Alastair Crooke |
7/4/2011, Alastair Crooke, Foreign Policy
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
“Se a Síria, que é muito mais importante, na escala regional, que a Líbia, e ameaça muito mais diretamente Israel, alcançar qualquer melhor democracia, numa transição pacífica, com Assad ou sem ele, mediante levante civil ou pela via de reformas que Assad conceda ou o povo conquiste, as ‘potências ocidentais’ terão motivos muito mais poderosos para atacar a Síria... do que tiveram para sua leviana, mal pensada, temerária invasão à Líbia de Muammar Gaddafi”.
(em “Interessante, sobre a Síria”, 26/3/2011, Simon Tisdall, The Guardian, UK, traduzido )
A clivagem na cultura política entre o doméstico e o externo não poderia ser mais bem ilustrada que na fala televisionada do presidente Bashar Assad, dia 30 de março, quando se dirigiu ao povo sírio. O presidente estava visivelmente cansado, com expressão exausta e perturbada, e a fala foi recebida em todo mundo com desdém – considerada insuficiente e mal pensada.
Mas na Síria, onde eu estava, o efeito foi muito diferente, pelo menos para grande parte dos sírios. Entender por que as reações foram tão divergentes, ajuda a ver uma outra lógica por trás daquela fala, em tudo diferente da lógica que se viu ativa nos comentários políticos que a imprensa ocidental divulgou pelo mundo. A seu modo, o evento mostra o quanto a situação de Assad é profundamente diferente da de Mubarak ou Ben Ali – os únicos parâmetros pelos quais a situação de Assad tem sido analisada sobretudo no ocidente.
A cultura ocidental entende que crises gravíssimas exigem formalidade absoluta: o presidente deve aparecer sempre com rosto sério, sentado à uma imponente mesa de trabalho, exibindo todos os símbolos da autoridade, com bandeiras artisticamente dispostas ao fundo, tudo para sublinhar a gravidade do momento. Mas Assad fala sem pompa ao parlamento, veste-se sem formalidade e às vezes ri. Algumas vezes conversa descontraído, com quem esteja à frente. “Pouco presidencial”, devem ter pensado vários analistas ocidentais, que concluíram: “e sem especificidade no que diga respeito a reformas”.
Para os sírios, a situação é outra: Assad nunca é formal e, exceto pela fisionomia cansada, era, na fala de março, o mesmo homem que os sírios conhecem: um presidente jovem, que não se deixou ossificar nem pelo tempo nem pela ritualidade do poder e das convenções. Os sírios que o ouviram falar viram, bem claramente, que, sim, Assad acredita em reformas. A idéia de que Assad não é presidente à antiga é amplamente majoritária na população síria, inclusive por muitos dos que estão saindo às ruas para manifestar-se. Muitos sírios sabem que Assad não ordenou e, sim, que proibiu, que as forças de segurança atirassem contra os manifestantes. Essa é profunda diferença entre a Síria e, digamos, o Egito. No Egito, a rua sabia que Mubarak jamais, nunca, em nenhum caso, aceitaria reformas. Os sírios sabem que Assad é, por instinto e convicção, reformista.
Em vários sentidos, a fala de Assad foi extremamente audaciosa – cuidadosamente calibrada mais para o específico contexto sírio, não para o contexto mais amplo de outros estados árabes, e atenta ao fervor revolucionário que agita o mundo. Em entrevista que deu em janeiro ao Wall Street Journal [1], Assad já falara muito claramente sobre a absoluta necessidade de reformas internas e sobre a importância de os cidadãos sentirem-se respeitados em sua dignidade:
“Trata-se de ter de fazer alguma coisa para mudar, e a Síria tem de manter-se afinada com as mudanças, como estado e como instituições (...). Trata-se de um sentimento popular, o povo sente-se digno e respeitável, e quer participar das decisões políticas do país. Essa é outra questão importante: não se pode governar sem íntima conexão com as crenças e desejos do povo. Essa é a questão central. Se há divergência entre as políticas de estado e o que o povo pensa, sente e quer, cria-se um vácuo no qual prosperam todas as agitações. As pessoas não vivem só pelos interesses, vivem também pelas coisas nas quais creem e pelas coisas que desejam”.
