A pouco mais de cinco meses de deixar o cargo, o presidente Lula faz um balanço dos quase oito anos de sua gestão e acredita que o Brasil está pronto para dar um salto de qualidade, chegando à posição de quinta maior economia do mundo em 2016, ano dos Jogos Olímpicos no Rio.
"Deixo ao meu sucessor um país infinitamente mais sólido, justo e democrático", disse ele durante uma hora e meia de entrevista concedida esta semana aos jornais Brasil Econômico e O Dia.
Em seu gabinete no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), sede provisória da Presidência, Lula também revelou os planos que promete tocar a partir de 2011, na condição de ex-presidente.
Quer transferir a experiência brasileira em programas sociais para países da África e América Latina, além de reassumir a carteirinha de militante do PT.
Como líder do partido, promete negociar uma reforma política ampla. Ao defender a política externa, um dos pontos mais controvertidos de seu governo, o presidente afirmou que uma coisa é apoiar Cuba, outra é concordar com prisões políticas.
O presidente não acredita que haja no pré-sal brasileiro o risco de um acidente como o da BP nos Estados Unidos. "O barato saiu caro e deu no que deu", diz.
Descontraído e sem explicitar nomes, ainda fez as críticas habituais ao candidato José Serra (PSDB) e ao seu antecessor Fernando Henrique Cardoso.
Brasil Econômico - Presidente, qual é a diferença entre o país que o senhor recebeu em 2003 e o que entregará ao seu sucessor ou sucessora?
Luiz Inácio Lula da Silva - Tenho a convicção de que entregarei um Brasil infinitamente mais sólido, justo e democrático do que o de 1º de janeiro de 2003. A situação econômica é infinitamente melhor, com estabilidade e crescimento.
As reservas cambiais são suficientes para enfrentar qualquer crise externa, como as ocorridas na Rússia, México ou mesmo a dos Estados Unidos. O salário do trabalhador está crescendo. As classes D e E deram um salto de qualidade e a C ganhou projeção.
A educação melhorou substancialmente, conforme revelam dados do ministério, embora muito da qualidade do ensino básico dependa de estados e municípios e não da União.
A pobreza recuou muito. E, sobretudo, o Brasil ganhou respeitabilidade no mundo e autoestima no plano interno.
Deixo o país mais preparado para continuar dando um salto de qualidade. Se continuarmos crescendo nesse ritmo atual, estaremos entre as cinco maiores economias do mundo em 2016, ano da Olimpíada do Rio.
Por mais que a Globo queira falar mal do governo, tem melhoras que o cidadão mais pobre percebe no lugar onde mora, nos cantos mais remotos do Brasil. É impossível negar isso.
Olhando para trás, o que o senhor gostaria de ter feito diferente no governo?
Na reflexão que fizer depois de meu mandato, vou perceber o que deveria fazer e não fiz. O líder espanhol Felipe González costuma dizer que ex-presidente é como um vaso chinês. Enquanto está no poder é posto no lugar mais nobre da sala.
Depois, ninguém nunca sabe o que fazer com ele. Pode virar uma peça incômoda, um chato que fica lamentando a vida. Para mim, o melhor ex-presidente é o que não dá palpite.
Eu quero ser o melhor ex-presidente. E quando estiver nessa condição, certamente, vou refletir sobre meu governo.
A reforma tributária, por exemplo, que não consegui fazer. Parece que tinha um inimigo oculto, que impedia a coisa de andar.
Mandei dois projetos de lei para o Congresso. A primeira proposta eu entreguei junto com os 27 governadores, em abril de 2003.
Na segunda, em fevereiro de 2008, com o apoio de sindicalistas, empresários e líderes políticos, pensei que iria ser votada em três meses. Nada até hoje.
Por que não andou?
Acho que cada um tem uma reforma na cabeça. Apesar de enviar duas propostas que também não foram votadas, outra reforma à qual vou me dedicar é a da política.
Precisamos do financiamento público de campanha, para saber quanto custa o voto com toda a transparência.
A partir de 1º de janeiro de 2011 serei um militante do meu partido, o PT, e vou batalhar junto ao Congresso pela reforma política todo dia.
