segunda-feira, 26 de julho de 2010

Afeganistão: quadro sem retoques (1)

25/7/2010, The Guardian, UK (editorial) – Traduzido por Vila Vudu

A névoa da guerra é excepcionalmente densa no Afeganistão. No momento em que se dissipa, como hoje, com a publicação, pelo Guardian, de excertos de relatos secretos de militares dos EUA, revela-se paisagem muito diferente daquela a que nos habituamos. São relatos de guerra escritos no calor da hora e mostram um conflito no qual reinam a mais brutal confusão e todos os desacertos, sem qualquer plano ou projeto. Há muitas diferenças entre o que mostram esses documentos e a guerra organizada, bem embalada, da versão “pública” dos comunicados oficiais e dos flashes necessariamente resumidos de jornalistas incorporados à tropa.

No material agora publicado há mais de 92 mil relatórios de ações dos militares norte-americanos no Afeganistão entre janeiro de 2004 e dezembro de 2009. Os arquivos foram distribuídos por Wikileaks, website que publica material não rastreável de várias fontes. Em colaboração com o New York Times e Der Spiegel, o Guardian trabalhou durante semanas nesse oceano e dados, até extrair deles a textura oculta e as histórias de horror humano que são o dia a dia da guerra. Esse material teve de ser tratado como o que é: um relato contemporâneo ao conflito. Alguns dos relatórios de inteligência não têm fonte confirmada: alguns dos aspectos da contagem do número de mortes entre civis não parecem confiáveis. São relatos – classificados como secretos – enciclopédicos, mas incompletos. Foram removidas do que adiante se lê todas as informações que ponham em risco a segurança dos soldados, de informantes locais e de agentes colaboradores.

O quadro geral que emerge é extremamente perturbador. Há relatos de cerca de 150 incidentes nos quais as forças da coalizão, inclusive soldados britânicos, mataram e feriram civis; a maioria dos quais jamais divulgados; de centenas de confrontos de fronteira entre soldados afegãos e paquistaneses, de dois exércitos supostamente aliados; da existência de uma unidade de forças especiais cuja única missão é assassinar líderes Talibãs e da al-Qaeda; do massacre de civis apanhados em locais onde aconteçam explosões das bombas de fabricação caseira dos Talibãs; e uma longa lista de incidentes nos quais os soldados da coalizão atiraram uns contra os outros, também envolvendo soldados afegãos, com mortos e feridos.

Ao ler esses relatos, é fácil suspeitar de que reine por lá o mais absoluto descaso pela vida de inocentes. Um ônibus que não para frente a uma patrulha a pé é metralhado (4 passageiros mortos e 11 feridos). Os documentos contam como, na caça a um guerrilheiro local, uma unidade das Forças Especiais executou sete crianças. As crianças não eram prioridade. Relato assinalado “Noforn” (ing. not for foreign elements of the coalition, “proibido para elementos estrangeiros [não da coalizão, locais, portanto]”) sugere que a prioridade daquela unidade foi esconder, o mais rapidamente possível, o sistema de mísseis móveis que haviam usado na ação.

Nesses documentos, as agências de inteligência do Irã e do Paquistão organizam manifestações e tumultos. O Serviço Secreto do Paquistão (Inter-Services Intelligence, ISI) tem ligações com os mais conhecidos senhores-da-guerra. Diz-se que o ISI teria entregue 1.000 motocicletas a Jalaluddin Haqqani, um desses senhores-da-guerra, para serem usadas em ataques suicidas nas províncias de Khost e Logar, e que estariam implicados numa sequência impressionante de ações, desde atentados contra a vida do presidente Hamid Karzai até o envenenamento dos carregamentos de cerveja para os soldados ocidentais. São relatos que não há como comprovar e é possível que seja parte de uma barreira de falsa informação distribuída pelo serviço secreto afegão.

Mas a resposta da Casa Branca ontem – que negou que o exército paquistanês seja tão direta e especificamente ligado aos guerrilheiros locais – basta, para que se tenha de definir como inaceitável o status quo na guerra do Afeganistão.

Para a Casa Branca, os “paraísos seguros” para “terroristas” em território paquistanês continuam a ser “ameaça intolerável” às forças dos EUA. Sejam ou não, esse não é um Afeganistão que EUA ou Grã-Bretanha estejam a alguns meses de entregar, embrulhado em papel de presente e fitas cor-de-rosa, a um governo nacional soberano em Cabul. Antes, exatamente o contrário. Depois de nove anos de guerra, o caos, sim, ameaça tornar-se incontrolável. Guerra ostensivamente feita para conquistar corações e mentes afegãs não será vencida do modo como as coisas parecem estar, por lá.

O Editorial original, em inglês, pode ser lido em: Afghanistan war logs: the unvarnished Picture”


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