terça-feira, 30 de junho de 2015

Rússia: Olho por olho


29/6/2015, [*] Israel Shamir, Unz Review
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Vladimir Putin (poker face)

Fogo e fumaça e enxofre, novas sanções ou os tanques dos EUA nas fronteiras, todas as pragas lançadas sobre a Rússia, uma por cima da outra.
O presidente Putin poderia adotar o lema de Guilherme de Orange: saevis tranquillus in undis, calmo, em plena tempestade. A tempestade está por toda a parte.
  • Já há tanques norte-americanos nos estados bálticos.
  • Navios norte-americanos a caminho do Mar Negro.
  • As sanções da União Europeia contra a Rússia foram prorrogadas por outros seis meses.
  • Há patrimônio russo confiscado na França e na Bélgica.
  • Na Síria, Damasco é ameaçada por rebeldes que os EUA armaram e continuam a armar.
  • A Grécia quer alistar-se ao lado da Rússia, mas provavelmente não ousará.
  • A Armênia, pequeno país escondido entre o Irã e a Turquia, acaba de integrar-se aos estados da União Eurasiana liderada pela Rússia, e já apareceram perturbações da ordem pública por lá, que obrigam a lembrar de Kiev 2013.
  • A Ucrânia está em escombros, enviando ondas e ondas de refugiados para a Rússia.
Qualquer nação mais fraca já estaria histérica. Putin e a Rússia permanecem inabaláveis.
E há aquela piada do Mississipi. Um criminoso negro e um criminoso branco estão sendo levados para a cadeia. O negro está calmo, o branco, em prantos. “Pare de se lamuriar”, diz o negro. “É fácil falar” – diz o branco. – “Vocês negros são acostumados a ser maltratados”. É feito a Rússia. Desde os dias dos sovietes, a Rússia está acostumada aos maus tratos, e desde antes, até, porque a rivalidade entre os herdeiros de Roma e os herdeiros de Constantinopla é, sim, muito antiga. Agora, acabou mais um curto período de calmaria. E estamos de volta à guerra fria. Surpresa, surpresa: a maioria dos russos preferiria a hostilidade do ocidente, como nos tempos de Brezhnev, ao cálido abraço ocidental nos dias de Gorbachev e Yeltsin. Verdade é que as coisas melhoraram muito, com a guerra fria e as sanções.
Boris Ieltsin e Mikhail Gorbachev (D)
  • Os russos ricos e ociosos, afastados dos prazeres de Miami e Côte d’Azur, prestam mais atenção aos compatriotas menos afortunados. Não que russos ricos e ociosos roubem hoje menos, mas eles gastam mais na Rússia mesmo, do que saqueiam.
  • Senhora muito conhecida, Valentina Matvienko, Presidente do Senado russo, foi proibida de viajar à Europa e aos EUA, e teve de passar uns feriados numa estação de veraneio na Rússia. Rapidamente percebeu o que faltava ali, apesar do charme considerável do lugar. E providenciou os necessários recursos para necessárias melhorias. Tomara que todos eles sejam impedidos de sair do país, era o clamor que se ouvia por todos os lados.
  • Os produtores russos de queijo jamais conseguiriam competir com queijos franceses e italianos que ano passado abundavam nos mercados liberais abertos e transfronteiras. Vieram as sanções e, em seis meses, as vendas já quase dobraram. Os queijos russos, mais baratos, encontram-se livremente à venda quando, antes, os supermercados preferiam estocar só os caros queijos estrangeiros.
  • O Exército precisa de tudo para defender a Pátria Mãe, e a indústria russa de alta tecnologia recebe mais e mais encomendas do Ministério da Defesa. Fábricas fechadas e trabalhadores demitidos ou semiaposentados ganham nova vida, compradores estrangeiros fazem fila à entrada, o rublo foi estabilizado. Os jovens acham o que fazer, melhor que assistir à televisão e reclamar do governo. Um sentimento de orgulho russo – depois das terríveis humilhações na Iugoslávia, na Ucrânia e noutros lugares – está de volta.
  • A infraestrutura está flamante. Moscou ganha novas centenas de quilômetros de ciclovias, os parques estão bonitos e bem cuidados. A capital do país brilha, limpíssima, apesar das dificuldades trazidas por chuvas pesadas.
  • Agora você começa a entender por que os russos são favoráveis às sanções. Estão com o governo e o presidente, cujos índices de aprovação, medidos por agências norte-americanas de avaliação de opinião pública, alcançam espetaculares 89%. Nunca houve coisa semelhante. Não que os russos queiram guerra, mas estão fartos de ver seu país empurrado de costas contra a parede, como veem as coisas. Os russos não querem qualquer império só deles, mas querem ser ouvidos e querem ter seus desejos considerados. E querem que seu governo faça os ex-parceiros, atuais adversários, pagarem por cada gesto ou ação anti-Rússia.
Dentre os passos retaliatórios mais populares tomados pelo governo russo, está a firme determinação de não mais colaborar para a retirada das tropas da OTAN que ainda ocupam o Afeganistão.
O presidente Putin, no primeiro mandato, em 2001, foi apoiador entusiasta dos EUA. E, depois da invasão norte-americana ao Afeganistão, ele ofereceu ajuda russa para transferir equipamento para dentro e para fora daquele país. Hoje, quase 15 anos depois, essa via curta e fácil até Cabul foi fechada. Os norte-americanos que arrastem seu armamento pesado para cima e para baixo das montanhas, e pelos vales do Paquistão, onde são emboscados por guerrilheiros com longa experiência em combater invasores, de Alexandre o Grande, até Brezhnev.
Os russos também gostaram da decisão olho-por-olho de banir dúzias de políticos ocidentais, proibidos de entrar em solo russo, como resposta ao banimento de políticos russos, proibidos de entrar em solo europeu. A Rússia talvez não seja o mais buscado destino turístico, mas, acredite se quiser, a proibição de entrar dói. A simples ideia de resposta russa ativa, já colheu de surpresa os europeus: pensavam que os russos não tinham meios, ou não tinham coragem. O berreiro dos figurões ocidentais impedidos de entrar na Rússia é música aos ouvidos dos russos.
Sobre a crise da Ucrânia, há muitos que sonham com tanques russos varrendo Kiev e restaurando a paz civil na Ucrânia atormentada, mas esse sonho permanecerá não realizado, enquanto o presidente Putin acreditar que há outros meios, pacíficos, para resolver o problema. Mesmo assim, o estilo obsessivamente pró-paz, dos soviéticos, e o medo da guerra dão lugar a atitude mais vigorosa, dado que a guerra, quando nos é imposta, é necessidade inevitável da vida. O velho mantra entorpecedor de “qualquer coisa é melhor que guerra” caiu ante a realidade.
Desfile de civis com retratos de perentes mortos
na IIª Grande Guerra em 9/5/2015. Putin à frente.

