19/7/2010, Muhammad Abdullah Gul, Al-Jazeera (ing.), Qatar
Traduzido por
Muhammad Abdullah Gul é pesquisador, com trabalhos sobre o Sul da Ásia.
Esse artigo foi publicado originalmente pelo Al Jazeera Centre for Studies.
A história está às vésperas de reviravolta monumental nas montanhas rugosas do Afeganistão, onde a única superpotência que resta no mundo está sendo derrotada pela resistência dos combatentes sem nome da al-Qaeda e dos Talibã. O impacto dessa gigantesca derrota será sentido em todo o mundo.
A guerra sangrenta que se trava no Afeganistão já dura quase nove anos, desde outubro de 2001.
Os Talibãs, que pareciam ter sido derrotados no início da guerra, só fizeram crescer dali em diante, cada dia mais fortes, sobretudo depois de 2003, quando a Força de Auxílio à Segurança Internacional [ing. International Security Assistance Force (ISAF)] da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN [ing. of the North Atlantic Treaty Organization (NATO)] e o exército dos EUA começaram a recrutar mais soldados, planejando com eles controlar todo o interior do Afeganistão.
Desde a Operação Anaconda em março de 2002 (quando militares dos EUA, oficiais paramilitares da CIA e outras forças da OTAN e extra-OTAN tentaram destruir a al-Qaeda e os Talibãs em Shahi-Kot), até a Operação Khanjar em julho de 2009 – depois da primeira “avançada” [ing. ‘surge’] do presidente Obama, que enviou mais 21 mil soldados adicionais (quando 4.000 fuzileiros norte-americanos e 650 soldados afegãos foram mandados para o Vale Helmand), os combatentes Talibãs obtiveram inúmeras vitórias em confrontos de baixa e média intensidade contra as forças de ocupação.
Não derrotados e inderrotáveis
Os Talibãs continuam não derrotados e já parecem inderrotáveis. Atraem para suas fileiras cada dia maior número de combatentes, e entre eles o moral está em alta.
O discurso de Obama dia 1/12/2009, foi interpretado como indicador muito forte da fadiga e da exaustão no lado dos EUA e, consequentemente, desencadeou forte fluxo de recrutas entusiasmados entre os jovens afegãos, que fizeram aumentar muito o número de Talibãs resistentes.
O ambiente político no país, por outro lado, deteriorou-se rapidamente, como resultado da vitória muito fortemente manipulada de Hamid Karzai nas últimas eleições presidenciais.
Karzai, além disso, fez péssimas escolhas para formar seu gabinete. Encheu os ministérios com os mesmos velhos e inoperantes senhores-da-guerra corruptos, que, simplesmente, não saberão proteger o país contra a avançada dos Talibã, prevista para ocorrer no outono de 2010.
Os 30 mil soldados extras que Obama mandou para o Afeganistão, para dar apoio ao governo fantoche de Karzai não conseguirão qualquer avanço real.
Tudo faz crer que as forças de ocupação acabarão confinadas em bases militares, de onde só conseguirão sair esporadicamente, para atacar pequenas unidades dos Talibãs, num ou noutro ponto do território.
Essa situação forçará os EUA a usarem a Força Aérea, em ataques que fatalmente gerarão mortes na população civil, o que aumentará a ira do povo afegão contra os EUA. O exército afegão ainda não alcançou o contingente desejável de 90 mil soldados e sabe-se que está infiltrado pelos Talibãs.
Exigências para uma solução política
“Para que algum diálogo de paz aconteça, os EUA têm de anunciar a data da retirada” [AFP].
O tráfico de narcóticos continua praticamente sem qualquer alteração, com conhecimento das forças da OTAN e dos EUA. A produção bruta de ópio ano passado chegou a 6.200 toneladas – o equivalente a 92% do consumo mundial da droga.
Parcela substancial dos bilhões de dólares gerados por esse tráfico vai para as mãos de apoiadores dos Talibã, cujo apoio é indispensável para que governadores e senhores-da-guerra locais preservem suas posições de prestígio.
