quinta-feira, 29 de julho de 2010

O Paquistão e suas batalhas

28/7/2010, Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online - AToL
Traduzido por Caia Fittipaldi, coletivo de tradutores Vila Vudu
Syed Saleem Shahzad é jornalista, editor-chefe da sucursal no Paquistão, de AToL
Recebe e-mails em saleem_shahzad2002@yahoo.com

ISLAMABAD. Alguns dos 92 mil documentos militares secretos dos EUA divulgados pela página WikiLeaks no final da semana falam sobre o apoio que o serviço paquistanês de inteligência daria aos Talibãs – questão destacada na mídia internacional, embora o embaixador do Paquistão nos EUA tenha dito que os documentos são relatórios de campo, “antes de serem processados”.


O Paquistão apoiou abertamente os Talibãs enquanto estiveram no poder no Afeganistão, de
1996 a 2001, quando foram derrubados pela invasão comandada pelos EUA. Islamabad então alinhou-se ao lado dos EUA na “guerra ao terror” e comprometeu-se a combater os guerrilheiros Talibãs.


Mesmo assim, o Paquistão nunca perdeu de vista seus interesses estratégicos, em função dos quais é absolutamente necessário preparar-se para uma eventual retirada dos EUA, do Afeganistão. Esperava-se que acontecesse cinco anos depois da invasão; agora, a retirada está marcada para 2013, e sabe-se que pode, sim, ser novamente adiada.


O
establishment militar paquistanês, enquanto isso, adotou a abordagem pragmática de não queimar as pontes políticas que os ligam aos pashtuns, dado que os pashtuns terão papel decisivo depois da saída dos soldados estrangeiros. O plano inicial de ação incluía manter contato com os Talibãs, sem contato direto com o líder Mullah Omar, e sem a al-Qaeda.


Os EUA sabem disso há muitos anos, e regularmente reclamavam contra o arranjo, durante a presidência do general Pervez Musharraf, que renunciou em agosto de 2008.


Mesmo assim, os EUA continuaram a expandir o teatro de guerra mediante a nova política chamada “AFPak”, na qual o Paquistão era visto como parte essencial da solução do problema no Afeganistão, especialmente porque os militantes afegãos usavam as áreas tribais do Paquistão como base importante da guerrilha afegã.


Washington encorajou ativamente a emergência de uma coalizão civil para governar em Islamabad, coalizão que apoiou completamente a guerra norte-americana, enquanto o chefe do exército do Paquistão, general Ashfaq Pervez Kiani, desenvolvia laços muito íntimos com os militares dos EUA. O mandato de Kiani foi estendido semana passada por mais três anos a partir de novembro, quando se espera que se aposente – movimento absolutamente apoiado e estimulado pelos EUA. O mandato da embaixadora dos EUA no Paquistão Anne Patterson também foi estendido até 2013.


O significado do vazamento de dados dessa semana, ainda que estejam sendo desqualificados por incluírem muita informação fornecida por informantes afegãos mal informados, é que aparecem numa circunstância em que, no Paquistão, as linhas de separação estão bem claramente demarcadas entre os guerrilheiros e os militares. Qualquer mal-entendido entre Islamabad e Washington só beneficiará os guerrilheiros.


As manobras do serviço secreto paquistanês (ISI)


O senador afegão Arsala Rahmani é o principal elo de comunicação pelo qual britânicos e norte-americanos podem falar com os Talibã (ver:
“War and peace: A Taliban view” [Guerra e Paz: um ponto de vista Talibã], Asia Times Online, 26/3/2010].


Quando os Talibãs fugiram de Cabul no final de 2001, Rahmani, ex-vice-primeiro-ministro nos tempos pré-Talibãs e ministro da Educação do regime dos Talibãs, mudou-se para Islamabad, onde abriu uma empresa de armazenamento de produtos congelados.


Em pouco tempo, porém, o ISI, serviço secreto paquistanês, já o havia reinstalado em Peshawar, capital da Província da Fronteira Noroeste – hoje Khyber Pakhtoonkhwa. Aqui, ao lado de alguns outros ex-ministros do governo dos Talibãs (dos menores), Rahmani anunciou que se separava de Mullah Omar e da al-Qaeda; e a formação do grupo Jamiatul Khudamul Koran (ver
“Revival of the Taliban” [Renascimento dos Talibã], Asia Times Online, 9/4/2005).

Através desse grupo, que incluía ministros provinciais e
mullahs considerados Talibãs moderados, o Paquistão buscou reconquistar sua influência no Afeganistão. Inicialmente, os EUA não deram muita importância aos movimentos do que interpretaram como bando insignificante de mullahs. Mas, à medida que fracassavam todos os esforços dos EUA no Afeganistão, Washington, com o auxílio do serviço secreto paquistanês, acabou por aceitar a ideia de que alguns “bons” Talibãs poderiam participar do governo de Hamid Karzai em Cabul.


Em algum momento antes disso, o Paquistão entregou Jalaluddin Haqqani, o legendário comandante afegão na guerra contra os soviéticos nos anos 80s, a Islamabad; e pediu-lhe que se separasse de Mullah Omar. Prometeram-lhe, em troca, que, com apoio dos EUA, seria indicado para o cargo de chefe do Executivo do Afeganistão. A rede de Haqqani tornou-se um dos principais eixos de força da guerrilha afegã liderada por Talibãs.


Mas Haqqani entendeu que, no minuto
em que deixasse Mullah Omar, perderia toda a autoridade que tinha. Pediu desculpas ao Paquistão, dizendo que não poderia abandonar Mullah Omar em tempos tão difíceis. O establishment militar paquistanês e o ISI aceitaram e jamais se separaram de Haqqani.


Semelhante ao caso de Haqqani, também Gulbuddin Hekmatyar, o mercurial senhor-da-guerra e político afegão
par excellence, e membros do seu grupo Hezb-e-Islami Afghanistan (HIA) foram reunidos pelo ISI, que lhes pediu que abrissem escritórios no sul, na cidade portuária de Karachi, em Peshawar e em Quetta, capital da província do Baluquistão.


Foram instados a ir para Cabul e a envolver-se na política afegã ou, alternativamente, deixar o Paquistão imediatamente, fosse para onde fosse. Sob esse arranjo, há alguns anos Qutubuddin Hilal, líder do HIA, visitou o presidente Hamid Karzai em Cabul. Karzai acolheu respeitosamente a delegação do HIA, mas oficiais norte-americanos os humilharam e insistiram que fossem condenados como terroristas.


Ao mesmo tempo, o Paquistão tentava impressionar Washington prendendo centenas de membros da al-Qaeda, mas persistiram as dúvidas sobre os laços entre Paquistão e al-Qaeda. Essas dúvidas levaram a encontros entre Washington e Islamabad e adiante motivaram o Paquistão a exigir um governo de pashtuns, pró-Paquistão, em Cabul. Ficou acertado que seria governo moderado. Paquistão e EUA acordaram que, naquele governo, haveria espaço para os Talibãs moderados.


Gente como Rahmani e Abdul Wakeel Mutawakil, ex-ministro do Exterior do governo Talibã, e outros, passaram a ser bem-vindos em Cabul. Admitiu-se que membros do HIA concorressem às eleições como nomes individuais e mantivessem escritórios em Cabul.


Ao mesmo tempo, o serviço secreto paquistanês criou o grupo Jaishul Muslim, organização de militantes criada para combater os soldados dos exércitos de ocupação no Afeganistão, mas que condenaria o apoio de Mullah Omar à al-Qaeda, causa da invasão dos EUA. (Ver
“US revives Taliban tryst in Afghanistan” [Os EUA revivem os laços entre os Talibãs no Afeganistão], Asia Times Online, 23/9/2003. O plano era dividir os Talibãs. Vários comandantes Talibãs, no primeiro momento, aderiram ao grupo Jaishul Muslim.


Enquanto tudo isso acontecia, a al-Qaeda continuava muito ativa nas áreas tribais do Paquistão, recrutando e reagrupando os militantes, e todos os planos dos EUA e Paquistão foram por água abaixo. Todos os que se haviam reunido no novo grupo Jaishul Muslim (e outros similares), rapidamente se aliaram aos Talibãs.


As agências ocidentais de inteligência interpretaram esses eventos como traição pelo Paquistão. Em
2007, a al-Qaeda já controlava toda a guerrilha, das áreas tribais às grandes cidades no Paquistão; e gradualmente passava a atrair também os quadros jihadistas do próprio serviço secreto paquistanês. Resultado disso criaram-se condições perfeitas para batalha de vida ou morte entre o exército regular e as forças jihadistas.


Desenvolvimento chave ocorreu em 2005, quando guerrilheiros da Caxemira, treinados e altamente experientes, associaram-se também à al-Qaeda e aos Talibãs. Em 2007, Ilyas Kashmiri e Sirajuddin Haqqani (filho de Jalaluddin Haqqani) já trabalhavam juntos; e alteraram a dinâmica dos ataques comandados pelos Talibãs no Afeganistão. Essa aliança, gradualmente, abriu um fosso entre Haqqani e o Paquistão.


Por exemplo, no início de 2009, Naseeruddin Haqqani, irmão de Sirajuddin Haqqani, foi preso por agências de segurança do Paquistão. O líder Talibã paquistanês Baitullah Mehsud (depois assassinado) conseguiu que fosse libertado, numa troca por soldados paquistaneses sequestrados. Em caso semelhante, Sirajuddin Haqqani deu abrigo a alguns membros foragidos do Talibã paquistanês, quando os militares iniciaram operações na área tribal do Waziristão Sul.


Pela primeira vez, os documentos vazados por
WikiLeaks dirigiram os holofotes para o Paquistão, onde a situação em campo mostra que, embora o Paquistão mantenha laços tradicionais com o Talibã e os militantes, o Estado está à beira de um confronto sem precedentes com os guerrilheiros e suas várias organizações.


Em resposta às informações vazadas, supõe-se que legiões de militantes estejam agrupando-se no Norte Waziristão. O Paquistão vive momento crítico. Qualquer movimento em falso – do governo afegão ou do seu aliado EUA – pode jogar o Paquistão no colo de grupos extremistas.



O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
Pakistan has its own battle to fight