terça-feira, 20 de julho de 2010

O GOLPE MAIS TERRÍVEL

terça-feira, 20 de Julho de 2010

Samuel Huntington
Que fazer quando o nosso inimigo é derrotado?
Podemos ficar descansados, gozar da vitoria, projectar um futuro melhor.
Esta parece uma boa solução. Por isso não vamos considera-la.
Pois na realidade ao acabar com o nosso pior inimigo deparamos com um problema ainda maior: encontrar um novo inimigo.
É mesmo este o problema dos Estados Unidos após o desfecho da Guerra Fria.
Como justificar a própria atitude, os enormes gastos militares, a política invasora, os conceitos democráticos atropelados sem um inimigo digno deste nome?

Islão? Sim, até pode servir. Também a China, no médio/longo prazo.
Não são o ideal, os Soviéticos eram bem outra coisa; mas por enquanto não há nada melhor.


O falso choque de civilizações
Em tempos não suspeitos, dois anos após a chamada "Guerra Fria", que levou ao domínio unipolar dos Estados Unidos sobre o resto do mundo, o geopolítico americano Samuel Huntington publicou um artigo intitulado "O choque de civilizações", ao qual seguiu três anos depois um livro com o mesmo título.
Nestes dois trabalhos, Huntington expressava as próprias reservas acerca do optimismo febril espalhado pelo estudioso político Francis Fukuyama, o qual proclamava o "fim da história" imposto, segundo ele, pelo processo espontâneo e irreversível de democratização que teria surgido em todos os lugares, até os mais remotos cantos do planeta. O retorno a um mundo multipolar era, de acordo com o Huntington, uma perspectiva absolutamente inevitável. Tornava-se então indispensável o desenvolvimento crucial de novas estratégias, para que o Ocidente fosse equipado com as ferramentas adequadas para a protecção e a conservação da própria identidade cultural. Na sua obra, Huntington listava oito "civilizações" diferentes: chinesa, japonesa, hindu, islâmica, ortodoxa, latino-americana, africana e ocidental. Eliminadas seis, indicava a China e o Islão como as principais ameaças para a preservação da identidade ocidental. Esta abordagem era algo forçada, como resulta evidente.

Em primeiro lugar, Huntington uniu oito diferentes entidades e definiu todas com rótulo de "civilização", levando em consideração critérios de selecção nada homogéneos: no caso do Islão considera a religião, no caso do Ocidente a geografia, e assim pela frente.
Em segundo lugar, por um lado alisa todas as diferenças e divergências entre os Estados Unidos e Europa, deitando tudo na mesma panela (embora entidades distintas entre elas, com finalidades e objectivos muitas vezes opostos e contraditórios), doutro lado apresenta a cultura islâmica como uma unidade monolítica, enquanto sabemos ser uma enorme constelação de correntes (não apenas xiitas e sunitas), muitas vezes em conflito directo uma com as outras. Continuando a exposição dos argumentos, Huntington colocava a ênfase no aspecto essencialmente religioso dos actuais conflitos. Escrever que "as fronteiras do Islão estão cheias de sangue" ou ainda que "o problema para o Ocidente não é o fundamentalismo islâmico".

O Islão revela a perspectiva unilateral adoptada pelo autor para avaliar a complexidade da situação. Historicamente, o pretexto religioso usado para mobilizar exércitos (como as Cruzadas) e deixa-los lutar em conflitos entre Estados sempre serviu para mascarar interesses puramente económicos, territoriais e políticos. As guerras religiosas configuram quase sempre conflitos internos dentro de cada Estado, não entre nações. Esta nota de Huntington, no entanto, é muito interessante, pois revela a predisposição do autor a acreditar num constante estado de beligerância internacional. E isso leva a considerar o iminente (segundo ele) "Choque de Civilizações" como um substituto natural da antiga "Guerra Fria". No grande jogo resolvido com a capitulação da União Soviética, ambos os actores estavam a agir em resposta às necessidades imperiais e não religiosas, cada um na própria área de influência, fieis à lógica de Yalta. Uma descrição tão apocalíptica do cenário geopolítico actual é todavia funcional para a realização de finalidades bem precisas.

Ao enfatizar o aspecto religioso ("A religião é principal característica de identidade das civilizações, a mais profunda diferença que existe entre os povos", escreve ele) dum choque está parece iminente, Huntington soube colocar o debate no mesmo patamar dos chamados "fundamentalismo". Criar um estado de alerta contra uma ameaça agitada obsessivamente como um "monstro" e aumentar ainda mais o nível de desconfiança (já elevado), que por sua vez, determina a propagação de uma espécie de psicose generalizada. Qual o fim dum clima como este? A resposta a esta pergunta legítima pode ser facilmente deduzida a partir de uma pequena frase pronunciada por Alexei Arbatov (assessor de Mikhail Gorbachev), que no final de 1990 declarou aos Estados Unidos: "Vamos infligir o golpe mais terrível, privar-vos do inimigo."

Alexei Arbatov
A genialidade de Huntington está mesmo na identificação de China e Islão quais novos inimigos credíveis, entregando às massas uma chave de interpretação muito simplista mas atraente e acessível a todos do complexo contexto geopolítico. As políticas internas e externas adoptadas pelas últimas administrações, que tiveram de enfrentar uma situação de crescimento rápido das várias potências regionais, encontraram uma grande fonte de inspiração no texto de Huntington. A liderada pelos fanáticos neo-conservadores fizeram um uso obsessivo da ameaça islâmica, com a qual obteve o apoio popular necessário para promover uma política desconsiderada de potência, que fez da força bruta a nova lei da Terra", a ser imposta com bombardeamentos preventivos e / ou humanitários em todos os cantos do planeta.

A administração Obama, em vez disso, colocou (temporariamente) de lado a intervenção militar directa (embora a maciça utilização de drones), em favor duma política e diplomacia mais suaves, diferentes nos métodos mas absolutamente idênticas, na substância, a de Bush; mas certamente mais adequadas para lidar com as divergências que surgem num mundo multipolar. A eleição de Obama, ao contrário dos gritos histéricos de muitos "idiotas úteis" que pintaram o novo presidente como o "homem da mudança", pode assim ser interpretada como uma simples retirada táctica que não muda a substância. O inimigo é sempre às portas, seja chamado Islão ou China, Venezuela ou Rússia. Depois dos comunistas do senador McCarthy na década de Cinquenta, é agora a vez destas "civilizações", novas vítimas do moderno delírio interpretativo.

Realce para a frase de Alexei Arbatov, o assessor de Mikhail Gorbachev, e a profética frase: "Vamos infligir o golpe mais terrível, privar-vos do inimigo".

Deveria entrar em todos os livros de História.

Fonte: Conflitti e Strategie
Tradução, Comentário e Edição de : Informação Incorrecta