Muito claramente, Assad, desde janeiro, já se comprometia com as reformas. Na fala de março, ele repetiu: “Sem reformas, estamos no caminho da destruição”, mas optou deliberadamente por não oferecer uma lista de concessões aos que se manifestavam nas ruas. Essa opção foi o aspecto mais cuidadosamente deliberado do discurso de março. Lembremos que o estado sírio não estava ameaçado. Ninguém desertou do governo e o exército continua leal ao governo de Assad. As manifestações em Daraa não prosperaram em outras cidades. As manifestações contra o governo em Damasco, Aleppo e Hama, três das maiores cidades da Síria, foram mínimas, se comparadas às massivas manifestações de apoio ao governo, nas mesmas cidades.
Mesmo em Daraa, onde houve as maiores demonstrações e onde os manifestantes foram atacados a tiros, os habitantes da cidade afirmam saber quem, da Polícia, ordenara os tiros e a quem está ligado. É verdade que as pessoas estão furiosas demais para serem usadas como fontes fidedignas de informação, mas a fúria das ruas não se dirige contra o presidente.
A imprensa ocidental simplificou o contexto sírio, até reduzi-lo a uma questão de ou branco ou preto, em termos de “o presidente fará reformas ou enterrará as reformas?” De fato, não é essa a questão na Síria – embora seja quase essa, na maior parte do mundo árabe. Não há qualquer disputa sobre fazer ou não fazer as reformas: o que a Síria discute é como proceder. O verdadeiro debate se trava sobre como melhor implementar as reformas, de forma a não permitir que sejam usadas por uma minoria, para desacreditar o processo e, no final, degradar e até bloquear qualquer reforma.
Assad já reconhecera implicitamente a insatisfação nacional com a administração do estado (muitas vezes inepta e quase sempre corrupta). Também já reconheceu que a nova consciência popular no mundo árabe exige que haja real participação de todos nas tomadas de decisões. Mas, simultaneamente, afirmou que, no plano internacional, a Síria manteve-se do lado certo da história – um ponto chave, que distingue a Síria dentre a maioria dos estados árabes: Assad sempre se opôs à invasão do Iraque e sempre apoiou a resistência palestina.
Para o Wall Street Journal, Assad destacou que, em termos de política exterior, seu governo sempre esteve intimamente conectado ao núcleo duro das crenças e ideologia da maioria dos sírios – o que o torna completamente diferente de outros governantes árabes, como Mubarak, que era tido, no mundo árabe, como fantoche do ocidente e de Israel. E Assad disse, bem claramente, que se trata, nas reformas, de aplicar esse mesmo princípio, também na esfera doméstica, nacional.
As posições da Síria, no cenário internacional, deram a Assad forte popularidade na região e em seu país. Mas, simultaneamente, atraíram inimigos poderosos contra a Síria. É claro que muitos, na região e fora de lá, atribuiriam ao governo de Assad qualquer incômodo que a política externa da Síria gerasse, investindo assim na possibilidade de enfraqucê-lo internamente. Assim como muitos entendem que a queda de Mubarak enfraqueceu o Fatah, assim também muitos esperam que uma eventual derrubada do governo de Assad enfraquecerá o Hamás e o Hezbollah.
Em Israel, comentaristas políticos não se cansam de sugerir nas últimas semanas, que o despertar das populações árabes pode levar a resultado que interessa a Israel: com Assad “mais democrático”, aproxima-se o momento de Assad ser obrigado a desistir de sua militância a favor do eixo da resistência palestina e aceitar a paz com Israel. Israel não está sozinha nessa empreitada: outros governos árabes acalentam a mesma esperança, menos declaradamente, e embora menos preocupados com alguma paz com Israel e mais interessados, isso sim, em enfraquecer o braço islâmico da resistência, que vêm como ameaça à sobrevivência de suas respectivas ditaduras.