Os Talibãs têm declarado que controlam mais de 80% do território afegão, o que pode ocultar algum exagero; mas o secretário de Defesa dos EUA Robert Gates já declarou que 11, das 32 províncias afegãs estão sob controle do inimigo.
Nesse cenário, pode-se concluir facilmente que qualquer solução militar para o imbroglio afegão está fora de questão. É tarefa da comunidade internacional encontrar uma via política que terá de atender às seguintes exigências:
1) uma saída honrosa para as forças de ocupação do Afeganistão;
2) constituição de um sistema de governo operativo, para depois da retirada; e
3) compromisso com a reabilitação e reconstrução do Afeganistão destruído pela ocupação.
Até o presente, esses objetivos não foram apresentados com clareza. Os países que serão mais gravemente afetados pela derrota dos EUA – outros países na Região e outros países do mundo muçulmano – estão completamente marginalizados da discussão e são mantidos afastados de qualquer tipo de processo de paz, que tem de ser iniciado imediatamente, antes que a situação fuja completamente a qualquer controle.
Antes de qualquer exercício de exame dos caminhos para a paz, há alguns fatores críticos que têm de ser considerados: o papel dos players não afegãos; a constituição étnica do Afeganistão; e o papel da al-Qaeda.
Players externos
Ao assumir a presidência, Obama delineou sua política para o Afeganistão e criou um grupo de contatos com quatro países: Rússia, China, Irã e Índia. Convenientemente, deixou de fora o Paquistão e a Arábia Saudita, países sem cuja participação nenhuma paz no Afeganistão será jamais possível e permanecerá como ilusão inalcançável. China e Rússia são importantes, mas periféricos, se se tratar de tentar qualquer tipo de reconciliação afegã.
A influência do Irã é limitada às comunidades xiitas, que não têm qualquer influência considerável no plano político-cultural. A Índia, apesar dos investimentos de $1,2 bilhão no Afeganistão, continua muito afastada das tendências dominantes na sociedade afegã. Há hoje algumas centenas de milionários indianos influentes no governo Karzai, mas não há indiano algum nos movimentos sociais ou como quadro político.
Os Talibãs, em particular, jamais aceitariam qualquer tipo de envolvimento da Índia no futuro do Afeganistão. Em termos históricos, os afegãos tão cedo não esquecerão que a Índia foi aliada da URSS na invasão e posterior destruição do Afeganistão. A Índia reaparece hoje aliada dos EUA – o que incendeia a oposição, também contra a Índia, entre o povo afegão.
Composição Étnica
A sociedade afegã, em termos de etnias, é formada de 58% de pashtuns (principais apoiadores dos Talibãs), 22% de tadjiques, 8% de uzbeques, 7% de Hazaras (a maioria, xiitas) e 5% de outras etnias (kirguites, baluches, aimaks e árabes).
Os pashtuns, efeito da maioria numérica, vetarão qualquer acerto político. Hoje, os pashtuns sentem-se marginalizados e vítimas de preconceito étnico.
Embora haja um sentimento nacional afegão com considerável poder de coesão, as divisões étnicas ainda viciam toda a cena sociopolítica. A história afegã comprova que só um governante forte, que comande sistema pouco rígido de governo, permitirá acalentar hoje qualquer esperança de paz duradoura no Afeganistão.
O futuro, portanto aponta para o papel dominante dos Talibãs, os quais, no passado, já mostraram empenho, férreo desejo político e estrita observância da justiça legal manifesta na Xaria.
Apesar de seus muitos erros – desrespeito às mulheres e o uso da força para modelar o comportamento cultural –, os Talibãs continuam muito importantes na sociedade afegã. Estimativas que circulam no Afeganistão calculam que 70% da população afegã deseja a volta dos Talibãs ao poder – desde que aceitem reformas em seu código de conduta social.