Não é possível um governador cassado a menos de um ano de terminar o mandato poder concorrer logo depois ao Senado e ser eleito para mais oito.
Também é preciso criar um sistema político no qual seja possível fazer acordos efetivos com os partidos e não ter de ficar negociando separadamente com terceiros.
Independentemente de ter um Congresso de esquerda ou direita, queria ver coalizões envolvendo acertos partidários, como há em outros países.
Além disso, seria bom que o Legislativo fosse terminativo, sem riscos de judicialização de alguns temas.
O senhor também disse que pretende, depois de sair do governo, levar sua experiência em políticas sociais para a África e América Latina...
O Brasil tem acúmulo de experiências de políticas públicas bem-sucedidas, que podem contribuir com a África e a América Latina.
Essas políticas precisariam ser adaptadas conforme a realidade de cada país, respeitando a cultura local. Nunca gostei de receber receitas prontas.
O primeiro grande acerto de nossas políticas sociais está num cadastro de pessoas benfeito. Dessa forma, não se joga dinheiro fora.
O sucesso do Bolsa Família está no fato de o governo federal não saber quem são os beneficiados. As prefeituras é que fazem.
Nós não nos importamos em saber qual é o partido político do prefeito nem o perfil do beneficiado.
Por fim, a Caixa Econômica Federal paga o benefício por meio de um cartão magnético. Em segundo lugar, provamos ser barato cuidar dos pobres. Difícil é cuidar dos ricos.
Por falar nisso, como o senhor viu a evolução da atual crise econômica da Europa?
O Brasil foi o primeiro a colocar US$ 14 bilhões no FMI (Fundo Monetário Internacional) para ajudar países em dificuldades. Nenhum dos grandes sócios colocou.
Na verdade, só os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) colocaram. A Europa não aceitou que déssemos palpites na crise deles, embora eles sempre tenham dado nas nossas.
Mas, agora, fizeram uma articulação séria, que garante uma aferição sobre os títulos podres em poder dos bancos, com a mediação da Alemanha, que está mais forte.
O fato é que demoraram muito para ajudar a Grécia, um país pequeno que não poderia ter causado o impacto que causou.
Em agosto próximo o senhor assumirá a presidência do Mercosul. Qual será seu objetivo?
Na presidência do Mercosul vou buscar a consolidação do acordo comercial com a União Europeia.
O grande obstáculo ao acordo é a França, com a velha questão do protecionismo à agricultura. Mais do que meu compromisso é minha prioridade à frente da presidência do bloco avançar nessa negociação.
Vou conversar com o companheiro Nicolas Sarkozy (presidente da França) para convencê-lo e, com certeza, chegar a um consenso.
Como o senhor avalia a receita utilizada para enfrentar a crise financeira internacional?
Economia não tem mágica e é muito prática. Você faz no governo as coisas conforme as necessidades, tomando medidas duras ou não e até voltando atrás se for preciso. Prova disso foram as ações anticíclicas que adotamos quando surgiu a crise dos Estados Unidos.
Ao invés de fazer contenção, buscamos elevar o investimento doméstico, sobretudo por meio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Além disso, estimulamos o consumo de bens duráveis.
Desoneramos a construção civil e vários produtos, como carros, geladeiras e máquinas de lavar. Tivemos a coragem de comprar a Nossa Caixa (SP) e metade do Banco Votoratim.
Enfrentamos a retração de crédito externo. Lançamos o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida no auge da crise e completaremos este ano um milhão de moradias contratadas.
Investimos R$ 14 bilhões para levar energia a 15 milhões de pessoas. É como se o cidadão saísse do século 19 com um aperto de botão.
Sei bem o que é isso. Eu tenho 64 anos e muitos não se lembram de como as coisas eram antes.
Quando eu morava com minha família na Vila Carioca, em São Paulo, a gente costumava comprar cerveja quente, que era mais barato.
Então sabe o que a gente fazia? Colocava a cerveja num balde, descia num poço lá perto e ficava lá 40 minutos para "gelar".
