25/7/2010, The Guardian, UK – Traduzido por Vila Vudu
Como os documentos chegaram aos ativistas online contra a guerra do Afeganistão
As autoridades dos EUA já sabiam, há semanas, que haviam sofrido uma hemorragia de informações secretas, numa escala que, comparativamente, faz os “Pentagon Papers” parecerem pouca coisa.
O material chamado em inglês de “The Afghan war logs” [aprox. “os postados da guerra do Afeganistão”], que o Guardian publica hoje, consiste de 92.201 relatórios internos de ações dos militares dos EUA no Afeganistão entre janeiro de 2004 e dezembro de 2009 – relatórios de agências de inteligência, planos e relatórios das operações da coalizão, descrições de ataques inimigos e explosões em acostamentos de estradas, atas de reuniões com políticos locais; a maioria, documentos secretos.
A fonte do Guardian para esses papéis é o website Wikileaks, especializado em publicar material não rastreável que alguém deseje divulgar, e que está publicando simultaneamente o material bruto que recebeu. (Como se lê no site, “WikiLeaks é serviço público multijurisdicional concebido para proteger fontes, jornalistas e ativistas que tenham material sensível a divulgar para o grande público” [NT].)
Washington teme ter perdido ainda maior quantidade de material muito sensível, inclusive um arquivo de milhares de telegramas enviados pelas embaixadas dos EUA em todo o mundo, nos quais se trata de comércio de armas, encontros secretos e opiniões não censuradas de outros governos.
O fundador de Wikileaks, Julian Assange, diz que, nos últimos dois meses recebeu outra enorme quantidade de material “de primeira qualidade” de fontes militares, e que investigadores do departamento de investigações criminais do Pentágono pediram para encontrá-lo em território neutro, para que os ajude a determinar a sequência dos vazamentos. Assange não concordou.[1]
Por trás das revelações de hoje há duas histórias diferentes: primeiro, as tentativas do Pentágono de determinar a sequência de vazamentos, que teve resultados trágicos para um jovem soldado; segunda, um raro trabalho de investigação jornalística entre o Guardian, o New York Times e Der Spiegel, na Alemanha, para analisar e classificar a quantidade imensa de dados, para divulgação global desse relato secreto das entranhas do maior exército em guerra do mundo.
O Pentágono movimentou-se muito devagar. As provas que agora têm reunidas sugerem que alguém trabalhava desde novembro numa instalação de alta segurança dentro de uma base militar dos EUA no Iraque, onde começou a copiar material secreto. Dia 18 de fevereiro, Wikileaks postou um único documento – um telegrama secreto da embaixada dos EUA em Reykjavik, dirigido a Washington, em que se registram os protestos de políticos islandeses que se sentiam acossados por britânicos e holandeses, por causa do colapso do banco Icesave; e uma frase de um diplomata islandês, que se referia ao presidente da Islândia como “imprevisível”. Empregados de Wikileaks na Islândia denunciaram que passaram a ser seguidos, depois dessa publicação.
Os americanos, evidentemente, estavam longe de descobrir a fonte quando, dia 5 de abril, Assange organizou conferência de imprensa em Washington na qual exibiu um vídeo militar dos EUA em que se via um grupo de civis em Bagdá, inclusive dois jornalistas da Reuters, sendo atacados a tiros na rua, em 2007, por helicópteros Apache: e ouviam-se os soldados autoelogiando a própria boa pontaria, antes de destruir uma ambulância que lá estava para resgatar um homem ferido e que, como depois se viu, conduzia duas crianças no assento dianteiro[2].
Só no final de maio o Pentágono fechou o cerco a um suspeito e, mesmo isso, só depois de uma muito estranha sequência de eventos. Dia 21 de maio, um hacker californiano, Adrian Lamo, foi procurado online por alguém que se identificava como Bradass87 que se pôs a enviar-lhe mensagens. Mostrou-se extraordinariamente aberto: "oi... como vai?… sou analista de inteligência do exército, servindo
Dali em diante, durante cinco dias, Bradass87 abriu o coração para Lamo. Contou que seu trabalho lhe dava acesso a duas redes secretas: a [rede] Secret Internet Protocol Router Network – SIPRNET -- via pela qual circulam os documentos da inteligência militar e diplomática dos EUA classificados como “secretos”; e o [sistema] Joint Worldwide Intelligence Communications System que usa sistema diferente de segurança para transportar material classificado como “super secretos”. Disse que seu trabalho lhe permitira descobrir “coisas inacreditáveis, muito feias (...) que deveriam ser de conhecimento público, em vez de mofarem num servidor escondido numa sala escura
Bradass87 sugeriu que “alguém que conheço intimamente” estava baixando, compactando e codificando todos esses dados e transmitindo para alguém que [a mesma pessoa] identificara como Julian Assange. Depois, disse que ele mesmo vazara o material, sugerindo que gravara CDs que etiquetara como música de Lady Gaga e os armazenara em seu laptop de alta segurança simulando que baixara músicas: “quero que as pessoas vejam a verdade”, disse ele.
