15/8/2013, [*] M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Abdel Fattah al-Sisi como novo Faraó do Egito |
A
posição altamente oportunista adotada pelas “grandes potências” que têm poder de
veto no Conselho de Segurança da ONU impediu aquele augusto corpo de manifestar
veemente condenação da brutalidade com que os militares egípcios massacraram
mais de 1.000 civis no Cairo na 4ª-feira.
Deve
ser registrado como um dos momentos mais vergonhosos da triste história do
Conselho de Segurança da ONU numa história de mais de 60 anos. O crime está
deposto à soleira da Casa Branca e do Kremlin.
Ambas,
Washington e Moscou, optaram por ver os desenvolvimentos egípcios em larga
medida sob o prisma geopolítico e dos seus autointeresses respectivos,
singularmente sem qualquer traço de compaixão humana ou de moralidade política.
As credenciais dessas capitais para lidar com questões do Oriente Médio – o
problema palestino, a Síria ou a Primavera Árabe – estão agora sob exame severo.
O
Conselho de Segurança reuniu-se em New
York na 5ª-feira (15/8/2013) em sessão a portas fechadas, por convocação
conjunta de Grã-Bretanha, França e Austrália e de lá saiu com a resposta de mais
baixo nível que o mais poderoso corpo da ONU seria capaz de oferecer em questões
internacionais, relativa à grave escalada da crise no Egito.
Maria
Cristina Perceval, embaixadora da Argentina na ONU, que ocupa agora a
presidência rotativa do Conselho de Segurança, viu-se na incômoda posição de ter
de enunciar para a imprensa as palavras covardes que as grandes potências lhe
ditavam por trás da cortina:
Maria Cristina Perceval |
Antes
de tudo, os membros expressaram sua simpatia às vítimas e lastimaram a perda de
vidas. A opinião dos membros do Conselho é que é importante pôr fim à violência
no Egito, que os partidos exerçam a máxima contenção. E houve um desejo comum de
que é necessário pôr fim à violência e fazer avançar a reconciliação
nacional.
Mas
Perceval ainda conseguiu rir por último, porque soube astutamente distanciar seu
país – a Argentina, que ainda carrega as cicatrizes profundas que lhe deixaram
as ditaduras militares – da vergonhosa posição que o Conselho de Segurança
assumiu: reiterou que a Argentina condena veemente e inequivocamente o “golpe de
Estado” contra o presidente Mohamed Mursi e a “brutal repressão” da 4ª-feira
contra manifestações populares que encheram as ruas das principais cidades do
Cairo; e, em nome da Argentina, exigiu que a junta egípcia “cesse imediata e
totalmente a espiral de violência que cresceu nos últimos dias contra cidadãos
desarmados”.
Curiosamente,
a própria ONU não precisou medir palavras para condenar o massacre no Cairo. O
Secretário-Geral, Ban Ki-Moon, condenou a junta egípcia “nos temos mais
contundentes”. A Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, disse em
declaração em Genebra:
Ban Ki-Moon |
O
número de pessoas mortas e feridas, mesmo segundo o governo, indica uso
excessivo, pode-se dizer extremo, de força, contra manifestantes. Exige-se
investigação independente, imparcial e confiável da conduta das forças de
segurança. E os acusados devem ser levados a julgamento.
As
forças de segurança do Egito não estão acima da lei e estão obrigadas a
respeitar plenamente os direitos humanos, inclusive direitos de livre
manifestação e de reunião pacífica.
Fazendo
pouco, tarde demais
Em
comparação, o presidente dos EUA Barack Obama optou por uma demonstração de
passos na corda bamba diplomática. Anunciou o cancelamento de manobras militares
conjuntas planejadas com o Egito, mas não falou de cortar a ajuda militar dos
EUA – e ainda se recusa a chamar o “golpe” pelo seu verdadeiro nome. Em vez
disso, dedicou-se a manifestar um muito contido desprazer ante o brutal uso da
força pelos militares egípcios contra manifestantes no Cairo. Em declaração
verborrágica, Obama disse, inter alia,
Barack Obama |
Embora
Mohamed Mursi tenha sido eleito presidente em eleições democráticas, seu governo
não foi inclusivo e não respeitou as ideias de todos os egípcios. Sabemos que
muitos egípcios, milhões de egípcios, talvez a maioria dos egípcios clamam por
uma mudança de curso (...) Em vez disso, vimos ser adotada uma via mais
perigosa, com prisões arbitrárias, amplo ataque às associações e apoiadores do
Sr. Mursi e, agora, tragicamente, a violência que ceifou a vida de centenas de
pessoas e feriu mais milhares.
Os EUA
condenam fortemente os passos adotados pelo governo de transição do Egito e as
forças de segurança. Deploramos a violência contra civis (...) Nos opomos à implantação da lei marcial.
Embora
desejemos manter nosso relacionamento com o Egito, nossa tradicional cooperação
não pode continuar como sempre, quando cidadãos estão sendo mortos nas ruas e
direitos são atropelados (...) Orientei minha equipe de segurança nacional
para que avalie as implicações das ações do governo provisório e proponha os
passos que adotaremos conforme a necessidade com relação a nosso relacionamento
EUA-Egito (...)
Acreditamos
que o estado de emergência deve ser suspenso, que deve ter início um processo de
reconciliação nacional (...) e que se devem manter compromissos para
buscar reformas transparentes da Constituição e eleições democráticas de um
Parlamento e de um Presidente. [1]
Obama
tentou o quase impossível – afastar os EUA do massacre do Cairo, mas sem se
afastar dos generais do Cairo. Mais uma vez, demorou um dia inteiro, depois de
consumado o massacre, para conseguir rascunhar posição de meio termo.
É
mais uma entrada em seu currículo abissal sobre o Egito – fazer pouco, tarde
demais, e terminar por emitir mensagens confusas que, assim, comprometem ainda
mais a já reduzida capacidade (ou disposição) dos EUA para influenciar os
acontecimentos. Cancelar manobras militares dos EUA com o Egito, marcadas para
setembro, seria em todos os casos inevitável, nas atuais condições anárquicas no
Egito. Obama fez sofisma, ao tentar fazer crer que teria havido aí alguma
decisão política deliberada.
Permanece
a questão crucial: como Obama espera alcançar os objetivos dos EUA no Egito
cancelando manobras militares, num momento em que a junta está sobrecarregada de
outras preocupações e a “interoperabilidade” com as forças armadas dos EUA é a
última questão que lhe passa pela cabeça?
Seja
como for, o tipo de exercício militar tanque-contra-tanque que os EUA fazem com
o Egito nada importa ante a percepção de ameaças no Oriente Médio, as quais
emanam quase inteiramente das exigências da contrainsurgência e do
contraterrorismo. Em suma, Obama optou por safar-se pela via de uma “decisão”
sem consequências.
Isso,
quando, se há momento ideal para ordenar a suspensão da ajuda militar ao Egito,
é já. Será erro estratégico de Obama não suspender a ajuda – US$1,55 bilhão,
incluindo $1,3 bilhão para os militares egípcios – e, em vez disso, enfraquecer
ainda mais a credibilidade dos EUA, depois de a junta ter tão abertamente
desconsiderado os repetidos pedidos dos EUA para que os generais evitassem o
banho de sangue.
Abdel Fattah al-Sisi (E) e Chuck Hagel (D) em primeiro plano |
Seja
como for, no pé em que estão as coisas, é mínima a probabilidade de Obama fazer
alguma coisa que, mesmo remotamente, fira os acertos que Washington mantém com
os generais egípcios. O Secretário de Defesa, Chuck Hagel, falou com o
Comandante do Exército egípcio, General Abdel Fattah al-Sisi na 5ª-feira, para
dizer-lhe que a violência recente criaria ameaças para a cooperação militar
EUA-Egito, mas também para assegurar-lhe que o governo Obama espera manter
intacta sua relação militar com o Cairo.
Persiste,
para o governo Obama, o dilema entre a compulsão de mostrar que apoia a
democracia no Egito e a compulsão ainda maior de não desmentir a própria
retórica de que estaria do “lado certo da história”. Mas, por outro lado, o
governo Obama está também sob a compulsão ainda maior de salvaguardar os
interesses estratégicos dos EUA no Egito, basicamente na direção de a junta
persistir em políticas que servem aos interesses da segurança de Israel e
preservar o tratado de paz de 1979, além de continuar a oferecer acesso
privilegiado ao Canal de Suez para a Marinha dos EUA – criticamente importante,
no nível operacional, para a perpetuação do domínio, pelos militares de
Washington, sobre o Oriente Médio, e sua hegemonia regional.
Processos
mentais
complicados
Sergey Lavrov |
Paradoxalmente, a posição dos russos sobre o Egito constrói-se em torno da exploração do agudo dilema político em que se debatem os norte-americanos. Se Obama, pelo menos, abriu a boca para dizer alguma coisa, o Kremlin mantém silêncio pétreo e só mostrará as cartas depois de saber como Obama jogará.
Ironicamente,
o embaixador egípcio em Moscou disse que o Cairo conta com a ajuda dos russos
“nesse momento de provação, como sempre no passado” (antes de Anwar Sadat
expulsar do Egito os conselheiros e especialistas soviéticos). O Ministro de
Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, falou por telefone com seu
contraparte egípcio, Nabil Fahmy na 5ª-feira, mas o ministério em Moscou não
divulgou detalhes; só informou que os dois diplomatas discutiram “os recentes
desenvolvimentos no Egito”.
Nabil Fahmy |
O
que transpirou noutro nível em Moscou pode dar alguma indicação do que os russos
estão pensando e de suas prioridades políticas, enquanto seguem acompanhando o
momento: uma conversa telefônica entre Mikhail Bogdanov, enviado do presidente
russo para o Oriente Médio e Vice-Ministro de Relações Exteriores, e Sheikh
Abdullah bin Zayed Al Nahyan, Ministro de Relações Exteriores dos Emirados
Árabes Unidos. Detalhe interessante: a conversa aconteceu por iniciativa de
Al-Nahyan.
Fonte
não identificada no Ministério de Relações Exteriores da Rússia, disse depois
que:
Os
dois lados [Rússia e Emirados Árabes Unidos] buscam solução pacífica, não
violenta, para os problemas dos países na região; respeito à soberania dos
estados; e não interferência em seus assuntos internos. Os dois lados decidiram
manter vigoroso diálogo político Rússia-Emirados sobre questões de interesse
mútuo, incluindo possíveis parcerias entre Rússia e o Conselho de Cooperação dos
Estados Árabes do Golfo.
Sheikh Abdullah bin Zayed Al Nahyan |
Pode-se
tentar um voo, da janela do avião, sobre os complicados processos de pensamento
que fluem pela mente dos russos. Em primeiro lugar, os Emirados Árabes são um do
punhado de países que apoiaram integralmente a junta egípcia e insistem que o
que acontece hoje no Cairo é questão de manter a lei e a ordem. O Ministro de
Relações Exteriores em Abu Dhabi emitiu declaração na 5ª-feira, de apoio à
junta:
O
Ministério de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos reafirma que
compreende as medidas soberanas adotadas pelo governo do Egito depois de ter
demonstrado máximo autocontrole.
A
lamentar, que grupos políticos extremistas tenham insistido na retórica da
violência, do incitamento e do ataque contra o interesse público, que minaram a
economia egípcia e levaram aos eventos deploráveis.
Os
Emirados Árabes Unidos já garantiram $3 bilhões de ajuda à junta egípcia,
inferior só à ajuda dos sauditas, para financiar o golpe militar no Cairo.
Paradoxalmente, a generosa ajuda das oligarquias dos petrodólares do Golfo Persa
(aterrorizadas ante o apelo regional da Fraternidade Muçulmana) está permitindo
que os generais egípcios suportem qualquer pressão que lhes venha de Washington.
Por
sua vez, será imensamente interessante para Moscou, se a divergência de
interesses acentuar-se no próximo período, entre os EUA e os ricos aliados do
Conselho de Cooperação do Golfo, na delicada questão de ampliar o apoio à junta
militar no Cairo. O ponto é que, qualquer divergência nesse campo será, falando
essencialmente, divergência sobre futuros rumos da Primavera Árabe, e, por sua
vez, lançará sombras sobre o conflito na Síria, onde Arábia Saudita e Emirados
estão entre os mais fervorosos apoiadores dos “rebeldes”.
Mikhail Bogdanov |
Interessa
a Moscou manter abertas linhas de comunicação com a Arábia Saudita e os Emirados
quanto aos desenvolvimentos sírios, num momento em que as potências ocidentais
estão, mais ou menos, se desengajando de envolvimento militar significativo no
conflito. Moscou receberá com agradável surpresa qualquer indicação de que os
desenvolvimentos no Egito – que interessam vitalmente, como preocupação central,
às oligarquias do petrodólar da região do Golfo Persa – mostrem Rússia, Arábia
Saudita e os Emirados cada vez mais claramente postados “do mesmo lado”.
Esses
três veem a Fraternidade como uma substância tóxica no corpo político do Oriente
Médio; e os três consideram abominável que o Islã político esteja ganhando
ascendência como força vital do novo Oriente Médio. A Rússia considera proscrita
a Fraternidade Muçulmana, como organização subversiva.
Além
do mais, a Rússia tem felizes lembranças de quando negociava com o corpo de
oficiais do exército egípcio na era soviética e estará inclinada a vê-los como
defesa “secular” contra o dilúvio do “islamismo”. Não parece especialmente
perturbada pela possibilidade de que, no vácuo criado por uma retirada da
moderada Fraternidade egípcia, os salafistas, que são a “alma-raiz” das forças
que os russos combatem no Norte do Cáucaso (e que os sauditas alimentam, como
instrumento de política regional no Oriente Médio Expandido) possam surgir como
vanguarda do “islamismo”.
Mas
o que realmente conta hoje, para Moscou, não é o destino do islamismo, mas a
geopolítica. Qualquer diferença que surja entre o Pentágono e os militares
egípcios pode pinçar dramaticamente Moscou, e pô-la na posição de mentora dos
generais em comando no Cairo. O Egito é o epicentro da política no Oriente
Médio, e um renascimento de sua influência no Cairo pode dar grande impulso à
influência regional da Rússia como um todo, em ampla variedade de fronts; e
carrega o potencial para projetar os russos como árbitros da paz e da
estabilidade.
A
implicação em termos de exportação de armas e outras vantagens econômicas é
também autoevidente. Naturalmente, o Kremlin observa atentamente como Obama se
safa de suas dificuldades egípcias.
Pelas
atuais tendências, Moscou sempre gostará de ver que o Presidente dos EUA
fracassa consistentemente e não consegue ter impacto significativo no
comportamento dos generais egípcios, os quais estão convencidos de que enfrentam
luta existencial e não se mostram inclinados a voltar à “normalidade”, para
acomodar a Fraternidade numa democracia “inclusiva”.
Os
generais egípcios apreciarão que a ajuda dos EUA seja mantida, mas, por mais
desejável que aquela ajuda seja, ela não é absolutamente pré-requisito para a
sobrevivência, se vier a um preço político inaceitável. É onde benfeitores como
a Arábia Saudita, o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos, que prometeram ajuda
financeira de $12 bilhões – e potencialmente a Rússia, grande fornecedora de
armas – aparecem à mão, acessíveis, para a junta egípcia.
Isso
posto, depois de intervalo de 42 anos, abre-se uma janela de oportunidade para
que a Rússia faça sua reestreia política nos corredores do poder do Cairo, como
ator em tempo integral. No dia 18/7/1972, o então líder egípcio Anwar Sadat
anunciou a expulsão sumária, do Egito, de cerca de 5.000 conselheiros militares
e 15 mil elementos da Força Aérea soviética.
Nesses
termos, deve-se esperar que Washington faça todo o possível, não importa a que
preço, para que aquela janela sobre as margens do Nilo não se abra o suficiente
para que por ali se esgueire um urso, e, de fato, os EUA ainda têm vasto poder
residual para conter o que tenha de ser contido e domar generais pecadores e
autocratas indisciplinados do Golfo. No clima atual das relações EUA-Rússia, o
governo Obama absolutamente não se recolherá e não abrirá espaços para a Rússia
no Oriente Médio.
O
escandaloso impasse que se viu no Conselho de Segurança da ONU na 5ª-feira, é
reflexão bem acurada da dura batalha que se trava entre as grandes potências,
pela influência no Cairo. O vencedor, claro, é Sisi, o novo faraó do Nilo – pelo
menos, por enquanto.
[*] MK
Bhadrakumar foi diplomata de carreira do
Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul,
Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É
especialista em questões do Irã,
Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas
de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais The Hindu, Asia Times Online e Indian
Punchline. É o filho mais velho de MK
Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de
Kerala.
Nota
dos tradutores
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