sexta-feira, 30 de julho de 2010

Mensagem da Pérsia, para Obama

31/7/2010, M K Bhadrakumar, Asia Times Online

Traduzido por Caia Fittipaldi do coletivo Vila Vudu


Mais uma vez, aproxima-se outra primavera da diplomacia sobre a questão nuclear iraniana. Foi-se mais um duro inverno. A retórica já opera em modo de lucros cessantes.


A conclusão lógica do pacote de sanções do Conselho de Segurança da ONU, EUA e União Europeia, e da supermilitarização do Golfo Persa, terá de ser a aplicação das sanções mediante inspeção de navios iranianos. Essa é via de perigosas consequências, porque Teerã retaliará.


Simultaneamente, Teerã ofereceu uma escada aos EUA, para que desça do perigoso cavalo alto em que se montou. – Teerã anunciou que está disposto a discutir uma troca de combustível nuclear “sem precondições”. Washington fez o que devia fazer, e aceitou a abertura oferecida pelo Irã. As potências da Europa estão visivelmente aliviadas.


O porta-voz do Departamento de Estado dos EUA Philip Crowley pôs a bola em jogo na 4ª-feira, ao dizer que “Estamos, é claro, plenamente preparados para conversações com o Irã sobre detalhes de nossa proposta inicial envolvendo o reator de pesquisas de Teerã (...) além de, vocês sabem... as questões mais amplas de tentar compreender plenamente a natureza do programa nuclear iraniano. Esperamos que haja mais reuniões nas próximas semanas, como as que houve em outubro passado.”


A “proposta inicial” a que se referiu Crowley tem a ver com um plano para fornecer combustível para um reator de pesquisa em Teerã, em troca de urânio baixo-enriquecido. O plano foi discutido em Genebra entre o Irã e “O sexteto do Irã” [ing. the “Iran Six”] – EUA, Grã-Bretanha, China, Rússia, França e Alemanha.


De repente, se ouvem ‘bips’ em vários pontos da tela do radar diplomático. Já transpirou que houve confabulações sobre “reunião prospectiva” que envolverá a União Europeia e o Irã, representados por Catherine Ashton e Manouchehr Mottaki, respectivamente alta representante da UE e ministro das Relações Exteriores do Irã, dia 20 de julho, confabulações que aconteceram paralelas à Conferência Internacional sobre o Afeganistão.


Seis dias depois daquele encontro em Cabul, Teerã enviou comunicação à Agência Internacional de Energia Atômica, na qual sugere que o Irã estaria pronto para negociar detalhes da troca de 2.646 libras (1.200 kg) de seu próprio urânio baixo-enriquecido (3%), por 265 libras de urânio enriquecido a 20%. Outra vez, o ministro de Relações Exteriores da Rússia fez três declarações conciliatórias, entre a 3ª e a 5ª-feira, visivelmente desdizendo as declarações abrasivas dos meses anteriores em relação à questão nuclear iraniana.


Mais importante, o ministro das Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutoglu já revelou que Teerã garantiu a Ancara que suspenderá o enriquecimento de urânio a 20%, se se confirmar o acordo agora em discussão. Disse também que Mottaki transmitira a importante mensagem durante visita à Turquia, semana passada; dissera que, se o acordo com Teerã for assinado e o Irã passar a receber o urânio de que necessita para suas atividades de pesquisa, “nesse caso eles [o Irã] não continuarão a enriquecer o urânio a 20%” –, palavras de Davutoglu.


A grande questão hoje não é quando recomeçarão as discussões entre EUA e Irã, mas o que será discutido. Ashton, da União Europeia, ao sugerir que as conversações sejam iniciadas o mais brevemente possível, manifestou a opinião de que se concentrem exclusivamente no programa nuclear iraniano. Mas a agenda tem de ser mais ampla e deve incluir questões de segurança que subjazem ao impasse EUA-Irã.


Como disse Suzanne Dimaggio, diretora de estudos políticos do grupo Asia Society, à BBC, semana passada, há muitos outros temas a discutir. “Os iranianos repetem que vivem em área difícil, cercados por Estados nucleares: Rússia, Paquistão e Israel. E têm duas grandes guerras junto às fronteiras (...) Que tipo de atmosfera de segurança os iranianos querem ver no Iraque e no Afeganistão? Quais as possibilidades de se construir algum tipo de acordo de cooperação que vise à estabilização daqueles países?"


Os EUA, sobretudo, devem buscar engajar o Irã, ativamente, na questão do Afeganistão.


Vê-se muito claramente, hoje – e é o ponto mais importante dos documentos que a página WikiLeaks divulgou e expôs no domingo – que os EUA enredaram-se terrivelmente no Afeganistão porque se tornaram espantosamente muito dependentes dos militares paquistaneses. E boa parte da tolice de deixar-se prender em posição de dependência do Paquistão, no caso dos EUA, pode ser explicada pelas limitações da estratégia para o Afeganistão pensada pelo governo Obama e limitada, essa estratégia, pelo impasse EUA-Irã.


Qualquer correção séria de rumo na questão do Afeganistão, pelo governo Obama, obriga a engajar o Irã. Negociações amplas não serão fáceis. Como algum compromisso entre EUA e Irã poderia, efetivamente, mudar o jogo no Afeganistão, considerada a estratégia AfPak de Obama?