A ameaça de intervenção na Síria, sobretudo pelos serviços secretos ocidentais, não é efeito de delírio ou mania de perseguição. Tem sido tema sempre presente ao longo dos anos, e ninguém duvida de que o governo de Assad tenha relatos de inteligência e provas bem documentadas de ações planejadas na Europa, Arábia Saudita e Jordânia, para gerar agitação interna na Síria e inflá-las até uma confrontação fortemente polarizada. Deve preocupar-nos, sobretudo, a evidência de que Sheikh Yusuf al-Qaradawi já caracterizou as manifestações na Síria como “divisão sectária”: seria um conflito entre sunitas governados por alawita (Assad é alawita). Em Latakia, há provas de que houve tentativas de implantar essas divisões sectárias.
Nessas circunstâncias, o que significam as massivas manifestações pró-Assad? Parece-me que muitos dos que saem as ruas já conhecem o dano que as disputas sectárias causaram ao Iraque (há mais de um milhão de refugiados iraquianos na Síria); e muitos também estão irados contra a intervenção de exércitos ocidentais na Líbia, onde já se criou ameaça de guerra civil. Os sírios já viram acontecer antes, exatamente como veem acontecer agora. Os sírios também querem reformas: partilham a opinião de Assad, que quer reformas, e manifestam-se, nas ruas, contra os que os sírios veem como agitadores que visam, exatamente, a mergulhar o país em disputas internas, que podem levar à guerra civil, que destruirá qualquer esperança de reformas. Muitos sírios suspeitam que qualquer ideia de reforma, que chegue à Síria de fora para dentro, venha como Cavalo de Troia, usado contra a Síria e, mais amplamente, contra todo o eixo da resistência.
Assad, pois, na fala de março, dirigiu-se aos que o acompanham dentro da Síria e a favor da resistência pró-Palestinos – grupo de opinião que existe difuso, mas não existe constituído, em nenhum outro estado da região. Os manifestantes pró-Assad esperavam – e receberam do presidente – um sinal de autoconfiança. Ao mesmo tempo em que receberam, formalizada, a promessa de reformas. Agora, os sírios pró-resistência contra Israel e favoráveis às reformas, passam a esperar que Assad cumpra o que prometeu.
Nada autoriza a suspeitar que Assad venha a esquecer a promessa de por fim às leis de emergência, que não levante as restrições à imprensa e não sancione leis que permitam a formação de partidos políticos. Tudo autoriza a esperar que cumprirá, rapidamente, o que prometeu. Evidentemente, o sucesso desse projeto depende crucialmente de o presidente Assad conseguir controlar as forças organizadas contra ele, contra seu governo e contra a resistência palestina, e de que, assim, consiga fazer parar os ataques a tiros contra manifestantes.
Se Assad for bem sucedido no seu projeto de reformas – e até aqui parece continuar a andar nessa direção – começa a fracassar a previsão, já divulgada por muitos analistas ocidentais, de que Assad sairia enfraquecido, em contexto de maior participação popular democrática, na Síria.
Parte importante da popularidade pessoal de que Assad goza em seu país é resultado direto das posições de seu governo no contexto da política externa, área em que se tem mantido muito próximo do sentimento popular. Muito mais provável é que Assad saia fortalecido da atual crise, num contexto de Síria com mais e melhor democracia, e com a Síria reposta no caminho de volta à sua posição central tradicional na política do mundo árabe. Corretamente explicada e entendida, uma Síria democraticamente fortalecida, e com Assad, garante melhores chances de sucesso na solução das atuais tensões no mundo árabe, do que cria algum risco de agravá-las.
Nota de tradução
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