Enfatizou a quantidade de material vazado: “é diplomacia às claras (...) é um Climategate de alcance global e incrivelmente profundo (...) é lindo e horrível (...). São dados públicos, têm de ser de domínio público.” A certa altura, Bradass87 dá-se conta do que está fazendo e diz: “nem acredito no que estou “abrindo” para você”. Era tarde demais. Sem que ele soubesse, no segundo dia de mensagens, dia 23 de maio, Lamo fizera contato com os militares norte-americanos. Dia 25 de maio, encontrou-se com investigadores do departamento de investigações criminais do Pentágono numa loja Starbucks e entregou-lhes cópia impressa das mensagens de Bradass87.
Dia 26 de maio, na Base Hammer [US Forward Operating Base Hammer], a cerca de
A notícia dessa prisão vazou lentamente, sobretudo pelo site Wired News, cujo editor sênior, Kevin Poulsen, é amigo de Lamo[3] e publicara excertos editados das mensagens de Bradass87. A pressão começou a crescer sobre Assange: o Pentágono declarou formalmente que estava à procura dele.
Daniel Ellsberg, que vazou os “Pentagon Papers” da guerra do Vietnã, disse que temia que Assange estivesse correndo algum tipo de risco físico; Ellsberg e duas outras fontes de casos anteriores de vazamento de material secreto dos EUA alertaram para a possibilidade de as agências norte-americanas tentarem usar o fundador do website Wikileaks “como exemplo”. Assange cancelou viagem prevista para Las Vegas e desapareceu.
Depois de vários dias tentando fazer contato por intermediários, o Guardian finalmente encontrou Assange num café em Bruxelas, onde ele aparecera para falar no Parlamento Europeu.
Assange contou que Wikileaks recebera vários milhões de arquivos, praticamente uma história não-contada da atividade do governo dos EUA em todo o mundo, com dados sobre inúmeras e importantes atividades, todas controversas. Estavam dando os últimos retoques numa versão compreensível daqueles dados e os divulgariam pela internet imediatamente, para impedir qualquer tentativa de censura.
Mas Assange também temia que a importância das informações e algumas das histórias que lá havia acabassem enterradas em algum nicho de internet, se o conteúdo dos arquivos fosse publicado só na internet, e como matéria bruta, sem qualquer edição. Por isso concordou com que uma pequena equipe de repórteres especialistas do Guardian trabalhasse o material durante algumas semanas, antes da publicação no website Wikileaks; seria uma espécie de edição, sobretudo para fixar o que os dados realmente mostravam sobre o andamento da guerra.
Para reduzir o risco de o material ser confiscado pelas autoridades, banco de dados foi aberto para o New York Times e a revista semanal alemã Der Spiegel que, com o Guardian, publicariam simultaneamente em três diferentes jurisdições. Assim feito, Assange não influiria nas matérias que seriam escritas por jornalistas, mas seria consultado para definir o momento da divulgação.
Assange abriu o acesso a um primeiro grupo de dados ainda codificados, num website secreto, ao qual o Guardian teria acesso, com nome de usuário e senha inventados a partir do logotipo do café, que havia num guardanapo.
Tudo o que o Guardian publica é resultado dessa pesquisa, naqueles dados. Wikileaks publicou muito do mesmo material, mas não organizado e só dados brutos. Pelo que se sabe, também peneiraram cuidadosamente os arquivos, para evitar qualquer risco de identificar fontes.
Desde a divulgação do vídeo do helicóptero Apache, houve algumas tentativas de baixo nível de infiltração na página de Wikileaks. Histórias online acusam Assange de gastar dinheiro da Wikileaks em hotéis caros (numa de nossas reuniões de acompanhamento em Estocolmo, ele dormiu no chão do escritório); de vender dados para a mídia de jornalões (nos contatos com o Guardian jamais se falou de dinheiro); ou de cobrar por entrevistas à grande mídia.
No início desse ano, Wikileaks publicou documento militar dos EUA que revelou um plano para “destruir o centro de gravidade” de Wikileaks, atacando a credibilidade do website.
Enquanto isso, em local ignorado, mas
Para Ellsberg, “Manning é meu mais novo herói”. Em mensagem pessoal e em chat online, Bradass87 perscrutou o futuro: “sabe deus o que acontecerá agora (...). Espero que aconteça discussão em todo o mundo, debates e reformas. Se não... estamos ferrados.”
Esta parte, no original em inglês, pode ser lida em: Afghanistan war logs: Story behind biggest leak in intelligence history
Leia também:
· (1) Afeganistão: quadro sem retoques (1), 25/7/2010, Guardian, UK (editorial - traduzido)
· (3) Os dados, o mapa, o tutorial para navegar nos dados e um glossário (indispensável), início em http://www.guardian.co.uk , com links para outras páginas.
[1] Ver entrevista com Assange, em inglês, em http://www.guardian.co.uk/world/video/2010/jul/25/julian-assange-wikileaks-interview-warlogs
[2] Pode ser visto em http://www.commondreams.org/headline/2010/04/05-6
[3] Há longa entrevista, com fotos (2004) de Lamo, o hacker, na revista Wired, em http://www.wired.com/wired/archive/12.04/hacker_pr.html