As celebrações, dia 9 de maio de 2015, dos 70 anos do Dia da Vitória, ficarão para sempre na memória do povo, e deram aos cidadãos boa chance de ver os mais novos brinquedos dos militares russos. Esse ano, os russos destacaram a própria vitória, mais que qualquer vitimização, sofrimentos e perdas. A vitória foi vista como vitória dos russos sobre a Europa, não só sobre a Alemanha; porque praticamente todas as nações europeias, de França, Espanha e Itália, a Hungria e Bulgária, combateram ao lado de Hitler e contra a Rússia. É a mais absoluta verdade, mas foi verdade raramente mencionada, até esse ano. Fanadas as esperanças russas de que a Europa apoiasse as políticas russas de independência em benefício também da Europa, veio afinal a consciência de que os líderes europeus são servis hoje a Washington, como seus predecessores foram servis a Berlim.
Lentamente, ah, tão lentamente, o gigante russo recordou seus dias de juventude, as batalhas do Rio Volga e a tomada de Berlim. Essas memórias o fizeram rir de Frau Merkel e de Mr. Obama. Imediatamente depois do desfile militar do dia 9 de maio, milhões de civis marcharam pelas ruas carregando fotos dos pais e avôs, soldados na Grande Guerra. Foi movimento absolutamente inesperado: nem eu nem outros observadores e jornalistas, estrangeiros ou locais, previram evento de tais dimensões. A cidade planejara marcha de dez mil participantes; 50 vezes mais que isso, mais de meio milhão de pessoas marcharam pelas ruas só em Moscou. Em toda a Rússia foram 12 milhões.
Esse ato sem precedentes de solidariedade à Rússia disparou tremores sísmicos por toda a sociedade. Muitos dos caminhantes levavam imagens do comandante vitorioso daqueles dias, Joseph Stálin. Não é nome amado por todos, longe disso. Mas nome que, apenas mencionado, já faz tremer de fúria os gatos mais gordos e seus aliados, não pode ser de todo mau. Há quem queira devolver o nome de Stalingrado ao local da grande batalha, que foi alterado por Khrushchev. Mas Putin não gosta da ideia. Por enquanto.
A presença do Presidente Xi Jiping da China às celebrações de maio significou um realinhamento histórico com a China: é mudança de proporções oceânicas nas políticas russas. A conexão com a China só se fortalece, dia a dia. Essa é atitude nova: antes, russos e chineses sempre desconfiaram uns dos outros, mesmo depois de superada a hostilidade dos últimos dias do período soviético. Liberais moscovitas pró-ocidente descartaram os chineses e planejaram uma guerra contra a China, liderada pelos EUA. Hoje, esse pesadelo já é passado. Não estamos de volta exatamente aos anos 1950s, quando Mao e Stálin estabeleceram seus laços, mas estamos perto.
Xi Jinping e Putin nos 70 anos do Dia da Vitória