Que outras ferramentas foram utilizadas?
Temos na riqueza do pré-sal a oportunidade de superar um século de atraso na educação. Por isso propus a criação de um fundo para investir em educação e em pesquisa.
Investir em ciência e tecnologia é a condição sine qua non para que o país dê um salto de qualidade. Em 2003 havia R$ 380 bilhões de crédito bancário, agora chegamos a R$ 1,5 trilhão.
Entrou nessa conta o crédito consignado, que tem como garantia a folha de pagamento do serviço público. Com isso, injetamos R$ 120 bilhões na economia do país.
A agricultura familiar, por sua vez, saiu de R$ 2,4 bilhões de financiamento para R$ 16 bilhões.
Mas ainda falta muito por fazer no país, não é?
Sim, claro. Mas tudo será mais fácil de agora em diante. O Brasil mudou de cara e avançou em várias áreas. A classe C reúne agora mais de 30 milhões de pessoas.
Na crise, foram os pobres que saíram às compras quando as classes A e B ficaram com medo. Na véspera do Natal de 2008 ousei convocar o brasileiro em rede nacional de rádio e televisão a consumir, explicando que essa era a maneira de manter a roda da economia girando.
Se as pessoas parassem de comprar, a empresa pararia de produzir e o próprio trabalhador correria o risco de perder o emprego. Comprar era uma forma de gerar emprego.
Por isso, mostrei que o momento permitia que as pessoas se endividassem, desde que não comprometessem sua renda.
Fiquei brigando com a indústria automobilística por um ano para que as prestações dos carros novos coubessem no salário do trabalhador.
O importante não era o preço final, mas o número de prestações. A desoneração fiscal esticou o prazo do financiamento para até 80 meses. Caber no bolso é fundamental para fomentar as vendas.
Todas essas medidas não geraram descontrole dos gastos públicos?
Trato a questão do gasto público com a maior seriedade, tendo por base minha história pessoal.
Sou casado há 36 anos e nunca fiz uma despesa que não pudesse pagar. Só comprei TV em cores quando podia.
Assim faço com o Brasil. Não queremos deixar as coisas desarrumadas para o próximo governo. Digo que não governo o Brasil, mas cuido do Brasil, assim como cuido da família.
Levo muito a sério as contas públicas. Nesse sentido, os companheiros Henrique Meirelles (presidente do Banco Central) e Guido Mantega (ministro da Fazenda) tiveram um papel importante.
Não vou me descuidar da inflação. Não é porque estamos em período eleitoral que não subiremos os juros se for necessário.
Não queremos mais a volta da inflação. Até 5% anuais é uma taxa suportável. Já vivi como assalariado com inflação de 80% ao mês e sei o que sofremos com isso.
O senhor não acha a carga tributária exagerada?
Temos hoje carga tributária de 34,5%, mas é preciso comparar esse percentual com a economia. Se pegarmos os 20 países mais pobres do mundo, encontraremos cargas tributárias de 11%. Mas neles não existe Estado.
Defendo uma reforma tributária porque quero alíquotas menores. Quero um sistema mais simples, que desonere a produção. Mas é dos impostos que sai o dinheiro para executar nossas políticas.
Quando colocamos R$ 100 bilhões do Tesouro no BNDES é porque quero que ele seja dez vezes maior que o Bird (Banco Mundial).
Não quero merrequinha, quero um BNDES internacional, um Eximbank. Os empréstimos saíram de R$ 34 bilhões em 2006 para R$ 139 bilhões em 2009 e chegarão logo a R$ 200 bilhões.
Por isso acho engraçado o candidato dizer que estamos privatizando dinheiro público.
Vamos emprestar dinheiro para quem? Para nós mesmos? Precisamos, sim, ajudar as empresas brasileiras, ajudar no aproveitamento da riqueza do petróleo...
Um dos pontos mais criticados do seu governo é a política externa, que teria rompido com a tradição democrática brasileira de defesa dos direitos humanos ao apoiar ditaduras. Como o senhor avalia esse aspecto?
