respondeu que só havia seis Talibã, mas que viviam naquele vale 100 ladrões, 100 assassinos e 100 viciados em drogas. Há animosidade e combates em Tagab há 35 anos. As pessoas estão mudando-se da região, para fugir da guerra”.


Documentos dos EUA também registram que a população local que vive nas proximidades da Base de Operações Avançadas Salerno na província de Khost ataca regularmente, a tiros, os aviões de EUA-OTAN, como fez um civil, dia 25/7/2009, o qual declarou que “atirou, porque já não suportava ouvir aviões fazendo voos rasantes sobre sua casa”.


Não foi o primeiro (e certamente não será o último) civil afegão a manifestar com tiros sua fúria contra aviões estrangeiros sobre a própria casa. Por exemplo, no relatório de um piloto norte-americano de volta de outra daquelas missões de sobrevoo, lê-se: “Bandeiras brancas e negras foram observadas sobre os telhados de casas de LNs. Mais de vinte casas foram vistas com bandeiras. A população local parecia enfurecida por nos ver ali. Jogavam pedras contra nossos aviões e faziam gestos obscenos.”


O que mais virá, pela página Wikileaks?


Além de informações sobre o ativismo civil dos afegãos, sobre o uso de drogas, sobre os métodos dos militares norte-americanos e sobre gaffes da propaganda e os preconceitos, e além da reação da população afegã contra tudo isso, ainda há muito o que descobrir no Wikileaks Afghan War Diary.


Apesar do bom trabalho que fez o Guardian, ao chamar atenção para o alto número de civis mortos no Afeganistão e que está bem documentado, há naqueles arquivos ainda muito material a ser divulgado, sobre o padecimento diário dos afegãos e as dificuldades que enfrentam para sobreviver sob ocupação militar estrangeira – temas que têm sido sempre negligenciados, apesar de a mídia cobrir a guerra do Afeganistão já há mais de dez anos.


Com sorte, e sejam quais forem os próximos 15 mil documentos que a página Wikileaks decidir liberar, deve-se esperar que examinem mais a fundo e procurem distribuir sempre mais material sobre os efeitos da guerra sobre as pessoas em cujas costas recai o peso maior da guerra – os civis afegãos. Esse é o mais importante e o único segredo realmente significativo que permanece oculto e que, até hoje, ainda não recebeu atenção do jornalismo investigativo.


*Nick Turse is the associate editor of TomDispatch.com. An award-winning journalist, his work has appeared in the Los Angeles Times, the Nation, and regularly at TomDispatch. His latest book, The Case for Withdrawal from Afghanistan (Verso Books), which brings together leading analysts from across the political spectrum, has just been published. He discusses why withdrawal from Afghanistan hasn't been on the American agenda in Timothy MacBain's latest TomCast audio interview, which can be accessed by clicking here or downloaded to your iPod here. Turse is currently a fellow at Harvard University's Radcliffe Institute. You can follow him on Twitter @NickTurse, on Tumblr, and on Facebook. His website is NickTurse.com.