Há coisa de 800 anos, a Rússia esteve em situação semelhante, furiosamente pressionada pelo ocidente. O Papa abençoou uma Cruzada contra os russos, exigindo que aceitassem a hegemonia do ocidente, e desistissem de sua cristandade bizantina. Foi quando o príncipe Alexandre preferiu aceitar o patrocínio dos mongóis sucessores de Genghis Khan, a submeter-se ao diktat ocidental. A troca funcionou: a Rússia continuou a existir e o príncipe valente foi canonizado pela Igreja, como Santo Alexandre Nevsky. Os russos até hoje entendem que usar apoios orientais é menos perigoso para a alma russa do que se curvar a demandas ocidentais.
Será que Putin, nascido em São Petersburgo, que muito preza seus contatos europeus e fala quatro línguas fluentemente (mas não fala chinês), repetirá o feito de Santo Alexandre e realinhará a Rússia com o oriente? Seria perda gigante para a Europa, como Velho Continente convertido em colônia dos EUA.
São Petersburgo, cidade onde está enterrado o corpo de Santo Alexandre é, definitivamente, cidade europeia, virada para o oeste, diferente de Moscou, que olha para o leste. É especialmente deliciosa em junho, o mês das Noites Brancas, quando a cidade é banhada em luz fria e clara durante o dia, e em luz leitosa, quase opaca, à noite, com os lilases em plena floração, debruçados sobre o espelho d’água dos canais e rios que cortam a capital russa do norte, onde nunca se está longe de um curso d’água. A velha glória imperial ainda descansa às margens do rio Neva.
Ali foi o coração do Império Russo, até que Lênin levou o governo de volta para a antiga capital, Moscou. Por isso, durante os anos soviéticos, Petersburgo (então batizada Leningrado) não sofreu com os massivos programas de moradias populares que desfiguraram Moscou. O historiador britânico Arnold Toynbee (hoje caído em desgraça, por sua inclinação antissionista) disse que a mudança para Moscou “corporificou a reação da alma russa contra a civilização ocidental”. A presidência de Putin, ele talvez dissesse, corporificou uma guinada pró-Europa na alma russa. Algo como uma traição da Europa contra a Rússia (como alguns russos veem as coisas) teria levado Putin a afastar-se, agora, da Europa?
Putin discursa na abertura do SPIEF-2015

