Vijay Prashad |
7-8/4/2011, Vijay Prashad, Counterpunch [ed. de fim de semana]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
1. Partilhas
A OTAN errou o tiro e atirou contra “rebeldes” em Benghazi. Os comandantes da OTAN dizem que a culpa é das fronteiras que não existem. Difícil saber quem é quem, dizem, líbios “rebeldes” ou líbios regulares. A Líbia, afinal está dividida entre leste e oeste.
Gaddafi continua no comando no oeste. Seu filho Saif-al-Islam disse à BBC que a família não se interessa por partir para a Arábia Saudita, Zimbabwe ou Venezuela. Saif e o irmão, Saadi, apresentaram proposta segundo a qual o pai consideraria deixar a posição em que diz que nunca esteve, desde que os filhos mantenham posição de autoridade (Gaddafi père realizou impressionante pluricentralização familiar do poder, chamando-a de descentralização). O ex-deputado dos EUA Curt Weldon, ao que parece, disse a Gaddafi que poderia continuar como chefe honorário da União Africana e que seus filhos poderiam concorrer à presidência em futuras eleições na Líbia. Os “rebeldes” de Benghazi enfureceram-se: não é o que esperavam. (...)
O lento avanço da “rebelião” é causa de tensões entre os líderes “rebeldes”. Os três principais líderes “rebeldes” odeiam-se: Khalifa Hefter, que deixou o estado de Virginia, EUA, direto para Benghazi, é inimigo figadal do ex-ministro do Interior general Abdul Fattah Younis e também de Omar el-Hariri. Dois dos líderes políticos dos “rebeldes” Mahmoud Jibril (que foi assessor muito próximo de Saif-al-Islam, no processo de privatização da Líbia) e Ali Essawi (ex-embaixador na Índia) permanecem na Europa, trabalhando para obter apoio internacional para o “Conselho Provisório”. Mas o descontentamento alastra-se, e o gambito de abertura da negociação de Trípoli não agradou a ninguém. Jibril e Hefter acalentam sonhos grandiosos, embora não tão grandiosos quanto os da comunidade dos direitos humanos. (...)
As terras do petróleo delimitam a fronteira entre as duas partes do país, junto às mutantes dunas do deserto, entre Ras Lanuf e Brega. Haja acordo, haja partilha ou haja divisão da Líbia, é indispensável que se decida quem se responsabilizará pela segurança dos oleodutos e gasodutos e pela partilha dos lucros entre leste e oeste. São assuntos espinhosíssimos, dos quais ninguém fala.
2. Democracia
Há muitos anos, um amigo meu conversava com E. P. Thompson, o historiador marxista. Meu amigo, Dilip Simeon (autor de excelente romance, Revolution Highway), lastimava os limites da “democracia burguesa”. Dilip conta que Edward Thompson pediu-lhe que parasse de repetir o adjetivo “burguesa” ao lado de “democracia. “Esse adjetivo, ao lado de “democracia”, dá-me náuseas” – teria dito Edward Thompson. Esse adjetivo humilha a democracia.
O impacto dos desenvolvimentos das revoluções são quase imprevisíveis.
A contrarrevolução esmagou as revoltas de 1848, mas não lhe quebrou nem o espírito nem a dinâmica. A cultura do feudalismo morreu depois de o feudalismo estar morto, derrotada por novas identidades sociais. “Nossa era, a era da democracia, está raiando”, escreveu Frederick Engels em fevereiro de 1848. Um operário, pistola em punho, invadiu a Câmara Francesa de Deputados e declarou “Deputados, nunca mais! Somos os senhores.” A contrarrevolução foi feroz. “A burguesia, plenamente consciente do que faz, conduz guerra de extermínio contra eles”, comentou Marx. Mesmo assim, 1848 abriu um novo horizonte social, contra a servidão e a subserviência, marcou o meio do caminho entre a promessa de uma revolução anterior (1789) e a possibilidade de outra, depois (a Comuna de Paris de 1871). A Europa nunca mais voltou à era do chicote e das perucas empoadas. Aquele tempo havia passado.
