23/7/2010, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online – Traduzido por
É como se houvesse ventos, nas escuras montanhas do Hindu Kush, que empurram nuvens impenetráveis, a encobrir a política e a história reais. Esses ventos tocaram, na 3ª-feira, a reunião internacional sobre o Afeganistão, em Cabul, reunião cujo subtexto foi muito mais interessante que a agenda oficial. De fato, no que tenha a ver com o problema do Afeganistão, quase inevitavelmente o surreal subjuga o real.
É, pois, surreal que a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte, ing. North Atlantic Treaty Organization, NATO], ainda exista, depois de não conseguir vencer, no Afeganistão, a sua primeira guerra “de verdade” em seis décadas de existência como aliança militar, e que ainda não considere a via de recolher-se de volta ao seu habitat natural.
A OTAN parece ter-se viciado no “pico” de adrenalina do tumulto primordial em que vive o povo do Hindu Kush; depois do Afeganistão, a pasmaceira previsível da vida estável na Europa parece já não seduzir a OTAN.
A ânsia por aventuras de que padece a OTAN parece ter sido item básico do subtexto da reunião da 3ª-feira em Cabul, à qual compareceram 60 países. Os principais players na conferência saltitaram por ali, vez ou outra falando um pouquinho mais alto para comprovar a existência “real” da OTAN, hoje ou nos próximos dias e semanas, com potencial para “resolver” a questão afegã, num cenário onde tudo se passa como se nada jamais tivesse existido no Afeganistão, antes de a OTAN aparecer fisicamente por lá.
Nesse sentido, as declarações dos ministros de Relações Exteriores de EUA, Rússia e China na Conferência de Cabul são significativas.
Rasmussen abriu o foguetório
O cenário para a cena-oculta foi preparado por ninguém menos que o secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen. Em ato extraordinário de “rasgar a cortina” na véspera do encontro, exsudando incontrolável otimismo quanto ao futuro da guerra, Rasmussen escreveu que a OTAN estaria “finalmente assumindo os combates contra os Talibãs” com vistas a “marginalizar os Talibãs como força política e militar [ação a qual] encorajará muitos dos que se uniram aos Talibãs a abandonar o grupo e engajar-se no esforço de reconciliação”.
Mas lá, a meio caminho, ocultado no muito divulgado artigo do secretário-geral da OTAN, havia um curioso subtexto:
“Iniciar a transição não significa que a luta pelo futuro do Afeganistão como país estável em região volátil estaria acabada. O Afeganistão precisará do apoio continuado da comunidade internacional, inclusive da OTAN. A população afegã precisa saber que continuaremos ao seu lado enquanto mapeia seu rumo para o futuro. Sublinhando esse compromisso, creio que a OTAN deve desenvolver um pacto de cooperação de longo prazo com o governo afegão”.
Ninguém precisa ser extra-esperto para adivinhar que Rasmussen jamais se atreveria a espalhar aos quatro ventos esse profundíssimo pensamento sobre o futuro da OTAN na Ásia Central depois da guerra do Afeganistão – e aí está a agenda oculta dessa guerra Clausewitziana, praticamente inteira –, sem antes consultar a opinião de Washington. Ok, mas... Mas, pouco antes, o governo de Barack Obama dissera coisa diferente.
Por coincidência, a ideia de Rasmussen já aparecera também às vésperas da assinatura de um esperado contrato, com o Departamento de Defesa, para a construção de uma amplíssima base aérea das Forças Especiais dos EUA no norte do Afeganistão, perto de Mazar-i-Sharif. Os EUA assumem o projeto como prioritário, ao custo de US$100 milhões. A base, na região de Amu Darya sobre a Ásia Central, será operacional ao final de 2011; o mais tardar, no início de 2012.
Segundo detalhes disponíveis, a base, numa área de
Como os países da região estão vendo a estranha ideia de que os EUA e a OTAN estar-se-iam preparando para deixar o Afeganistão até 2014... Ao mesmo tempo em que se preparam para permanecer por muito tempo no Hindu Kush?
Moscou reagiu
Até agora, a única reação clara veio de Moscou. O ministro das Relações Exteriores de Moscou Sergei Lavrov destacou com muita clareza em sua declaração à conferência, a importância de o Afeganistão manter-se “neutro” no futuro – o que evidentemente implica nenhuma presença militar estrangeira. Nas palavras de Lavrov:
“A restauração do status de neutralidade do Afeganistão deve ser fator chave para que se crie atmosfera de bom relacionamento entre vizinhos na região, unidos por relações de cooperação. Esperamos que essa ideia mereça o apoio do povo afegão. Os presidentes da Rússia e dos EUA já se manifestaram a favor de um Afeganistão neutro.”
É verdade. O mais surpreendente é que não se trata de Obama “ter parecido” apenas vagamente “favorável” a um Afeganistão “neutro”: Obama referiu-se claramente ao seu “compromisso” com a neutralidade do Afeganistão, mês passado, quando recebeu o presidente Dmitry Medvedev em Washington.