Vi o presidente Putin no recente Fórum Econômico Internacional em São Petersburgo. No Fórum, Putin saiu-se muito bem: calmo, impenetrável poker face, respondeu com sinceridade todas as perguntas. Em momento algum pareceu irritado ou incomodado. Lidou com calma com a crise da propriedade russa confiscada. Muita gente preferia vê-lo esmurrar a mesa, confiscar bens de franceses e belgas. Nada disso. Prometeu usar os meios legais facultados pelas cortes europeias de justiça.
Putin chegou a São Petersburgo depois de viagem muito bem-sucedida a Baku, capital do Azerbaijão rico em petróleo, onde os Jogos Europeus ofereceram oportunidade para longos encontros com os presidentes da Turquia e do Azerbaijão. Nenhum líder ocidental deu as caras, mas os governantes do nosso lado do mundo apreciaram devidamente a companhia uns dos outros.
Em resumo, o presidente Putin é homem de fala suave. Se tem algum grande porrete, não o exibe por aí. Não se mostra desconsolado, ante a grosseria e as más intenções ocidentais. Parece que está trabalhando muito em busca de arranjos alternativos, mas quer adiar pelo máximo tempo possível quaisquer decisões mais dolorosas. Eventualmente, talvez seja forçado a uma aliança estratégica com a China, que minará ainda mais o que resta da independência europeia.
Mas as coisas não são ou brancas ou pretas. A Rússia está conectada ao ocidente por várias inesperadas vias. O mais implacável inimigo da Rússia é o ex-Ministro de Relações Exteriores da Suécia, Carl Bildt. A esposa dele está proibida de entrar em território russo. Ao mesmo tempo, Bildt indicou um conselheiro para uma empresa russa de petróleo cujo proprietário e o segundo mais rico dos oligarcas russos, Michael Friedman. Friedman, um dos sete oligarcas originais dos tempos de Yeltsin, começou como cambista revendedor de ingressos para shows. Gasta prodigamente em escolas hebraicas de educação religiosa. O seu Alfa Bank tentou interromper a produção de novo tanque russo Armata, levando à falência a fábrica que produzia as proteções blindadas do tanque. Friedman e Putin são amigos. É o que deveria bastar contra a propaganda de que o cruel ditador russo seria inimigo jurado dos oligarcas judeus.
Os jornais russos são livres para atacar Putin...

Verdade é que a Rússia continua liberal, e os liberais russos copiam os liberais norte-americanos, mutatis mutandis. Tratam Putin como seus contrapartes nos EUA tratavam Bush II, embora, a julgar pelo vocabulário, Putin mais pareça um Kim Jong Il. Os jornais são livres para atacar Putin, e usam furiosamente essa liberdade. Diretores de teatro insertam “cacos” anti-Putin nas falas de peças clássicas, sempre como se Putin vivesse de falar contra a Igreja. No cinema, o mundo de Putin é reino de misérias e abusos, feito filme de Jim Jarmusch.
Mas o povo comum gosta de Putin, como Bush II era popular nos estados Republicanos. E gostariam ainda mais, se ele arrancasse dois olhos de norte-americanos, por olho russo. Por enquanto, Putin prefere prosseguir na retaliação simbólica.
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[*] Israel Shamir escreve extensivamente sobre assuntos públicos, principalmente com relação ao conflito Israel/Palestina e política russa, incluindo três livros, Galilee Flowers, Cabbala of Power e Masters of Discourse, disponíveis em inglês, francês, alemão, espanhol, russo, árabe, norueguês, sueco, italiano e húngaro.
Ele se descreve como um nativo de Novosibirsk, na Sibéria; mudou-se para Israel em 1969, serviu como pára-quedista no Exército e lutou na guerra de 1973; depois virou-se para o jornalismo escrito. No final dos anos 1970s ele se juntou à BBC em Londres depois de viver algum tempo no Japão. Regressou a Israel em 1980. Passou a escrever para o jornal israelense Haaretz; foi o porta-voz no Knesset pelo Partido Socialista de Israel (Mapam). Também traduziu e anotou para o russo, a partir do original, as obras enigmáticas de SY Agnon, o único escritor em hebraico a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Sua perspectiva sobre o conflito Israel/Palestina foi resumida em The Pine and the Olive,, publicado em 1988 e reeditado em 2004. Nesse mesmo ano foi recebido na Igreja Ortodoxa de Jerusalém ea Terra Santa, sendo batizado pelo Arcebispo Adam Teodósio Attalla Hanna. Atualmente vive em Jaffa, mas passa muito tempo em Moscou e Estocolmo; é pai de três filhos.