Primeiro, se a história ensina alguma coisa, deve-se lembrar que, nas semanas imediatamente depois do 9/11, Teerã manifestou inequívoca disposição para trabalhar com Washington durante a invasão pelos EUA em 2001. Nesse caso, Teerã esperava que alguma empreitada de cooperação com Washington contribuiria para moderar a hostilidade contra o regime em Teerã. Se o projeto limitado de curto prazo que só sobreviveu até a Conferência de Bonn em dezembro de 2001 não chegou a dar os frutos que Teerã esperava, a culpa não é dos iranianos, mas, exclusivamente, da miopia do governo Bush.


Segundo, que as preocupações de Irã com os Talibãs são antigas e, de fato, são idênticas às do governo Obama. O Irã teme absolutamente qualquer possibilidade de os guerrilheiros Talibãs voltarem ao comando da política no Afeganistão. O Irã está, mesmo, um passo adiante na compreensão e avaliação do processo, porque vê a ideologia dos Talibãs Wahhabistas também como perniciosa. Para Teerã, a chamada “rede Haqqani” [ver, sobre isso, “O Paquistão e suas batalhas”, 8/7/2010, Syed Saleem Shahzad, AToL] é um peão, para projetar no Afeganistão a influência do Paquistão e da Arábia Saudita. Teerã teme, tanto quanto Washington, que, no instante em que os soldados dos EUA deixem Cabul, os Talibãs tomem o poder.


Em terceiro lugar, o Irã tem total e absoluto compromisso com apagar da região todos os traços, vestigiais que sejam, da al-Qaeda.


Quarto, há ponto de confluência entre as posições do Irã e dos EUA quanto à “reintegração” dos guerrilheiros não ligados à al-Qaeda.


Quinto, nem o Irã nem os EUA são intransigentes quanto a um arranjo, com partilha do poder, em cabul, que manifeste a diversidade social do país.


Sexto, a abordagem de Teerã, que visa a desenvolver várias alianças no Afeganistão, e o fato de que Teerã sabe que necessita de equilíbrio regional, item indispensável em qualquer acerto com o Afeganistão, pode ser muito útil para o governo Obama.


A estratégia de “reconciliação” de Karzai já está gerando efeitos nefastos entre as comunidades não-pashtuns, que também são aliadas afegãs do Irã. O Irã pode vir a ser uma ponte útil para conter esses grupos, enquanto, ao mesmo tempo, os auxilia na luta contra os Talibãs renascidos. Em resumo, o Irã pode ser de grande ajuda na estratégia dos EUA para reduzir o risco de nova guerra civil no Afeganistão.


Teerã vê que qualquer ocupação estrangeira gera ressentimentos entre parcelas consideráveis da população afegã; e que esses ressentimentos operam a favor dos Talibãs. Assim sendo, então, pode-se dizer que Teerã e Washington talvez tenham interesses comuns também no desenvolvimento de uma “estratégia de retirada” em prazo determinado.


Em resumo, há enorme espaço para estratégias norte-americanas e iranianas complementares. O esforço, nas negociações vindouras, deve-se concentrar em sanar os déficits de confiança que separam os dois lados. Teerã vê Washington como hostil aos seus interesses e, portanto, fará o máximo que puder para garantir que os soldados que hoje estão no Afeganistão não venham a atacar o Irã, trabalhar para desestabilizar seu governo ou seu sistema político seja mediante operações clandestinas seja reforçando os rivais regionais do Irã.


Desnecessário dizer que, depois de um início promissor, o governo Obama não faz outra coisa além de sistematicamente desdizer as próprias ideias iniciais sobre o Irã. Mas, nas atuais circunstâncias, os EUA terão de andar o metro-e-meio que falta andarem para persuadir o Irã a cooperar mais uma vez com os EUA no Afeganistão. Não há outra via, além de relembrar as antigas aflições de Teerã em relação aos Talibãs e as preocupações com o equilíbrio do poder regional; e de reposicionar as intenções dos EUA em relação ao Irã.


Na primeira reação aos documentos divulgados pela página WikiLeaks, Obama disse que “O fato é que esses documentos não revelam coisa alguma que já não fosse conhecida da opinião pública no debate nacional sobre o Afeganistão” (itálicos meus).


O problema é que, não raras vezes, são as opiniões que interessam, o modo de ver a coisa, mais que algum fato. Além do mais, a guerra do Afeganistão não é tema de debate só nos EUA, nem de interesse só dos norte-americanos; a guerra também afeta o povo afegão.


O povo afegão extraiu dos documentos vazados pela página WikiLeaks, para dizer o mínimo, impressão muito salgada. Verdade é que os afegãos logo começarão a rolar de rir, ao perceber o quanto aquela tão arrogante superpotência foi completamente “conversada” pelos espertíssimos generais paquistaneses. Seria muito útil que os figurões reunidos por Obama na Casa Branca ouvissem os ecos das gargalhadas que já começam a ecoar pelos vales e montanhas do Hindu Kush.


A credibilidade dos EUA foi gravemente comprometida e será muito difícil recompô-la, sobretudo no Hindu Kush. Dito numa linha, objetivamente: é hora de os EUA aceitarem a grande barganha que o Irã está propondo, porque os EUA estão muito próximos – perigosamente próximos demais – do fracasso estratégico no Afeganistão.


Embaixador M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira que serviu no Ministério de Relações exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União sovoética, Coreia do Sul Sri Lanka, Aemanha, Aeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait, e Turquia.

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: A Persian message for Obama