As pessoas que estão presas acham que podem contar com a defesa de todos que estão do lado de fora. Quando fui preso, não tive a solidariedade de todos.
Mas é óbvio que gostaria que não houvesse preso político em lugar nenhum do mundo. Queria que todos os países tivessem o mesmo grau de liberdade que temos no Brasil.
Quem pode dizer que há país mais livre do que o Brasil? Duvido que exista. Na conferência de comunicação no ano passado, alguns veículos não participaram por achar que era coisa arbitrária do governo, que quer se meter.
Quando um governante critica um jornal é censura. O cidadão da imprensa é o único que não aceita críticas.
Estranhei quando o presidente da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa, Alejandro Aguirre) disse que eu ameaçava a democracia.
Ele se esqueceu da homenagem que me fez meses atrás e da carta que me enviou. O Brasil está tranquilo com o seu Estado democrático, está provado que temos plena democracia.
Mas como o senhor avalia os resultados da política externa de seu governo?
O Brasil definiu que iria procurar diversificar suas relações políticas e comerciais no plano internacional.
Em 25 de janeiro de 2003, no Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça), disse ao Celso Amorim (chanceler) que iríamos ter nova política externa.
É preciso acabar com a mesmice do século 20. Por isso, não fazia sentido olhar para a Europa sem enxergar a África, olhar para os Estados Unidos sem enxergar o Oriente Médio e o restante da América Latina.
O Brasil tem 16 mil quilômetros de fronteira seca, só não fazemos fronteira na América do Sul com Chile e Equador. Tenho orgulho de ter sido o primeiro presidente brasileiro a visitar todos os países árabes.
Fui a todos os da América Central e o primeiro chefe de Estado desde o imperador Pedro II a ir a países como o Líbano. Fiz oito viagens à África, com quem elevamos a balança comercial de US$ 3 bilhões para US$ 26 bilhões.
Tiramos uma visão tacanha e o Brasil pôde aproveitar as oportunidades com a África. Se não fizermos, a China fará.
Só que temos a vantagem de mais apego, similaridades e afinidades com os africanos, sobretudo os países do continente que falam português.
É um continente com 800 milhões de habitantes que aprende a democracia e que tem países crescendo 8% ao ano.
Como o senhor avalia a guerra federativa em que se transformou a discussão no Congresso em torno dos royalties do petróleo?
Em primeiro lugar, entendo que esse problema só ocorre por conta da democracia. Numa reunião na Presidência, em agosto de 2009, que terminou às 2 da manhã, eu, o ministro Edison Lobão (Minas e Energia), a ministra Dilma Rousseff, os governadores de São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro e outros parlamentares fizemos um acordo enviado ao Congresso Nacional para evitar que a questão dos royalties fosse discutida em ano eleitoral.
Somente depois das eleições, com a cabeça fria, o tema poderia ser tratado de forma adequada. Mas a coisa chegou ao ponto que chegou por interesses eminentemente eleitorais. Cada um preferiu fazer seu proselitismo e os estados produtores perderam na futura divisão generalizada e até o que já tinham.
Reconheço que o petróleo é da União e que deve haver uma divisão, mas os Estados produtores têm direito a algo mais.
O Brasil todo tem de se beneficiar, garantindo um pouco mais para os estados produtores. Não é a melhor coisa jogar a riqueza do pré-sal no ralo do custeio dos estados e municípios.
Por isso, defendemos que os recursos se destinem ao meio ambiente, cultura, saúde, educação, e ciência e tecnologia, o que permitiria ao Brasil se consagrar como grande nação em 20 ou 30 anos.
Agora vou esperar o que vai sair da Câmara. Não sei se vão votar este ano, embora a questão da partilha seja importante para nós.
O acidente da BP no Golfo do México, nos Estados Unidos, ameaça os projetos do pré-sal?
Não estamos falando de um acidente comum. O que houve lá é que quiseram fazer o mais barato. E, como diz o ditado, o barato pode sair caro.
A BP apenas abriu o poço com tampão para medição, sem se cercar dos devidos cuidados. Deu no que deu.
entrevista extraída de Brasil Econômico (enviada por Beatrice)