Anel Leste versus Ramo Bálcãs: A batalha pela Grécia

28/6/2015, [*] Andrew Korybko, The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Gasoduto Anel Leste
(clique na imagem para aumentar)

A Rússia não estava blefando quando disse que o gasoduto Ramo Turco será, depois de 2019, a única rota para o gás que deixaria de passar pela Ucrânia. Depois de decorridos mais de seis meses críticos, durante os quais só perdeu tempo, dedicada a não acreditar, a União Europeia (UE) começa agora a cair em si. E está tentando desesperadamente armar uma alternativa geopolítica.
Ao se dar conta de que sua demanda por gás terá de continuar a ser suprida de modo absoluto pela Rússia ao longo de ainda muitas décadas futuras com certeza (e diga a retórica trans-Atlântica o que disser), a UE quer mitigar as consequências multipolares dos planos de gasodutos russos, seja como for e como puder.
A Rússia quer estender o Ramo Turco através de Grécia, Macedônia e Sérvia, num projeto que o autor já batizara previamente de Ramo Bálcãs, e quer apagar a rota pelo centro dos Bálcãs e substituí-la por outro pelo leste dos Bálcãs, via Bulgária e Romênia, a chamada linha “Anel Leste”.
Embora o gás cáspio embarcado pelo gasoduto Trans-Adriático (TAP) possa teoricamente transitar pelo Anel Leste, a proposta que tem circulado mais recentemente é para ligá-lo, em vez disso, ao Ramo Turco, provavelmente porque os projetados 10-20 bilhões de metros cúbicos/ano do projeto anterior (as reservas do Azerbaijão podem não bastar para atender à demanda, sem ajuda turcomena, a qual, hoje, está muito longe de garantida) podem parecer pouco, ante os 49 bilhões de metros cúbicos do novo traçado. Se a Europa realmente planeja que o Anel Leste conecte-se ao Ramo Turco, o gás fornecido pela Rússia alcançará o continente, não importa por qual rota (pelos Bálcãs Centrais ou pelos Bálcãs Orientais), o que significa que, hipoteticamente, é jogo de ganha-ganha para a Rússia.
As diferenças estratégicas entre o Anel Leste e o Ramo Bálcãs são realmente muito agudas, e associadas, em primeiro lugar, ao ímpeto motivacional implícito revelado pela proposta conectiva Anel Leste-Ramo Turco da UE, significa que é preciso analisá-las em profundidade, antes que alguém salte para uma “conclusão” predeterminada sobre a natureza “mutuamente benéfica” do Anel Leste.
Nesse artigo, identificam-se, de início, as diferenças estratégicas subjacentes entre o Anel Leste e o Ramo Bálcãs. Estabelecido isso, usam-se as informações reunidas para interpretar as motivações de Bruxelas e a previsão regional aí implicada, para os Bálcãs.

Gasoduto Trans Balcãs

Por fim, comenta-se a prolongada crise da dívida grega, para ilustrar como o atual torvelinho pelo qual passa a República Helênica já evoluiu para, de fato, um atentado: o ocidente tenta derrubar indiretamente o governo de Tsipras, como castigo pela cooperação com a Rússia no campo da energia.
Diferenças Estratégicas
Erra completamente quem assumir que o Anel Leste e o Ramo Bálcãs são projetos estrategicamente semelhantes; embora nos dois casos se trate de levar gás russo até a Europa, cada um desses projetos promove visão de longo prazo completamente diferentes uma da outra, ou a favor dos patrocinadores europeus ou a favor dos patrocinadores russos, respectivamente.
Anel Leste:
Para a União Europeia, essa sua rota proposta eliminará qualquer vantagem geopolítica que a Rússia possa potencialmente colher do Ramo Bálcãs (tema ao qual chegaremos, na sequência), reduzindo o gasoduto a nada além de um tubo de gás natural sem qualquer impacto ou influência. O objetivo será alcançado simplesmente porque o gasoduto viajará por território da Bulgária e da Romênia, dois confiáveis estados-membros da UE e da OTAN, cujas elites políticas estão firmemente na órbita unipolar.
Como uma garantia a mais de que a Rússia não possa jamais usar o Anel Leste para qualquer objetivo multipolar indesejável, os EUA planejam preposicionar suficientes armamentos pesados e equipamentos para 750 soldados nos dois países dos Bálcãs, reforçando ainda mais o Bloco sub-OTAN no Mar Negro que vem sendo construído já há alguns anos. Se os EUA conseguirem sabotar o Ramo Bálcãs e assim forçar a Rússia a, de fato, ceder ao Anel Leste como única alternativa realista no sudeste da Europa para mandar gás para a Europa, nesse caso Moscou em posição estratégica tão miserável para suas vendas de energia quanto estava antes, quando confiava numa Ucrânia controlada pelos EUA, renegando, para começar, todo o objetivo do pivô para os Bálcãs.