Na Declaração Conjunta EUA-Rússia sobre o Afeganistão, de 24/6/2010, lê-se, logo na abertura:
“Os EUA e a Federação Russa confirmamos nosso compromisso com o Afeganistão tornar-se Estado pacífico, estável, democrático, neutro e economicamente autossuficiente, livre do terrorismmo e dos narcóticos, reconhecendo que ainda será preciso obter significativo apoio internacional para alcançar esse objetivo.”
Obama terá sido atropelado? O que interessa observar é que a secretária de Estado Hillary Clinton não enunciou uma sílaba sobre algum Afeganistão “neutro”, ao longo de toda a sua intervenção na conferência de Cabul na 3ª-feira, onde deu a impressão de deliberadamente borboletear em torno das palavras e do processo mental de Rasmussen – e alongou-se sobre a importância de zelar pelos direitos das mulheres num Afeganistão futuro.
Interessante, também, que o ministro das Relações Exteriores da China Yang tenha, sim, visitado a ideia de um Afeganistão “neutro”, mas, pode-se dizer, só tangencialmente. Disse a China, na 3ª-feira:
“A comunidade internacional deve dedicar atenção continuada ao Afeganistão e manter os compromissos assumidos em Londres [conferência realizada em janeiro] e em conferências internacionais anteriores. Temos de respeitar a soberania do Afeganistão e trabalhar juntos para que cheguemos rapidamente a um Afeganistão governado pelos afegãos. Queremos ver um Afeganistão pacífico, estável e independente.” [Itálicos meus.]
Os EUA, no ar antes de mergulhar
Ao final do dia, o que realmente interessa é o silêncio de Clinton, a exigir análise atenta.
O silêncio de Clinton será a ponta do véu que se ergue, a indicar que os EUA temem um revés na região e, declarem o que declarem, estão dando andamento ao projeto de estabelecer bases permanentes de EUA/OTAN no Afeganistão? Claro, não há quem não saiba, entre observadores atentos da Região, que o Pentágono jamais parou de inflar os projetos de manutenção de bases militares dos EUA no Afeganistão, e também de novas bases, a serem construídas ao custo de centenas de milhões de dólares, todas equipadas com serviços e estruturas que permitirão que os militares, lá, mantenham estilo de vida urbana e familiar idêntico ao que viveriam nos EUA. Isso, evidentemente, obriga a considerar que há planos para que os norte-americanos permaneçam por muito tempo cercados por multidões conhecidas pela ativa hostilidade contra exércitos estrangeiros ocupantes.
Foi exatamente o que os EUA já fizeram no Iraque, apesar do fim da “missão de combate” anunciado para setembro.
Os diplomatas dos EUA têm-se empenhado gentil, mas incansavelmente, em persuadir as capitais da Região nos últimos meses de que, ao contrário do que a história do Afeganistão parece sugerir, a ideia de um Afeganistão “neutro” não é boa ideia para a segurança e a estabilidade regionais, num milieu onde ainda tantos islâmicos violentos vivam à solta.
Washington espera capitalizar a favor da ocupação os medos viscerais, nessas capitais, de uma avalanche de radicais islâmicos, tão logo os Talibãs sejam cooptados na estrutura do governo em Cabul.
Nova Delhi, por exemplo, usou explicitamente a expressão “Afeganistão neutro” em pronunciamentos políticos passados. Mas o ministro indiano S M Krishna, em seu pronunciamento na conferência da 3ª-feira, optou por expressão consideravelmente mais suave (de fato, pensando mais no Paquistão, do que em algum status de neutralidade para o Afeganistão). O ministro indiano limitou-se a observar que “a Índia continua comprometida com a unidade, a integridade e a independência do Afeganistão, sob estrutura democrática, com coesão pluralística, e livre de interferência externa.”
A ideia de concluir um Acordo sobre o Status das Forças [ing. Status of Forces Agreement (SOFA) [1]] com o governo do presidente Hamid Karzai, que os militares dos EUA es tão analisando, fortemente estimulados por Londres, parece agora exequível. Em comparação com os últimos um ou dois anos, o líder afegão atualmente se entende muito bem com os patrões ocidentais. E Karzai pode concluir que haveria vantagens físicas
O que interessa é que, apesar de exsudar confiança quanto ao futuro pós 2014, quando deseja que as tropas estrangeiras tenham dado por encerrada a missão de combate e retirem-se do Afeganistão, Karzai, no fundo do coração, pode ter lá suas dúvidas sobre o bom desempenho do Exército Afegão. – De fato, deve-se duvidar, até, de que venha a haver exército constituído, no Afeganistão,
Não por acaso, o embaixador russo Lavrov apelou diretamente ao “povo afegão”, não ao governo de Karzai, que hospedava a conferência de Cabul na 3ª-feira. Que o povo afegão encarregue-se de exigir os direitos de neutralidade. Que o povo afegão encarregue-se de rejeitar qualquer presença militar de ocupação de longo prazo, no Afeganistão.
O Embaixador *M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Indian Foreign Service. Exerceu na: União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kwait e Turquia.
Nota de tradução
[1] Os acordos SOFA são acordos que se fazem entre dois países, em situação em que um dos países poderá operar forças militares em território do outro (ver, para mais informação em: Status of Forces Agreement).