A Al-Qaeda já não é, hoje, organização monolítica; é marca global, disseminada por franquia. Os quadros combatentes foram realocados e hoje só resta, no Afeganistão, uma pequena célula da al-Qaeda.
O ocidente tem alegado que haveria líderes da Al-Qaeda escondidos no Paquistão. É alegação ridícula, cuja única função é pressionar o Paquistão para que “faça mais”.
Praticamente todos os operadores de campo da al-Qaeda foram deslocados e encontraram novos campos de combate onde aplicar seus talentos no Oriente Médio e na África, depois de bem-sucedidos na missão de abalar o poder e minar o controle que os EUA contavam impor no cenário afegão de combates.
Uma rota possível para sair do Afeganistão
Obama, pelo menos, já abriu a porta às negociações, quando anunciou data limite para o início da retirada dos soldados norte-americanos, do Afeganistão. Apesar disso, outros grupos e partidos também afetados pela guerra do Afeganistão têm de começar a mobilizar-se para que se chegue a uma solução, antes de que já não haja tempo para coisa alguma.
A Organização da Conferência Islâmica [ing. Organization of Islamic Conference (OIC)] poderia ser fórum efetivo, desde que decida cerrar fileiras e pare de contentar-se com obedecer ao que os EUA decidam.
Uma OIC independente poderia propor ampla lista de possibilidades, ainda mais importantes se seus esforços se articulassem com uma delegação potente de ulama (intelectuais islâmicos) de vários países muçulmanos. Nessa direção, o melhor seria que Paquistão, Arábia Saudita e Irã assumissem a função de organizar essas relações entre a OIC e grupos de ulama.
Pré-requisito para que se possa iniciar qualquer diálogo produtivo, com vistas a resolver a questão do Afeganistão, seria que os EUA promovessem alteração visível nos seus paradigmas políticos. Desde que houvesse alteração profunda e convincente, a partir da qual os afegãos pudessem realmente acreditar que os EUA admitirão que os afegãos controlem o próprio destino, rapidamente surgiriam modos para solucionar todos os demais impasses pontuais. Mas enquanto os EUA mantiverem a posição de sempre, de ambivalência, o imbroglio afegão só fará complicar-se, cada vez mais, ainda por muito tempo.
Para que se construam condições para iniciar um processo produtivo de diálogo no Afeganistão, são indispensáveis os seguintes passos:
1) os EUA devem declarar oficialmente a data da evacuação dos soldados, do Afeganistão;
2) o movimento de resistência afegã deve ser removido de todas as ‘lista de terroristas’ de que falam os EUA; e
3) todos os prisioneiros políticos afegãos devem ser postos em liberdade, dentro do país e em países estrangeiros.
Enquanto se trabalha para resolver os problemas, deve-se considerar e não perder de vista os seguintes pontos:
1) o Afeganistão é conflito ideológico; qualquer abordagem que não considere esse ponto sempre estará condenada ao fracasso;
2) governo de coalizão que seja construído por forças externas e alheias à sociedade afegã sempre estará condenado ao fracasso;
3) todas as soluções impostas serão contraprodutivas – como foi contraprodutiva e degenerou em desastre a declaração de Bonn [1]. A solução terá de ser solução afegã, e a ela se terá de chegar em território afegão;
4) todos os esforços para acomodar interesses periféricos ou para criar um estado-fantoche dos norte-americanos levará ao desastre; e
5) finalmente, os EUA devem considerar que os afegãos são ferozmente independentes e jamais cederão qualquer parcela de sua independência, de sua religião ou de sua honra. Mas, se se construir acordo justo e equitativo, o Afeganistão pode ser assimilado à comunidade global, como país que poderá progredir e desenvolver-se rapidamente, se o Ocidente admitir que lá operem as energias e soluções locais.
Nota de Tradução
[1] Reunião de representantes dos principais grupos políticos afegãos, realizada em Bonn, patrocinada pela ONU, dia 5/12/2001.
O artigo original, em inglês, pode ser publicado em: Afghanistan - paths to peace