Gasodutos atuais, via Ucrânia, que abastecem a Europa
(Clique na imagem para aumentar)

Ramo Bálcãs:
A abordagem dos russos, quantos aos gasodutos, caminha na direção absolutamente contrária à dos europeus, porque entendem a utilidade geopolítica que há por trás dos gasodutos e os russos procuram usar esses investimentos em infraestrutura como ferramentas estratégicas.
Pode-se entender o Ramo Bálcãs como uma contraofensiva multipolar na direção do coração da Europa, e é precisamente por essas razões que a Rússia é completamente contrária a reverter ao Anel Leste como sua única rota de energia para a UE no sudeste da Europa. Moscou planeja usar o Ramo Bálcãs como ímã, para atrair investimentos dos BRICS nos Bálcãs e complementar a Rota da Seda dos Bálcãs da China, do porto de Pireus, na Grécia, até a Hungria.
Não é portanto coincidência que o terrorismo albanês apoiado pelos EUA tenha voltado à região, depois de hiato de dez anos, e tenha tomado como alvo especificamente a República da Macedônia, o gargalo do Ramo Bálcãs.
A Rússia está apostando no trânsito pelos Bálcãs Centrais para sua proposta rota de energia, porque sabe que Sérvia e Macedônia – que não são membros nem da UE nem da OTAN – não podem ser diretamente dominadas pelo mundo unipolar como Bulgária e Romênia que são satélites dos EUA; e também vê a Grécia como um “coringa”, hoje à beira de fracassar a favor de seus patrões ocidentais.
Todos esses fatores tornam o Ramo Bálcãs excepcionalmente atraente para os geoestrategistas russos, que reconhecem corretamente que os três estados no percurso do gasoduto (Grécia, Macedônia e Sérvia) representam o calcanhar de Aquiles do unipolarismo na Eurásia Ocidental, o qual, se receber empurrão adequado, pode levar ao colapso de toda a estrutura.
Por dentro da mente de Bruxelas
O simples fato de que a UE está propondo o Anel Leste como possível componente do Ramo Turco revela muito sobre como Bruxelas está pensando no momento. Examinemos o que aparece nas entrelinhas:
●– Gás russo é artigo de primeira necessidade
Bruxelas reconhece que tem de receber gás russo, de um modo ou de outro, e que o Corredor Gás Sul (Southern Gas Corridor) bem pouco provavelmente cobrirá sozinho a demanda futura de consumo da UE (para ambas, a União Europeia como um todo, e a região dos Bálcãs em particular). Os EUA também compreendem que é exatamente assim. Por isso, os EUA têm de inventar um cenário do qual a Rússia seja obrigada a depender na rota dominada pelo pensamento [e as armas] unipolar(es) através dos Bálcãs Orientais, de tal modo que o projeto seja “saneado” de qualquer influência multipolar residual, e Washington possa continuar a controlar o trânsito do gás russo para a Europa ao longo de futuro indefinido.
Ramo Turco via Mar Negro
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●– Nos Bálcãs Centrais o mundo unipolar é vulnerável
A sugestão proativa de que os Bálcãs Orientais possam substituir, como traçado alternativo, o gasoduto do Ramo Bálcãs implica que o ocidente admite uma vulnerabilidade dos unipolares na relação com uma rota russa que atravesse os Bálcãs Centrais.
Isso, porque a construção bem-sucedida do Ramo Bálcãs levará a um fortalecimento da posição geoestratégica da Sérvia, que emergirá como um nodo regional estratégico de energia. Belgrado pode assim capitalizar essa vantagem para lentamente e estrategicamente (não politicamente) reintegrar as terras da ex-Iugoslávia, embora sob influência russa multipolar indireta.
Como resultado, os Bálcãs, a região da Europa que com certeza sempre recebeu o cabo mais curto do porrete euro-atlântico, seria presenteada com uma atraente oportunidade não ocidental para co-desenvolvimento com os países BRICS. O Ramo Bálcãs da Rússia lhes garantiria suprimento seguro de energia, com a Rota da Seda dos Bálcãs da China lhes garantirá acesso ao maior mercado global, o que ameaçará o domínio econômico que a UE tem atualmente sobre a península.
Se a Europa já não for economicamente atraente para os estados dos Bálcãs (a atratividade cultural e política já é coisa do passado, por causa do “casamento gay” e dos excessos de Bruxelas contra aqueles países, nos anos recentes), nesse caso a Europa perde o resto de seu soft Power e o único modelo alternativo passam a ser os BRICS, os quais usariam a região para criar uma cabeça de praia multipolar diretamente rumo ao coração do continente, antes mesmo de alguém perceber o que aconteceu.
●– A Grécia não é confiável
A União Europeia claramente não vê a Grécia, pelos menos hoje, sob o atual governo [da coligação Syriza], como ferramenta geopolítica confiável para seus interesses. Um oleogasoduto financiado pelo Azerbaijão através do país pouco confiável é aceitável, mas se for financiado pela Rússia, não é, porque pode ser usado como porta de entrada para outras incursões multipolares para dentro dos Bálcãs Centrais que podem abalar rapidamente a influência de Bruxelas nos Bálcãs (como já se comentou no grande cenário estratégico acima).
Se a Grécia estivesse sob total controle do mundo unipolar, ou se o ocidente sentisse fortemente que esse seria o caso em 2019, nesse caso não seria preciso excluir desse bolo, a Grécia. Embora ainda se mantenha a possibilidade de que uma fatia do território grego seja usada para construir um interconector com a Bulgária para facilitar o Anel Leste, não é a mesma coisa que um gasoduto que atravessa metade do território no norte do país e continua por uma trilha que o grupo unipolar não controla (diferente da alternativa búlgara proposta).
Corredor de gás TAP-TANAP 
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Assim sendo, a proposta do Anel Leste diz muito sobre a fraca expectativa geopolítica que Bruxelas alimenta em relação aos próximos cinco anos da Grécia – embora aquela proposta também possa ser lida como uma confirmação da oportunidade pró multipolares que a Rússia já identificara, antes, na Grécia.
As guerras por procuração, nos Bálcãs
Mais que qualquer outra coisa, a proposta do Anel Leste, de Bruxelas, pode ser lida como desesperado “Plano B” para garantir o indispensável fornecimento de gás russo, no caso de os EUA conseguirem tornar irrealizável a rota pela península central do Ramo Bálcãs, servindo-se de séries de guerras de desestabilização “por procuração”. Como já se explicou acima, a UE precisa do gás russo em todos os casos e circunstâncias (coisa que até os EUA, mesmo com extrema má vontade, reconhecem); assim sendo, tem absoluta necessidade de ter um Plano B, de contingência, sobre a mesa, para o caso de alguma coisa acontecer ao Ramo Bálcãs.
Os cofres russos precisam do dinheiro, e as fábricas europeias precisam do gás; é um relacionamento natural de mútuo interesse para as duas partes cooperar seja por uma via, seja pela outra.
A contenção tem a ver, claro, com qual a específica via pela qual viajará o gás russo, e os EUA farão qualquer coisa que esteja ao seu alcance para assegurar que haja Bálcãs Orientais controlados por interesses unipolares, não os Bálcãs Centrais sensíveis a interesses multipolares.
Por tudo isso, a “Batalha pela Grécia” é o último episódio dessa saga, e a rota futura das entregas de gás russo à Europa oscila hoje, ainda, na balança.
A estrada (grega) chega a uma bifurcação
Embora a questão da dívida fosse questão antiga, de antes, mesmo, de o Ramo Bálcãs ter sido pensado, ela está hoje intimamente entretecida no drama da energia na Nova Guerra Fria que se desenrola nos Bálcãs.
A troika quer forçar Tsipras a capitular ante um acordo impopular para a dívida, que com certeza levaria ao rápido fim de seu governo como Primeiro-Ministro. Nesse instante, o principal fator que liga o Ramo Bálcãs à Grécia é o governo Tsipras. E é do mais alto interesse da Rússia e de todo o mundo multipolar vê-lo permanecer no governo da Grécia, até que o gasoduto possa ser fisicamente construído e implantado.
Alexis Tsipras e Vladimir Putin (4/6/2015)

