quarta-feira, 20 de abril de 2011

Última conversa com Canhoto da Paraíba

 

Publicado em 20/04/2011 por Urariano Mota

No próximo domingo, faz três anos que o gênio do violão Canhoto da Paraíba partiu.

Lembro da última vez em que o visitei.

Naquele dia, Canhoto da Paraíba estava com 81 anos, sentado em uma cadeira, como sempre esteve durante 16 horas, todos os dias em seus últimos três anos. Depois de um AVC, ele falava com dificuldade e baixo. Eu havia ido à sua casa como portador de um presente, os CDs Vale dos Tambores, do compositor e intérprete Carlos Henrique Machado. 

Descobri dessa vez que ele via mal por somente uma das vistas. Mas Canhoto era um homem com mania de felicidade. O seu prazer era sorrir, procurar o sorriso, buscar a felicidade. Ele sofria, claro, ele percebia o sofrimento, mas isso não o levava ao desespero. Naquele domingo, carregava comigo meio litro de uísque, para beber enquanto ouvisse os choros de Carlos Henrique Machado. Então eu pedi à sua filha Vitória um copo com gelo. Que fez Canhoto? Pediu um também, porque desejava me acompanhar na bebida. Mas Vitória, filha, secretária, enfermeira e companheira repôs a nossa alegria no quintal da realidade:

- Ele não pode beber, por causa do remédio. Ele toma Gardenal.

Então eu, o caridoso – e a caridade se confunde com a crueldade em mais de uma rima – levei o meu copo de uísque a seu nariz, para que ele, se não podia beber, pelo menos sentisse o aroma do álcool no domingo. O diabo era que ele, gripado, estava com as narinas cheias de vick. O frustrado, acreditem, fui eu. Canhoto, não, ele foi do desejo de me acompanhar à paciência de viver com o que era possível. E por isso, para não afrontá-lo com a minha temporária saúde, bebi menos, somente três doses, em respeito a seu estado. E assim melhor pude ver e observar a sua pessoa.

Aos primeiros acordes do choro Canto dos Quilombos ele sorriu. Melhor dizendo, pôs um sorriso que não voltou a se fechar nos lábios. Então entraram o cavaquinho, o bandolim, os violões. Para quê? Como é que se podia ser infeliz a ouvir uma composição assim? Não sei se descobri a pólvora, mas Canhoto era feliz porque era um homem musical. Ele retirava do som o remédio para a desgraça.  Porque a sorrir ele se pôs a balançar a cabeça também, a dizer e a se repetir “sim” em silêncio. Então eu senti que ele estava liberto. Ele não estava mais naquela cadeira, ou melhor, estando sentado nela, a cadeira era um objeto de profundo conforto. Era como estar na dor e integrar a dor em algo maior, em outro lugar, onde a própria dor não tem razão, como canta Paulinho da Viola. Então ele comentou, baixinho, à sua maneira, mas com um ar no rosto que não admitia outra frase:

- Como tem gente boa no Brasil. 

E dessa vez fui eu que balancei a cabeça. Vieram outros choros, até chegar na composição Catira. E ele, esquecido do nome do artista que ouve:

- É João Pernambuco?

- Não, Canhoto, é Carlos Henrique Machado, eu lhe respondi.

Senti que ele não me via, não mais pela falta de visão, mas porque a ausência de luz era um elemento para sua viagem. E ele estava mais que certo, não era uma ilusão, um escapismo, como qualquer idiota de manual podia escrever. Aquilo era típico da arte: fazer do circunstancial um elemento de composição, sempre. Na dor, na alegria, na felicidade, no sofrimento, no riso, na raiva - tudo era matéria para a expressão.

Mas isso que acabo de escrever, no calor do que percebo agora, ele sabia sem conceito cerebral, ele sabia por sentimento, a balançar a cabeça e a sorrir. Impossibilitado que estava de ele próprio executar a beleza, com as suas gordas e canhotas e generosas mãos – porque era todo esquerdo, agora sinto, o que nele era destro era apenas auxílio para o outro lado -, ele passou a compor de outra maneira, enquanto acompanhava os movimentos do choro do CD. Então eu percebi que Canhoto estava tocando! Acreditem, porque eu vi Canhoto a executar o violão, apesar do AVC, tocando. Como? – Ele estava com uma das pernas cruzada, posta sobre o joelho. Com a mão esquerda, imóvel, repousada em um braço da cadeira, com a direita ele marcava posições de acompanhamento na tíbia, no tornozelo!