Inúmeras outras revoluções tiveram impacto semelhante, quebrando a espinha dorsal de formas velhas de claustrofobia social, mas sem inaugurar imediatamente novas formas de liberdade social. O 1905 e o 1917 russos fortaleceram o ânimo dos movimentos anticoloniais. Gandhi, ainda advogado na África do Sul, escreveu, sobre a revolução russa de 1905: “os tumultos atuais na Rússia são grande lição para nós. Os trabalhadores russos e os servos declararam greve geral e pararam. Nem todo o poder do czar da Rússia conseguirá fazer os trabalhadores voltarem ao trabalho à ponta de baioneta. Nem o canhão reina, sem a cooperação dos humilhados”. Se os trabalhadores russos e os camponeses podiam fazer greve contra os autocratas, os indianos, os indonésios, os sul-africanos, os persas também podiam. A ideia de não-cooperação de Gandhi chegou-lhe via São Petersburgo.
O projeto dos movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo emergiu, cabeça erguida, nos anos 1920s; e saiu derrotado do palco da história nos anos 1980s. Mesmo assim, também aqui, parte do legado pesado do colonialismo fora despachado para sempre, porque os países, dali em diante, aprenderam que teriam de encontrar soluções suas para problemas seus, que só eles podem encontrar (nessa linha, Fanon escreveu em 1961, “O Terceiro Mundo hoje encara a Europa, como massa colossal cujo projeto tem de ser o de resolver os problemas para os quais a Europa não foi capaz de encontrar solução”). A desigualdade no Sul Global desmente qualquer sucesso que esse projeto suponha ter alcançado, mas, mesmo assim, o formidável exemplo da era do Terceiro Mundo ainda dá amparo e apoio a tantas lutas que germinaram no Sul.
Mais perto do nosso tempo, os levantes em todo o globo, em 1968, de Tóquio à Cidade do México, de Paris a Karachi, pareciam não ter tido grande impacto. Os sonhos revolucionários de trabalhadores e estudantes lá ficaram, degradados, quando tantos meiaoitistas trocaram os slogans da revolução pelas griffes da hora, boemia ou cursos de desenvolvimento pessoal e ganância. Mesmo assim, o impacto social de 1968 é imenso, se por mais não for, pelos horizontes que abriu nas lutas pela igualdade de direitos entre gêneros e raças. Muitos dos meiaoitistas migraram, sim, para o mundo das corporações e academias, e esse afinal, sempre foi o limite daquela revolução. Mas nem por isso apagaram-se das lutas sociais os novos compromissos com a igualdade.
Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Uma das muitas lições que ficaram para o mundo depois do experimento dos sovietes e das lutas de libertação nacional é que nos dois casos subestimou-se o anseio dos povos por vida democrática. Não há dúvidas de que Gaddafi transferiu para a população da Líbia parte importante dos ganhos do petróleo; a Líbia vive com altos padrões de desenvolvimento humano avaliado por indicadores de desenvolvimento (o que, sim, diminuiu nos últimos dez anos). Mas nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. Verdade essa que os emires do Golfo um dia também aprenderão, ensinada pelo povo. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo.
Não se sabe o que acontecerá na Líbia. O comandante do AFRICOM general Carter Ham já anda dizendo que, por menos que a ideia atraia os EUA, a ocupação por terra talvez seja a única via para ajudar dos “rebeldes”. Guerra prolongada, desse tipo, favorecerá a contrarrevolução, porque enfraquecerá a posição dos que buscam via política, para fazer florescer os novos horizontes criados pelos levantes populares. Como sempre, ante qualquer impasse, os que só sabem de guerras, querem mais guerras. Outros procuram um cessar-fogo, negociações e meios para fazer render o que já foi obtido, que é considerável.
As terras árabes nunca mais serão como antes.
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