Qualquer repentina ou inesperada mudança de liderança na Grécia pode muito facilmente comprometer a viabilidade política do Ramo Bálcãs e forçar a Rússia a ter de depender do Anel Leste. E é precisamente por essas razões que a Troika quer empurrar Tsipras para os cornos de inextrincável dilema.
Se ele aceita as atuais condições da dívida, perde o apoio de sua base, não será eleito em eleições que terão de ser convocadas imediatamente ou cai, vítima de revolta brotada de dentro do próprio partido. Por outro lado, se ele rejeita a proposta e deixa que a Grécia seja declarada inadimplente, nesse caso a catástrofe econômica resultante pode matar todo o apoio que lhe dão os movimentos de base e camadas mais pobres, o que pode determinar o fim prematuro de sua carreira.
Por isso a decisão de realizar um referendum nacional sobre a dívida é movimento tão genial: porque dá a Tsipras uma chance de sobreviver a próxima tempestade político-econômica que se abaterá sobre os resultados que venham (que se supõe que venham a ser de rejeitar a dívida e assumir a situação de inadimplência). Com o povo ao seu lado (não importa por que pequena diferença a seu favor), Tsipras pode continuar a governar a Grécia, enquanto o país nada nas águas revoltas do período incerto que se avizinha. Além disso, seu cuidado continuado com o país, e a química pessoal que o aproxima dos governantes BRICS ( especialmente Vladimir Putin) pode levá-los a criar alguma espécie de assistência econômica (talvez com os US$ 100 bilhões do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS e igualmente gordo pool de moedas de reserva) para a Grécia, depois da próxima reunião da cúpula do grupo, que acontecerá em Ufa, no início de julho/2015– desde que, é claro, Tsipras aguente-se no governo até lá.
Por tudo isso, o futuro da geopolítica da energia nos Bálcãs resume-se atualmente ao que acontecer na Grécia em futuro próximo. Embora seja possível que outro Primeiro-Ministro grego, que não seja Tsipras, continue a fazer avançar o Ramo Bálcãs, é menor a possibilidade do que se Tsipras se mantiver lá.
Criar condições para tirá-lo do governo é a via indireta pela qual os EUA e a UE preferem influenciar o curso da energia a ser futuramente entregue pela Rússia através dos Bálcãs – por isso Tsipras está sob pressão tão gigantesca nesse momento. Sua proposta de referendum com certeza apanhou todos de surpresa, porque atualmente já praticamente não se ouve falar de verdadeira democracia na Europa, e ninguém esperava que o Primeiro-Ministro recorresse diretamente aos eleitores, antes de tomar uma das decisões mais cruciais do país em décadas.