Essas coisas a gente vê e deve olhar para o outro lado em sinal de respeito. Mas era irreprimível. Ver as notas a correr com o polegar, com o médio, o indicador, em marcações imaginárias em uma tíbia que se transformara em braço de violão. Eu bebi e silenciei ali, como silencio aqui.

O mais que escrever será inútil.

Enviado por Direto da Redação

3 comentários:

  1. (enviado por e-mail por Raul Longo e postado por Castor)

    Urariano é covardia. Não há quem enfrente, nem seja louco.

    Mas Urariano escrevendo sobre Canhoto da Paraíba é muito acinte. Irrenegável desafio!

    No entanto quem sou eu que, se Sivuca sim, de Paraíba e gênio não conheci mais nenhum.

    Zé Neto e o irmão famoso, é verdade, mas o mestre, como ao Urariano, não me foi dado.

    Só que quando é para falar de deuses a conversa não pode morrer num único causo, por mais temerária que seja a tarefa e agigantado o Urariano que se tenha pela frente.

    Enfrento... Fazer o quê? Vaidade e inveja corroem.

    Pra contar a história que nem foi Sivuca quem contou, mas Manézinho Araújo que Urariano sabe qual pernambucano é, e quem não sabe que morra de desinformação ou vá perguntar ao Germano Mathias de onde veio o samba-embolada.

    Pois o causo é que teve lá, por qualquer razão somedida, um encontro das melhores sanfonas e violas do Brasil. No Rio de Janeiro.

    Claro que vem tudo lá do nordeste, mas como o nordeste é o Brasil inteiro resolveram centralizar. Faltou o patrocínio à altura para concentrar violas e sanfonas num só pouso e cada um que se virasse em casa de compadre, amigo, ou hotel de seu costume.

    Canhoto veio com o nome de uma certa rua de só pensões, pousadas, quartos e coitos para nordestino sem luxos, mas de um mínimo de respeito e consideração.

    Foi subindo a rua, avaliando valores e aspirando odores até encontrar a que se aparentava a mais apropriada.

    Alojado, banhado da maresia da viagem, foi-se ao dito encontro do qual, no sempre estender dos reencontros regados nas devidas cachaças e complementos, Canhoto retornou altas horas com companhias coincidentemente alojadas na mesma rua de notória experiência nordestina, ‘inda que em diferentes estalagens. Mas por falar nisso foi que Canhoto se lembrou de que não lembrava em qual delas se hospedara.

    Uma infinidade: lado a lado, todas pegadas e à direita e esquerda de quem sobe. Naquela altura das tantas emoções e comemorações, sem a menor possibilidade de recordação se no de cá ou de lá de quem vem ou vai,
    o jeito foi acordar um a um dos atendentes em seus cochilos noturnos: “- Esta aqui instalado o Sr. Canhoto da Paraíba”. O moço, já de luzes acessas, ia lá, olhava estremunhados nos registros, e respondia.: “- Está não.”

    “- Muito obrigado!” E Canhoto seguia à seguinte, ziguezagueando pela ladeira até que, como era de se esperar, houve um que confirmou:

    “- Hospedado está sim, mas no momento não se encontra.”

    “- Encontra-se sim meu filho, porque sou eu mesmo. Dê cá a chave que quero mais é dormir.”

    ResponderExcluir
  2. Raul Longo é nordestinado.
    Tem razão, amigo. Há um mar de histórias envolvendo esses mestres.
    De Canhoto então, de sua pureza, nem é bom falar. Mas só uma mais:
    Canhoto, antes de aposentar, era contínuo do SESI. Trabalhava no mesmo setor que a mulher do seu João do Caldíssimo ( "caldíssimo", de caldinhod e feijão,q ue servia com cachaça. Outro dia conto quem foi). E seu João pediu a Canhoto, para comprar um violão para o filho, a quem Canhoto daria aula.
    Que faz o nosso gênio? Em cada loja em que "experimentava" o violão, dava concerto. Concertos de graça, públicos, em que satisfazia pedidos do povo na rua.
    Passaram o dia inteiro para escolher um violão, depois de muito exprimentar...

    Abraço.

    ResponderExcluir
  3. Urariano, seu modo de escrever é de um nordestino cândido.

    ResponderExcluir

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.