domingo, 25 de julho de 2010

Os “caravançarás” (1), do Irã, pela Ásia Central, até a China

Ruínas de um "caravançará" iraniano

24/7/2010, Robert Fisk, The Independent – traduzido por Caia Fittipaldi

Mas o que é um “caravançará”? Em língua persa (ou dari), diz-se “karvansara”; em turco, “keravandaray” – e sim, daí o mundo extraiu a palavra “caravana” – e é uma hospedaria (talvez, para ingleses, um “pub”). Inspirei-me essa semana a louvar o “caravançará”, porque é onde todos nos encontrávamos antes de haver navios a vapor e aviões. Budistas, judeus, muçulmanos, cristãos, todos nos encontrávamos ali.

Quase sempre, as paredes externas eram de mármore branco e preto. Há um caravançará ao sul, perto de minha casa em Beirute, em Saaderat, sul de Khalde, muito estragado por tiros de metralhadora, mas claramente a última parada na estrada para Beirute, último lugar seguro de repouso para os camelos e cavalos, antes de chegarem ao “Bourj”, o grande portão otomano da segunda cidade de Syria (antes que os franceses a cortassem ao meio).

Sempre fui apaixonado pelo caravançará de Diyabakir na Turquia. Um cônsul britânico dizia dessa cidade que “as paredes são negras, os cães são negros e o coração de quem vive aqui é negro.” Discordo do cônsul britânico. Estive preso lá, pela polícia turca, em 1991, por “difamar” o exército turco.

Escrevera – corretamente – que o exército turco roubara lençóis e comida de refugiados cristãos curdos que tentavam escapar do exército de Saddam Hussein. Verdade. A polícia turca prendeu-me. E o inspetor-chefe de Diyabakir (que descobriu meu livro sobre o genocídio dos armênios na minha mala e logo viu que eu sabia a verdade sobre o primeiro Holocausto do século 20) tratou-me com grande respeito.

“O senhor não é meu prisioneiro”, disse ele. “O senhor é meu hóspede.”

Disse, mas só até certo ponto. De fato, o inspetor-chefe precisou que o gerente do Caravançará Hotel – um curdo – traduzisse, porque não falava inglês, nem eu, turco. Aquele foi o saldo de uma estranha conversa, na qual ele não podia fazer as perguntas que queria e eu não podia deixar escapar as respostas que ele não queria sobre o genocídio armênio e o exército turco.

Terminou eu contando ao inspetor que, para meu pai, Mustafa Kemal Ataturk era um titã, mas que eu não entendia por que os soldados de Ataturk traíram tão completamente sua memória, a ponto de roubar comida e roupas de refugiados. Nesse ponto, o inspetor pôs o braço sobre meus ombros e mandou (insistiu) que o repórter do jornal turco local nos fotografasse, para mostrar que éramos bons amigos.

Fui levado pelos guardas (que portavam cassetetes negros, esses sim) de volta ao Caravançará Hotel, onde tive de picar meu caderno de contatos armênios e fazer descer pelo vaso, enquanto um guarda espiava pelo buraco da fechadura do lavatório, antes de ser metido num avião de volta a Istanbul, com um investigador que jamais andara de avião e ao qual tive de garantir, já no ar, que pousaríamos sãos e salvos.

Mas o hotel em Diyabakir era realmente um caravançará. A entrada larga o bastante para deixar entrar camelos e cavalos. Revestido com mármore branco e preto. Uma fortaleza para viajantes, um local de repouso e conforto.

Chego assim ao meu amigo Tom Schutyser, belga doido e obcecado (com toda a razão) por caravançarás. Fez as mais magníficas fotos em branco e preto desses aeroportos do deserto, viajando pela Rota da Seda, do Irã, pela Ásia Central (Uzbequistão, Quirguistão e Cazaquistão), até a China. No belo texto que acompanha as imagens, Tom escreveu que “No norte do Irã, essas solenes, silenciosas ruínas de caravançarás debruçam-se sobre fantasmagóricas, desoladas, imóveis paisagens do inverno no deserto. Fazem-me lembrar as eras prósperas da Rota da Seda, ao longo da qual se trocaram mercadorias, invenções, diplomacia, religiões e cultura entre a China, o mundo ocidental, o Oriente Médio e a Ásia Central.”

Há milhares desses caravançarás, postos de passagem, por todo o mundo conhecido, nos quais se acomodavam, como Schutyser diz, mercadores, peregrinos e viajantes. Sempre serviram ao comércio e para reuniões multiculturais. Em alguns caravançarás havia tradutores residentes, para que persas, indianos e árabes (além de britânicos, é claro) pudessem falar uns com os outros.

Na Jordânia, no Irã, aqui no Líbano, passo por muitos desses lugares, de solidão e paz, quase todos em ruínas. E, ah! Se pudéssemos recriar aquele mundo! Que aeroporto oferece-lhe um tradutor? Que estação de trens dirá que seu companheiro de viagem está dizendo isso e aquilo? Em alguns caravançarás havia bibliotecas – livros – nas quais uma fatigada família de viajantes podia aprender sobre os outros hóspedes. Que falta nos farão esses lugares!

Nota de tradução

(1) - estalagem pública, no Oriente Médio, para hospedar gratuitamente as caravanas que viajam por regiões desérticas; caravançarai, caravancerá (Houaiss)

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Robert Fisk: We should mourn these desert staging posts