Mas é o meio pelo qual pode ainda tentar escapar da armadilha Catch-22 que a Troika armou para ele. Ao fazê-lo, luta também pelo Ramo Bálcãs do mundo multipolar.
À guisa de conclusão
Há mais, na proposta do gasoduto Anel Leste do que se vê à primeira vista, daí a necessidade de expor as motivações estratégicas por trás dele, para que melhor se possa avaliar seu impacto assimétrico. É claro que EUA e UE querem neutralizar a aplicabilidade geopolítica que o Ramo Bálcãs terá na difusão do pensamento multipolar pela região, o que explica a ação pareada dos dois lados, para tentar detê-lo.
Os EUA já estão soprando as chamas do violento nacionalismo albanês na Macedônia, para obstruir o traçado previsto do Ramo Bálcãs, enquanto a UE propõe rota alternativa através dos Bálcãs Orientais, como via predeterminada para excluir a Rússia. As duas forças euro-atlânticas conspiram juntas, indiretamente, para derrubar o governo grego, seja por uma eleição “pré-programada” ou golpe interno que tire Tsipras do governo, sabendo que esse movimento singular implicará golpe forte e quase imediato contra o Ramo Bálcãs.
Embora ainda não se saiba o que eventualmente acontecerá com Tsipras ou com o gasoduto russo em geral, é indiscutível que os Bálcãs tornaram-se um dos principais e repetidos nodos de confrontação na Nova Guerra Fria, e que a competição entre o mundo unipolar e o mundo multipolar nesse teatro geoestratégico está só começando.
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[*] Andrew Korybko é Analista Político e escreve extensivamente sobre as relações internacionais da Rússia. É especialista em política do Oriente Médio, Ásia Central e Europa Oriental. Freqüente comentarista de TV e rádio. Originário de Cleveland, Ohio, está concluindo estudos de pós-graduação em Relações Internacionais na Universidade Federal de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO).