“Eu amo (…) a humanidade, mas admiro-me de mim mesmo. Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos”. DOSTOIÉVSKI [2]
“Chegamos a tal ponto que a “vida viva” autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor”. DOSTOIÉVSKI [3]
“Esses monges talvez leiam demais, e quando estão excitados revivem as visões que tiveram nos livros”. ECO [4]
Há livros que são perigosos. Os ditadores e censores de todos os tipos que o digam. Não obstante, talvez o perigo maior esteja em transformá-los em objetos de culto, em suspender a dúvida e acatá-los como a verdade a ser proclamada. O tratamento religioso dos livros não se restringe àqueles que fundamentam as religiões, os quais são assumidos como a doutrina inquestionável, a verdade revelada; há autores profanos transformados em profetas e seus livros religiosamente cultuados como a última verdade proferida. E ai dos hereges que duvidarem da palavra profetizada e interpretada pelos especialistas, os seus guardiões.
É perigoso tomar os livros como se fosse a realidade. Se na ficção há lugar para personagens como D. Quixote, é triste o quixotismo moderno dos que vivem com os pés no chão e a cabeça nas nuvens e se mostram sempre ciosos de abstrair e restringir a conceitos a realidade dos homens concretos, de carne e osso, com suas qualidades e imperfeições. Estes são transformados em abstrações e/ou dilemas a serem superados pelo debate teórico. Quando só se consegue experienciar a realidade pela ótica dos livros, seus personagens fictícios adquirem vida própria e os modelos conceituais existentes em nossas cabeças passam a delimitar os personagens reais que caminham sobre o mundo.
Os que idolatram os livros não vêem a riqueza que há na simplicidade das relações humanas cotidianas concretas. O livro também induz à perdição, isto é, à perda do sentido do real. O apego exagerado aos livros é uma espécie de doença que potencializa a vaidade dos candidatos a gênios, os quais, cada vez mais, se isolam do mundo dos simples mortais. Os que se encontram no Olimpo, ocupados com a imortalidade, têm dificuldades de se reconhecer nos comuns, cujos pés e cabeça teimam em se firmar na terra.
Os que preferem os livros à companhia humana, ou que só conseguem dialogar com aqueles que se identificam com suas leituras, falam de amizade como se esta tivesse seu fundamento nas teorias, conceitos e ficções literárias. Eles são capazes de debater por horas sobre o significado da amizade, desde os clássicos da antiguidade, mas são incapazes de suportar o amigo de carne e osso se este o trás de volta à terra e lhe fala em linguagem espontânea e vulgar. Parece que se protegem contra os choques que as relações pessoais reais inevitavelmente causam. Uma coisa é discutir a dialética dos livros, outra é assumir as contradições inerentes ao humano.
Existe a necessidade das ilusões e os livros são um convite à imaginação. O ser humano é capaz de amar a humanidade em geral e até mesmo de se declarar disposto a morrer por esta, mas é profundamente incapaz de suportar o indivíduo concreto e específico. O próximo torna-se o distante, o conceito, a abstração. Há a dificuldade de assumir a realidade para si e nas relações com os demais. Precisa refugiar-se na imaginação e no devaneio da ficção.
Ler é importante, mas o fundamental ainda é tentar viver a vida plenamente.
[1]KAZANTZAKIS, Nikos. Zorba, o Grego. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978, p. 97.
[2]DOSTOIÉVSKI, F. Os Irmãos Karamazov. São Paulo: Abril Cultural, 1970, p.48.
[3]DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo e outros escritos. São Paulo: Editora Paulicéia, 1992, p. 185.
[4]ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003, p.117.